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Regionalismo como estilização da linguagem

1 QUATRO FACES DO PROCESSO LITERÁRIO BRASILEIRO DE ACORDO COM A

3.2 Eixos da composição crítica assisiana

3.2.3 Regionalismo como estilização da linguagem

As mais relevantes narrativas destacadas por Assis Brasil durante o período no qual trabalhou no SDJB apresentavam uma acurada e distinta reapropriação das influências, mas, para além desse aspecto, houve uma demanda técnica realçada pelo crítico quase em vias de obsessão, perpassando toda a sua crítica: o regionalismo, que – insistiu – não deveria remeter a uma categoria sociológica, uma vez que não podia ser dissociado da linguagem literária em si.

Tal categoria foi uma sombra projetada a cada crítica que tivesse como foco uma obra tida como localista. Para ele, o regionalismo constituía um elemento estrutural processado na estilização da linguagem, o que se distanciava da concepção segundo a qual alguns escritores se utilizavam para, ao ambientar a narrativa em uma localidade interiorana, empobrecê-la de seus traços culturais e enfatizar sua miséria em tom panfletário. A solução para aquilo que Assis Brasil considerou como disfunção literária no âmbito do regionalismo foi por ele elucidada sob uma espécie de assinatura messiânica: a linguagem estilizada.

Não nos batemos por uma modificação da linguagem regional num sentido erudito ou pelo seu extermínio (o que seria uma extravagante e ridícula pretensão), mas pela modificação dessa linguagem regional, num sentido de elevação literária. [Um] approach de expressões (erudita e popular) marcará uma futura linguagem literária brasileira, a sua [...] aceitação em todos os recantos do país. É dever do escritor brasileiro procurar essa uniformização

linguística (de caráter, acentuamos, estritamente literário). [...] romancistas do Rio Grande do Sul, Goiás e Amazonas (o leitor terá de concordar) se entendem entre si, falam uma mesma língua, embora com acentuações diferentes. Entre eles há um meio de expressão comum, pelo qual a comunicação se efetua. Esse meio de expressão comum, elevado a um nível literário, sem que o escritor prescinda de seus regionalismos, de seus ditos (não mais repetidos fotograficamente, oralmente), é que dará aquele denominador comum e formará a grande unidade literária nacional (BRASIL, SDJB, 28 nov. 1959, p.7).

Reforçou, incansavelmente, que a arte literária não autorizava a bipartição: literatura urbana e literatura regional, aludindo ele à linguagem regional, pois considerou que o dualismo representava uma deturpação provocada pelos equívocos no que tange à incompreensão do regionalismo. Ao analisar contos do escritor baiano, Jorge Medauar, Assis Brasil expôs mais extensamente seu posicionamento:

Jorge Medauar pode servir de barômetro para medirmos um dos casos mais complicados da literatura brasileira: a linguagem dita regional, a que já aludimos diversas vezes. Água Preta, dizem, é um livro regional [...]. Por que então outros livros não são regionais? [...] E alguns chegam ao exagero de ter o regionalismo como gênero. A observação é para afastar, de alguns autores que serão estudados aqui, a classificação limitativa de sua ficção. Podemos falar em dialetos de várias regiões brasileiras. E os escritores dessas regiões, naturalmente, usam as expressões locais, principalmente na área da oralidade, técnica que enriquece a linguagem literária (BRASIL, 1975b, p.50-51).

A estilização aludida imprimiria uma nova dimensão à transposição literária da fala

popular, o que permitia a Medauar, bem como aos novos escritores plasmarem “novas faturas expressivas”, demonstrando, segundo ele, uma profunda consciência dos valores da língua.

