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2.3 Projetos Antropocentrados

2.3.2 Do Artefato ao Instrumento

No processo de concepção e evolução da atividade, existem três principais perspectivas, as quais orientam a prática profissional do ergonomista e o processo de projeto: a cristalização, a plasticidade e o desenvolvimento. A cristalização trata da representação do artefato centrada em um modelo de usuário e um ponto de vista sobre a natureza do trabalho ou atividade, ou seja, ela traz a ideia de que todo projeto de um artefato “cristaliza” um conhecimento e escolhas sociais, econômicas e políticas feitas pelos projetistas (FREYSSENET, 1990). Essas representações não se limitam às dimensões físicas, mas também psíquicas e cognitivas.

Deve-se atentar que esse conhecimento cristalizado no artefato e difundido nas situações de trabalho pode ser fonte de numerosas dificuldades para os usuários, caso sejam falsos ou incompletos (BÉGUIN, 2008; BÉGUIN e PUEYO, 2011). Os modelos susceptíveis de serem manipulados pelos projetistas e que estão cristalizados nos artefatos devem considerar o

conjunto das dimensões humanas, buscando o entendimento de “a qual homem o trabalho deve ser adaptado” (BÉGUIN, 2007a).

A negligência dos projetistas sobre as diferentes representações, assim como sobre as diversas situações de trabalho e trabalhadores, conduz a uma série de dificuldades. Sendo assim, o conceito de cristalização especifica a necessidade da modelação da atividade de trabalho ao mesmo tempo da construção de ferramentas e dispositivos técnicos, a fim de que as necessidades dos trabalhadores sejam consideradas.

Para Suchman (1987) não basta apenas construir uma representação aprofundada do Homem e seu funcionamento, mas também elaborar sistemas que sejam, suficientemente, flexíveis e plásticos para proporcionar margens de manobra e espaços de regulação para realização da atividade, a fim de que se possa atingir a meta de produção sem prejudicar a saúde dos trabalhadores.

Nesse contexto, entra a perspectiva da plasticidade, na qual se tem que o sistema a ser desenvolvido precisa ser flexível para se adaptar à variabilidade presente na atividade, uma vez que no dia a dia os operadores enfrentam inúmeros imprevistos e diversidades de situações inerentes ao processo industrial (desajuste de ferramentas, ausência de um colega, instabilidade do material) e variações do seu próprio estado físico (fadiga, necessidade de concentração, esforço físico, envelhecimento, etc) (BÉGUIN, 2006b; 2009).

Para Daniellou (2007), a atividade de um operador não pode ser prevista em detalhe, pois sempre haverá uma diferença entre a estrutura apreendida e modelizada para a concepção versus a atividade, sendo esta última, efetivamente, desenvolvida em uma dada situação. Em complemento Béguin (2007b; 2009), afirma que o trabalho real vai sempre além do modelo que é construído, ou seja, há uma diferença entre o trabalho prescrito (construído), baseado nas representações dos projetistas cristalizadas no artefato, e o trabalho real, influenciado de forma direta no processo de concepção.

Logo, diante da dinâmica da atividade, devido à diversidade de situações e variabilidade do indivíduo e do processo industrial, espera-se que os operadores se adaptem à situação, fazendo uso de “uma inteligência da tarefa”, com ação na hora certa e utilizando as circunstâncias a seu favor (MONTMOLLIN, 1986).

Segundo Béguin (2008), a concepção de um sistema plástico é uma orientação de pesquisa importante, a fim de conceber sistemas sociotécnicos que reavaliam de forma constante seu próprio funcionamento e que se reestruturam em função das circunstâncias.

Por sua vez, a perspectiva do desenvolvimento promove um acoplamento das duas abordagens anteriores e indica que o desenvolvimento do artefato e o desenvolvimento da

atividade devem ser considerados em conjunto na execução de um projeto (organização sistêmica entre o que é projetado e o que faz o operador), possibilitando não só que o processo de concepção incorpore uma atividade futura possível, como também promova um novo conhecimento sobre a nova situação de trabalho, permitindo tanto a instrumentação como a instrumentalização dos sistemas sob concepção (BÉGUIN, 2008; 2007b; FOLCHER, 1999).

Há alguns pontos importantes que estruturam a perspectiva do desenvolvimento como: 1) não existe vazio técnico (técnica compreendida pelos saberes eficazes), ou seja, todo artefato é operado por trabalhadores, os quais trazem formas de agir e fazer, conceitos operativos, competências e valores que permitem ou que são associados a essa utilização; 2) esta perspectiva trata dos processos pelos quais os operadores se apropriam de uma novidade técnica e sua gênese, constituindo o novo como recurso para suas ações (BÉGUIN, 2008).

Esse modelo desenvolvimentista demanda também a revisão das escolhas iniciais dos projetistas, com base nas aprendizagens do operador, colocando em jogo relações de saberes e poderes, devendo ser considerado os trabalhadores como atores legítimos do processo de concepção e a necessidade de validação pelos trabalhadores das proposições dos projetistas.

