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1 QUATRO FACES DO PROCESSO LITERÁRIO BRASILEIRO DE ACORDO COM A

3.2 Eixos da composição crítica assisiana

3.2.4 Domínio dos gêneros literários

Ao tratar do livro Novelas e novelistas brasileiros, de José Arimateia Pinto do Carmo

– voltado para a questão dos gêneros, especialmente para a novela, como sugere o título –

Essa etiquetagem dos livros de ficção é mera convenção didática [...] os autores nunca levam em conta – nem param para meditar – se, de fato, os seus escritos são conto, romance ou novela. Muitas vezes são as editoras que especificam os gêneros, levando em conta o peso ou o tamanho dos livros. De fato, nunca houve fronteiras exatas para a determinação dos gêneros de ficção. E os escritores de hoje, graças a uma certa independência criadora, ao escreverem seus livros não se importam mais em enquadrá-los dentro deste ou daquele gênero (BRASIL, SDJB, 4 ago. 1957, p.2).

As assertivas do crítico, tantas vezes reiteradas, tornam-se um ponto sintomático nos seus escritos, haja vista as constantes recorrências que ele próprio fez à classificação dos gêneros para referendar seus próprios argumentos ao longo de toda a sua crítica. Na análise do romance Memória de inverno, de Saldanha Coelho, ancorou seu pensamento em tais referências, ao destacar que:

Claro que um contista novo pode ser um futuro bom romancista, e vice- versa. Mas sabemos que o romance é obra que requer amadurecimento, não só exigindo do escritor estudo e leitura, como maior índice de vivências. Gênero sério, que implica um melhor tratamento artístico, uma maior profundidade psicológica, um conhecimento mais perfeito da técnica de narrar. Saldanha Coelho estreia agora em romance, enveredando por um caminho errado. Não realiza obra que mereça atenção. Um livro sem contextura esse Memória de inverno [...]. A técnica em seu “romance” inexiste. E a prova do que afirmamos está no fato desse (sic) livro ter sido escrito aos retalhos, aproveitando o autor alguns contos de sua autoria, que inseriu em Memória de inverno, com um único propósito de atingir as cento e cinquenta páginas de que o mesmo se compõe (BRASIL, SDJB, 21 out. 1956, p.2, grifos do autor).

O crítico, desde os primeiros aos últimos textos publicados no SDJB, utilizou-se de uma postura contraditória diante da importância dos gêneros literários. Negando-a textualmente, porém sem declinar de tal classificação nas inúmeras análises que publicou. Sua reprovação a Saldanha Coelho, por exemplo, está baseada no que considerou como falta de domínio do referido ficcionista diante do gênero que se dispôs a cultivar.

Este referencial crítico se tornou mais assíduo, quando o crítico passou a censurar o chamado romance documental. Tal prática, segundo sua ótica, constituía um retrocesso à renovação do gênero realizada pelos novos romancistas. Nesse aspecto, em específico, este eixo operacional se relaciona diretamente com o próximo a ser tematizado: a transcendência literária. A crítica ao romance Vila dos confins, livro de estreia de Mário Palmério, faz-se reveladora de muitos dos aspectos mencionados sobre a postura assisiana diante da questão dos gêneros literários. Por tal motivo, vale conferir um fragmento mais extenso do texto:

O romance Vila dos Confins [...] nos dar azo a algumas considerações em torno da técnica do romance moderno. É que muitos comentaristas de livros, embora elogiem esta estreia, por outro lado teimam em não “enquadrar” este