O crítico – mesmo reconhecendo a utilização dos dialetos regionais como uma maneira de enriquecimento da linguagem – revelou sua aversão quanto a impropriedades em se designar uma obra como regional ou não, fato que poderia incorrer no risco de elevar, erroneamente, o termo à categoria de gênero literário. Para ele, só era legítimo se falar em estilização da linguagem, a fim de se evitar o exagero de tal classificação, uma vez que uma especificidade da linguagem não poderia representar a obra literária em sua totalidade. O risco era acentuado em função de traços erroneamente tidos como caracterizadores do regionalismo como, por exemplo: o fascínio pelo pitoresco, a ênfase em problemas de natureza político- social e o simplismo da mera transcrição de diálogos em desacordo com a norma culta da língua. Assis Brasil ratificou esse pensamento em uma nota (orelha) publicada, em tempos mais recentes, na terceira edição do romance Serra dos Pilões: jagunços e tropeiros (2001), de Moura Lima. Segundo o crítico piauiense:

É claro que alguns escritores dão características locais, regionais, com um vocabulário específico, [...] temas do sáfaro lendário das nossas tragédias. O que devemos observar, no entanto, em qualquer romance, é como o escritor (criador) trabalha a sua linguagem [...]. A oralidade simplesmente “transcrita

de ouvido” – como diria Mário de Andrade – ao nível da narrativa, soa

incongruente, daí a estreiteza de concepção de muitos romancistas tidos como regionalistas. [...] A transcrição da oralidade para a escrita – o lugar onde a linguagem literária se realiza – precisa de uma estilização, ou seja, de uma adequação entre o mundo revelado e a literalidade, o que marca toda obra criativa. Sim, o escritor pode usar vocábulos, expressões regionais, nomes locais, certos termos antigramaticais até, para que tais recursos sintáticos conotem o clima regional, sem que o escritor precise arremedar, falsamente, a linguagem interiorana (BRASIL, 2001, s/p).

Essa visão não difere daquela presente no texto de 1956, sobre Grande sertão: veredas, ocasião na qual ele destacou que o romance ainda figurava como um monumento quase solitário, no que tange ao regionalismo enquanto estilização da linguagem. Posteriormente à ficção de Rosa, o crítico começou a destacar outras obras que atendiam às suas expectativas quanto à referida questão, como o romance A madona de cedro, de Antônio Callado, em que: “a linguagem regional se ‘estiliza’ e ganha em valor artístico” (BRASIL, SDJB, 16 jun. 1957, p.2).

Por diversas vezes, Assis Brasil enfatizou o trabalho pioneiro de Guimarães Rosa naquilo que, para ele, constituía o regionalismo enquanto particularidade estilística e não enquanto gênero literário, ou seja, como uma peculiaridade linguística desvinculada das malhas sociológicas, tal como procedeu, destacou, a chamada geração de 30 do Modernismo: Ao quebrar, João Guimarães Rosa, o simples “enxerto” coloquial dos

escritores do Nordeste, estava possibilitando a esse mesmo coloquial alçar-se a um nível propriamente literário, graças a um léxico regional incorporado harmoniosamente ao estilo [...]. Essa harmonia está na expressão que se sobrepõe ao vocábulo nu, isolado. O equilíbrio entre o popular e o erudito [...] era o grande segredo para que se obtivesse uma linguagem de ressonância universal. A simples mudança do ponto de vista narrativo (do exterior para o interior, do narrador para o personagem) facultou uma maior espontaneidade à expressão. Água Preta está na fase de Sagarana, como na mesma fase está Vila dos Confins, de Mário Palmério. Afirmando isso não queremos sugerir aos dois autores que evoluam no sentido de Grande sertão:

veredas, absolutamente. Se encontrarem outro caminho melhor. Guimarães

Rosa explorou ao máximo o rico veio do vocabulário regional, transmutando-o artisticamente, sem perdê-lo nunca de vista. Inventou um caminho (BRASIL, SDJB, 19 out. 1958, p.6).

O livro Água Preta – com o qual o poeta Jorge Medauar fez a sua estreia como contista – foi considerado pelo crítico, juntamente com os outros citados, como uma experiência que elevou a linguagem ao nível da mais criativa expressão regional. Nessa obra,

delineava-se um regionalismo intimista, segundo ele, que possibilitou “aos personagens uma

maior identidade com a terra sentida de dentro” (BRASIL, SDJB, 19 out. 1958, p.6). Para

melhor elucidar a estilização necessária para que o regionalismo se realizasse literariamente, esclareceu o que considerou acerto e o que considerou falho na referida obra:

