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1 QUATRO FACES DO PROCESSO LITERÁRIO BRASILEIRO DE ACORDO COM A

3.2 Eixos da composição crítica assisiana

3.2.5 Transcendência literária

Assis Brasil tomou, como fator de máxima relevância, o potencial que tem a devida inter-relação dos elementos intrínsecos da obra como aspecto fundamental na função de transcendência ou de transbordamento da qual jamais uma obra literária poderia prescindir, de acordo com seus critérios críticos, pois, para ele, não havendo transcendência, não haveria arte. Tal expediente pressupõe – conforme se pode depreender – que os arranjos estruturais da

obra se combinassem entre si de modo necessário, portanto orgânico, diz-se orgânico e não completo, uma vez que a ideia não implica linearidade e ordem, mas funcionalidade. Nessa diretiva, vale acrescentar que a fragmentação de uma obra não interfere na referida funcionalidade interna. Seus componentes poderiam, segundo o crítico, até mesmo deixar de ser simétricos ou coerentes, porém jamais de ser mutuamente necessários e orgânicos. Assis Brasil aprofundou esse pensamento, quando defendeu o que designou como “concepção literária bem realizada”, pois o equilíbrio entre a concepção (inspiração, intuição, noções prévias) e a realização (materialização racional) da obra garantiria a eficácia estética da mesma. Nesse sentido, o crítico não acolheu com o mesmo entusiasmo, com que foi recepcionado pela maioria da crítica, o romance de Hernâni Donato, lançado em 1960, Selva trágica, (também roteirizado) esgotado rapidamente nas cinco primeiras edições. Para Assis Brasil, o romance era documental, deixando a desejar em sua concepção artística:

Falta a Hernâni Donato contenção, equilíbrio, uma convergência de todos os pontos de sua criação para os personagens, que deixam em seu livro de ser assunto, o tema, o conjunto, para ser apenas o apoio informador daquele campo ervateiro que sufoca tudo o mais (BRASIL, SDJB, 30 jan. 1960, p.7, grifou-se).

O equilíbrio, mencionado no excerto, pode ser explicado como um ponto de confluência entre recursos técnicos, estilísticos, temáticos e realização: um background que conferiria à obra organicidade. Só assim, realizada, a obra poderia ultrapassar-se enquanto estrutura.

O eixo da transcendência foi ganhando consistência ao longo de várias críticas publicada no SDJB, bem como posteriormente. No texto que publicou, em 16 de setembro de 1956, sobre a obra do escritor norte-americano Ernest Hemingway, ainda utilizando-se do termo catarse, terminologia que cedeu espaço à ideia de transcendência, ressaltou: “O velho e o mar é um livro solitário na obra de Ernest Hemingway. [...] Um livro catártico, que por certo lhe terá dado uma grande paz interior” (BRASIL, SDJB, 16 set. 1956, p.2). Embora a transcendência tenha adquirido particularidades em meio aos parâmetros da crítica assisiana, manteve, em alguns momentos, uma relação próxima com a catarse aristotélica, como também foi possível observar na crítica que escreveu sobre o então inédito Diário, de Maura Lopes Cançado, que ainda não havia recebido o título de Hospício é Deus: Diário I, e que foi lançado, posteriormente, em 1965. A obra se promovia – pode-se depreender de suas palavras

– por meio de movimentos que partiam de uma imanência-transcendente para uma

a dor dos pulsos sangrando, a descrição do pátio cinzento e nu, levam – destacou – a um

mergulho “no mundo dos neuróticos e psicopatas de onde saímos, paradoxalmente, purificados” (BRASIL, SDJB, 29 jul. 1961, p.5). Para o crítico, a contração e expansão da

linguagem, da estruturação e do sentido no Diário remetiam a uma organicidade vibrante própria das obras que atingiam uma espécie de singularidade central, pulsante, que tendia ao infinito.