Vila dos Confins no gênero romance. Ora, há muito que na literatura

universal, as características tradicionais dos diversos gêneros literários deixaram de ser ponto de partida para a análise de uma obra, que se subintitulada de CONTO, NOVELA ou ROMANCE. Mas em nosso meio intelectual ainda persiste a mania do “enquadramento”, a todo custo, de um livro de ficção dentro de qualquer um dos gêneros acima citados. E sente-se que os nossos comentaristas literários se inquietam [...] quando leem contos, que acham que não sejam bem contos, ou romances, que não lhes incutam logo nos sentidos os seus chavões e lugares-comuns da técnica convencional. [...] aceitam inovações estéticas as mais curiosas, mas por outro lado opõem

logo, como “fraqueza” do livro em questão, o seu não bitolamento na técnica

genérica. [...] Temos como exemplo inicial dessa disparidade, os contistas novos e de valor que surgem a cada instante. Elogiam muito o seu estilo, a sua contribuição estética, mas [não se atrevem a classificá-lo de contista]; [...] teríamos de considerar um William Saroyan de cronista, o Sinclair Lewis da primeira fase de repórter, um Kafka de fazedor de parábolas, uma

Mansfield de poeta abstrato, e não nos atreveríamos a “classificar” um John

Dos Passos. O que é o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em relação à técnica tradicional do romance? [...] Embora possamos aproximar mais desse romance, Vila dos Confins, da técnica tradicional, a linguagem

com que o mesmo foi plasmado, integrando homem e coisas no “mundo” do

artista, caracteriza um autêntico ficcionista. O documento é o ponto de apoio de seu livro, o que o terá prejudicado em algumas passagens, quando o ficcionista se confunde com o cronista ou repórter; senões que Mário

Palmério poderá “limpar” de seu livro numa outra edição. [...] uma

linguagem viva [...] dá validade e sentido universal ao seu grande romance (BRASIL, SDJB, 24 fev. 1957, p.1, grifos do autor).

A oscilação entre negar a importância dos gêneros e, concomitantemente, utilizar-se de tal taxonomia foi constante na crítica assisiana. No mais das vezes, em meio a mais de duas centenas de textos publicados no SDJB, o crítico recorreu às referências genéricas para analisar as narrativas que lhe vinham às mãos. Ao tratar, por exemplo, das obras Tribo e A lua vem da Ásia, de Walter Campos de Carvalho, expôs:

Ao terminarmos de ler os dois livros de Campos de Carvalho – (Tribo [...] 1954 e A lua vem da Ásia [...] 1956) – chegamos à conclusão de que este último, subintitulado pelo autor de NOVELA, não tem característica alguma de obra de ficção. É um prolongamento do seu primeiro livro [...]. Não é escrito nem em forma de diálogo, nem de memórias, é um amontoado de crônicas superficiais, assim como foi escrito Tribo, que o autor se dignou a classificar de ensaios (?). Querendo, no entanto, lançar uma obra de ficção, que naturalmente teria uma acolhida melhor no mercado, Campos de Carvalho usou o material que tinha à mão, velhas crônicas cheias de revoltas e frustrações [...]. A suposta novela A lua vem da Ásia, num tom epigramático, aforístico, nada tem de ficção (BRASIL, SDJB, 7 abr. 1957, p.2, grifos do autor).

O ponto central no excerto supra é a pertinência ou não das referidas obras quanto ao gênero literário indicado pelo autor das mesmas. Em outra ocasião da sua crítica, escreveu:

“Alguns teimam em classificações dentro do gênero por desconhecerem que o gênero é o

resultado de uma expressão artística total” (BRASIL, SDJB, 26 nov. 1960, p.7). Contrariamente a esse argumento, ao analisar A procissão e os porcos, segundo livro de ficção de Jorge Medauar, ponderou:

Temos um bom exemplo de ficcionista em Jorge Medauar. Em A Procissão

e os porcos construiu narrativas mais longas do que as de seu livro de

estreia. Fugindo então do enquadramento limitado do conto, que requer uma estrutura especial, Jorge Medauar desenvolve essas suas novelas com uma maior liberdade técnica, embora não sejam simples peças espichadas num determinado espaço. A configuração de todas elas, no plano conceptivo, é perfeita. Seu desenvolvimento atende a um equilíbrio que nunca desemboca num final preestabelecido, mas se enquadra no conjunto coerentemente (BRASIL, SDJB, 23 jul. 1960, p.4).