No equilíbrio que falamos atrás entre o erudito e o popular, que Jorge Medauar consegue em parte, o que mais colabora para uma situação "falsa", para uma desarmonia do estilo, é a colocação dos pronomes átonos, que o escritor teme substituí-los pelos nomes, pelos objetos, agarrado que está à

linha tradicional da narrativa. “... esguirar-se por entre os matos, arrombar a

porta do safado, lascá-lo". O se, embora colocado corretamente, dentro do convencional, dá espontaneidade à expressão, mas o lo, no mesmo caso, já quebra a flexibilidade da frase e seu gosto regional. O lo substituído por bicho (laçar o bicho, lascar o danado, etc.) conservaria a frase na integridade popular. Apenas um exemplo, e aqui o remetemos diretamente ao autor de

Água preta [...] Uma das qualidades do livro de Jorge Medauar é sua

unidade de concepção e tema (BRASIL, SDJB, 19 out. 1958, p.6).

Esse mesmo aspecto foi tematizado na crítica destinada à obra do sergipano Paulo Dantas, no SDJB de 28 de novembro de 1959; porém, ao contrário dos livros mencionados acima, para o crítico, o romance O capitão jagunço, lançado então naquele ano, não havia atingido uma linguagem regionalista que promovesse “elevação literária” às expressões de cunho localista.

Comentando acerca do livro de contos Amigos velhos, do catarinense Guido Wilmar Sassi, o crítico ponderou que o contista não valorizou artisticamente os vocábulos regionais. No conto homônimo – enfatizou – a linguagem do personagem “nos é impingida fonética e graficamente “errada”, justamente por querer o autor copiá-la do real” (BRASIL, SDJB, 20 out. 1957, p.2). Argumento semelhante ocorreu em relação à crítica do livro de contos O caminho das boiadas, de Leo Godoy Otero, por tratar de um regionalismo que remetia ao “descosido da concepção” (BRASIL, SDJB, 26 out. 1958, p.4), uma vez que na referida obra

a linguagem regional não fora tecida segundo suas perspectivas. A opinião assisiana em relação aos contos de Godoy Otero soou em desarmonia com a recepção da obra por outros críticos da época, que reconheceram a profundidade regionalista do contista goiano, cujo livro recebeu o prêmio Jornal do Commércio – RJ, em 1958, na categoria de melhor ficção regional.

É interessante destacar que Assis Brasil, como ficcionista, demonstrou, nos romances da Tetralogia piauiense, um constante cuidado em manifestar o regionalismo literário de acordo com o que advogou, primando pela estilização da linguagem, afim de não recair no

“descosido da mera reprodução da fala fora dos padrões cultos”, para usar uma expressão

recorrente em sua crítica.

Este eixo operacional, inclusive, ganhou amplas proporções no processo de reconhecimento de renovação literária efetivada pelos ficcionistas que já chamava, à época em que estava no SDJB, de novos escritores. Assim, exaltou a produção de escritores, como os destacados acima, em detrimento das obras dos romancistas de 30. Ele enumerou vários pontos de diferenciação entre os romancistas do Nordeste e os representantes da nova fase, entre os quais assinalou que, diferentemente daqueles – que apresentaram uma “visão estrábica" dos problemas sociais, assemelhando suas narrativas a relatórios sociais – estes exploravam a relação entre ficção e realidade empírica em termos essencialmente estéticos,

sobretudo, por não cultivarem “compromisso político”. Para ele, à exceção dos romances de

Graciliano Ramos, a produção de 30, dirigida ideologicamente, havia misturado romance com documento sociológico de baixo teor analítico, destacou. Não obstante a exceção feita ao autor de Vidas secas, a afirmação de Assis Brasil, reducionista que foi, terminou por desmerecer, indevidamente, o talento de diversos romancistas cujo éthos sociológico – e não uma visão pretensiosamente política – não implicou prejuízo à qualidade estética de suas produções, como quis o crítico, mas se fez crisol para o enriquecimento da literatura nacional, uma vez que contribuiu para a construção efetiva do Modernismo brasileiro.

As asserções assisianas acerca do regionalismo literário se deram conforme um paradigma que teve em sua nascente Graciliano Ramos e, em seu ápice, Guimarães Rosa. De acordo com suas proposições, somente depois da publicação de Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas vieram obras que também conseguiram mérito pelo uso da linguagem regionalista. Interessante perceber, a partir dos fragmentos citados, que, na crítica assisiana, sempre foi estabelecido um perfil de escrita que privilegiou as obras pelas vias do comparativismo literário.