Como visto, a gênese instrumental pode ocorrer de duas formas distintas, com o operador desenvolvendo técnicas novas a partir das que dispõe, ou modificando os dispositivos para se conformarem às suas próprias construções (BÉGUIN, 2009). Para Béguin e Rabardel (2000), os dois processos contribuem, muitas vezes de forma dialética, para a construção e evolução do instrumento.

Para Béguin (2009), mesmo quando um artefato é bem projetado, o instrumento de forma alguma está terminado, quando sai do departamento de concepção. O instrumento tem uma característica viva, que requer um humano para sua implementação e associação de uma parte de si mesmo. Sendo assim, essa definição de instrumento tem os trabalhadores como contribuintes do processo de concepção com base em suas próprias competências e diversidades.

Para Béguin e Duarte (2008), a abordagem dialógica articula essas três perspectivas da ergonomia da atividade na concepção: cristalização, plasticidade e desenvolvimento. Sobre esse ponto de vista, a concepção pode ser definida como um processo de desenvolvimento conjunto entre a forma de agir e o artefato, levando à construção do instrumento.

As apostas do design visam artefatos cujas propriedades estejam bem adaptadas às características dos futuros usuários, para assim alcançar o uso fácil, eficiente, confortável, dentre outros critérios estabelecidos, como os de usabilidade e utilidade, garantindo qualidade na interação e apropriação genuína dos artefatos pelos usuários, tornando-se estes instrumentos

do trabalho. Dessa forma, o que está sendo procurado é um melhor ajuste do artefato, não apenas relacionado às suas funções pré-estabelecidas, mas também às necessidades dos usuários, sendo estes também objetos de análise.

Analisar a emergência e o desenvolvimento de instrumentos, por um lado, ao mesmo tempo em que integra o produto dessa análise em processos de projeto, pode ser visto como duas direções relevantes para propor uma visão construtiva focada em artefatos e seu design.

Folcher e Rabardel (2007) distinguem três formas principais de interações entre os homens e os dispositivos técnicos para realização do trabalho:

1) Aquelas centradas na interação entre o homem e a máquina (IHM): relação esta mediada por uma interface, com o intuito de proporcionar melhor entendimento do uso do espaço, ou de uma forma geral sobre os aspectos do uso que auxiliam na construção de artefatos com maior qualidade. Homem e máquina, nesse caso, são colocados como unidades separadas, unidas pela interface, a qual é objeto de estudo, inseridos no contexto de uma tarefa (Figura 6).

Fonte: Folcher e Rabardel, 2007.

2) Aquelas que consideram o homem e a máquina: essa abordagem já passa a considerar os componentes Homem e Máquina, como um sistema engajado na realização de uma tarefa, diferente do modelo anterior, em que esses componentes eram vistos separadamente. Nesse caso, duas características são importantes, tais como, a acoplagem da máquina aos processos cognitivos do trabalhador e a consideração da tarefa como a do conjunto Homem-Máquina. Isso aprofunda o entendimento do processo de interação e coloca a máquina como meio potencializador da capacidade de ação do Homem (Error! Reference source not found.7).

Homem Interface Máquina

Fonte: Folcher e Rabardel, 2007.

3) Aquelas centradas na mediação da atividade pelo uso dos artefatos: nestas, duas premissas são importantes: a) o componente humano está intrinsecamente relacionado à transformação da situação de trabalho e ao desenvolvimento do contexto; b) as relações estabelecidas são mediadas por meio do artefato, o qual está em constante processo de mudança e desenvolvimento, de acordo com as variabilidades encontradas no ambiente (Figura 8).

Fonte: Folcher e Rabardel, 2007.

A abordagem da atividade mediada pelo uso dos artefatos parte do princípio de que os relacionamentos que os humanos têm com o mundo não são diretos, mas mediados por objetos construídos social e culturalmente. Esses objetos são os artefatos, que são os mediadores das ações dos operadores nas atividades finalizadas. Como eles são social e culturalmente marcados, são compartilhados e transmitidos através das comunidades, e permitem o desenvolvimento individual na medida em que transformam tarefas e atividades (FOLCHER, 1999; 2003).

Nessa abordagem, a unidade de análise, volta-se para a realização de uma atividade produtiva – a execução de tarefas – e para uma atividade construtiva, centrada na elaboração de recursos internos e externos, como competências, sistemas de valores, esquemas e instrumentos (FOLCHER e RABARDEL, 2007). Logo, o foco está no processo de adequação dos artefatos à atividade destinada, com a perspectiva teórica em torno da Teoria da Atividade.

Homens e Máquinas Tarefa do Sistema SISTEMA Homem Tarefa do Sujeito Máquina ou Artefato

Figura 7. Abordagem sistemas homem e máquina.