Na recepção da referida obra, a crítica foi unânime na classificação do livro como uma coletânea de contos, no entanto, Assis Brasil, se contrapôs frontalmente à referida classificação, advogando tratar-se de uma coletânea de novelas. A postura aporética do crítico patenteia a complexidade da questão em uma época na qual os autores, mais que antes, amalgamavam os elementos constitutivos de suas criações. Caberia, aqui, indagar a legitimidade da teoria dos gêneros nos últimos anos.

Se os críticos, mesmo no atual contexto, não abdicaram de fazer alusão aos gêneros – seja nas centenas de resenhas expostas nos mais diversos veículos culturais, ou em meio às regras que regem os concursos literários –, talvez a permanência dessa classificação se deva ao seu caráter funcional, facilitador naquilo que os gêneros ainda têm de garantia na particularização de obras em meio à diversidade das práticas artísticas (cinema, teatro, artes visuais). Com efeito, do ponto de vista da crítica literária, em específico, pode-se dizer que a conexão axiológica do fenômeno literário a uma taxonomia imprecisa, mas ainda possível, tutela a continuidade das categorias genéricas por serem elas, de alguma forma, ponto de confluência nas reflexões acerca do fenômeno literário, como também das mais diversas formas de arte. A teoria dos gêneros enquanto doutrina já tinha sido, extensamente, miscigenada pelo gênio criador romântico e, mais causticamente, descolorida pelas produções vanguardistas do início do século XX; no entanto, seu poder de organizar de maneira válida, alguns elementos em torno de si, provavelmente, tenha impedido sua total sucumbência em meio às transgressões dos autores.

Nesse âmbito, o pensamento de Antoine Compagnon acerca da causa auxilia o encaminhamento da questão, visto que, de acordo com os postulados do crítico francês, a

pertinência teórica dos gêneros literários seria a de “funcionar como um esquema de recepção,

uma competência do leitor, confirmada e/ou contestada por todo texto novo num processo

dinâmico” (COMPAGNON, 2010, p.154). Assim, adotando o ponto de vista da recepção, o

gênero não se concretizaria como uma “partitura” para o fenômeno literário, mas como

componente oferecido por este que permitiria ao leitor “selecionar e limitar, dentre os

recursos oferecidos pelo texto, aqueles que sua leitura atualizar[ia]” (COMPAGNON, 2010, p.155), asserção que remete ao caráter didático dos gêneros, aludido por Assis Brasil. A concepção de gênero no processo da recepção da obra, da qual tratou Compagnon, explicita, em justa medida, o modo como os gêneros adentraram a ensaística assisiana, embora houvesse divergência entre suas hipóteses e a sua prática crítica.

A despeito de Assis Brasil se manifestar consciente quanto ao fato de os gêneros serem categorias instáveis – e que, principalmente, naquele contexto, estavam passando por transformações ainda mais acirradas, bem como por ressaltar que sua manutenção só se explicava por mero didatismo – as categorias genéricas lhe serviram, como parte imprescindível do suporte metodológico no processo de elaboração de sua tese da Nova literatura. Priorizou ele alguns escritores, então, dentro de um arco temporal específico, e, distinguindo suas obras conforme o gênero, passou a mostrar as constantes estéticas que assegurariam os pressupostos da nova fase. Optando por quatro gêneros – romance, poesia, conto e crítica literária – Assis Brasil especificou, dentre as obras analisadas, os aspectos que, tal como lembrou Compagnon, poderiam ser atualizados por sua leitura. Foi essa experiência a pedra angular que lhe permitiu o arcabouço de suas hipóteses quanto às produções literárias da época. No seu ensaio A nova literatura brasileira, publicado em quatro volumes, o fundamento não foi outro senão o dos controversos gêneros literários.