O caráter transcendente da obra aparece também aliado à vertente da alteridade, como também ocorria no romance Doramundo: “uma das qualidades marcantes de Geraldo Ferraz

está na capacidade de nos transmitir o humano” (BRASIL, SDJB, 21 abr. 1957, p.3). De falar

do outro, das suas sensações profundas, agudas.

Os elementos estruturais, em sua dinâmica, promoveriam a “elevação literária” do texto, projetando-a para um além dela mesma. Ressaltou que somente um “pacto artificioso” entre os recursos técnicos da criação garantiria tal sanção. A transcendência não poderia ocorrer, senão pela imanência, organicamente articulada.

Tal parâmetro pode ser entendido melhor, quando o crítico ressalta ausências que o comprometem, como ocorreu na crítica que fez ao livro de contos Terno de reis (1957), de Ricardo Ramos.

Adotando a linha tradicional para os seus trabalhos, Ricardo Ramos nunca consegue dar pelo menos um único toque de organicidade aos seus contos. Todos se movimentam entre o banal e o corriqueiro, e o que mais contribui para tal atmosfera é justamente [...] enxertar coisas nos seus trabalhos literários que absolutamente não funcionam: “Ao passar em frente à venda, notou a musculatura do negro Valério encostado no balcão e sorriu de leve, o primeiro sorriso da manhã [...] A tarde já descambava... Lenços enxugavam o suor, os chapéus se agitavam, afastando o calor [...] [...]”. Esses são alguns

dos “recheios” dos contos de Ricardo Ramos; situações descritivas

completamente dispensáveis, que primam pelo incolor, pelo incaracterístico. O autor, optando por essa narrativa superficial, deixou de dar densidade psicológica aos seus personagens [...] são simples figuras que o autor pôs no seu livro, deixando de lhes dar vida. Os contos [...] sofrem com o descritivo objetivo (sic). Situações do quotidiano, do rotineiro, teriam que ser valorizadas com uma narrativa subjetiva [...], o meio, os objetos acessórios dos contos teriam então uma significação muito maior, muito mais funcional. Ricardo Ramos [...] abusa do telegráfico e do fotográfico[...] as paisagens estão ali, mas não fazem parte do conto, não se integram no mundo de seus personagens, que são neutros (BRASIL, SDJB, 11 ago. 1957, p.2).

Segundo Assis Brasil, há bons recursos nos contos mais curtos do livro, todavia a maioria das narrativas não é construída de modo dinâmico, não gira em torno de um centro singular para o qual deveria convergir toda a estrutura da obra. Somente tal funcionalidade

possibilitaria que os recursos da obra se contraíssem organicamente, para, assim, facultar a dilatação do fluxo simbólico.

Contrariamente a Terno de reis, o romance Chão do inferno (1957), do maranhense Rodrigues Marques, havia sido construído de acordo com aquele pensamento que vigorou na crítica assisiana: uma obra ligada aos percalços cotidianos, transcorrendo o toque do criador na simbologia que sobrepuja os signos. Ao tratar da coletânea de contos Os quatro filhos do Papa (1959), também de Rodrigues Marques, Assis Brasil concedeu mais detalhes sobre a referida relação mútua e orgânica: “o importante é configurar determinada situação num arcabouço onde a ambiência, o clima, o humano, tomam corpo dentro de uma realidade” (BRASIL, SDJB, 6 jun. 1959, p.6). Na consecução dessa ideia, os elementos da obra devem coevoluir, atraídos rumo a um núcleo orgânico, de modo a se projetar em transbordamento simbólico.

No geral, os paradigmas que sobressaíram nos textos assisianos – com exceção do ensaio inédito Poesia: origem sacrossanta da palavra – não se estabeleceram sob a égide de teorias, mas se consubstanciaram, sobretudo, por meio de suas inferências a partir da leitura das obras de escritores nacionais e estrangeiros. No mais das vezes, seus parâmetros se basearam no primado da chamada crítica interna, somente possível em obras de elevado valor estético. Esse trabalho artesanal, engendrado a partir de recursos estéticos selecionados, daria a medida exata do que estava se processando como renovação nos gêneros e, portanto, no sistema literário, segundo ele. As referências a teóricos, stricto sensu, não foram inexistentes, porém inexpressivas se comparadas às alusões feitas aos próprios ficcionistas. Os textos teóricos a que mais aludiu são de autores como Umberto Eco, Roland Barthes, Tzvetan Todorov, Octavio Paz, Haroldo de Campos, Euryalo Cannabrava, para citar alguns nomes. Contudo preferiu ele não monumentalizar a “morte do autor”, tal como abalizada por Barthes, mas centrou seus estudos na própria obra literária. Desse modo, por exemplo, para expor seu pensamento sobre chamado conto moderno, elucidou:

Não precisamos recorrer a críticos e ensaístas para chegarmos a uma conclusão. Basta-nos a leitura de Maupassant em confronto com Tchecov. Os dois mestres nos dão as diretrizes com uma clareza absoluta e poderão até nos sugerir para onde o conto caminha necessariamente. Fora de dúvida que Mansfield bebeu no autor russo, mas recriando sua técnica e dando ao tom poético-jocoso de Tchecov um fio lírico de ressonância mais profunda (BRASIL, SDJB, 6 jun. 1959, p.6).

Partindo dessa postura, o crítico asseverou que um processo crescente de estilização técnica promoveu a Nova literatura brasileira, a partir das inúmeras obras as quais analisou.

Observando o panorama acima apresentado, é perceptível a interdependência entre os suportes operacionais da crítica realizada por Assis Brasil. Este último – transcendência – configura-se, no movimento dos referidos eixos, como um reflexo somente projetado se houver a eficácia dos demais. O amálgama dessas e de outras diretrizes que certamente existem, mas que não foram aqui tangenciadas, conferiu vigor e particularizaram a crítica assisiana.

4 ASSIS BRASIL E A CRÍTICA DE FICÇÃO NO SDJB

Como a proposição da Nova literatura, enquanto núcleo da crítica assisiana, tornou-se a base em torno da qual foram estruturados os capítulos desta tese, considera-se salutar que sejam elucidadas, de maneira detalhada, as hipóteses que possibilitaram que tal fase fosse sistematizada, bem como o processo por meio do qual Assis Brasil incluiu e excluiu escritores que figuraram entre seus expoentes. A despeito dos riscos nos quais incorreu o crítico ao enfrentar o contemporâneo, o fato de se conduzir por referenciais específicos, como os mencionados no capítulo anterior, garantiu referencialidade ao seu trabalho. Portanto, neste capítulo, serão expostos textos publicados no SDJB – por conter as propostas fundamentais do seu pensamento – que, além de mostrarem continuidades e descontinuidades, consistências e ambuiguidades que marcaram tal pensamento, projetam-se como fonte genealógica do Assis Brasil crítico.

Antes de iniciar os tópicos, é oportuno elucidar que a expressão “nova literatura” voltou à tona nos últimos anos, com a finalidade de caracterizar a produção literária brasileira em destaque a partir do início do século XXI. Não deixa de chamar atenção o fato de uma expressão tão genérica (nova literatura) ter sido utilizada duas vezes, em períodos distintos, para designar fases literárias consideradas emergentes.

O escritor e jornalista Paulo Roberto Pires (2012), ao se referir à nova literatura brasileira, esclareceu que a expressão poderia causar certo desconforto para alguns estudiosos, bem como poderia gerar indagações acerca de quais seriam as novidades e quem seriam os escritores que estariam trazendo algo novo para o cenário literário brasileiro, de modo a justificar uma reconfiguração também terminológica.

Enfatizou ele que, no período da redemocratização do país, ao contrário do que aconteceu com o cinema, com a música e com as artes visuais, por exemplo, a literatura demorou a se cristalizar como uma nova cena, o que só pôde ser observado na década de 1990. Destacou que nos anos de 1980 e início de 1990, a vida literária não estava estagnada, porém passava por um momento de transição no qual os escritores retomavam as memórias do período da ditadura militar, lastreada por um forte teor confessional, embora, ressaltou, houvesse exceções como o romance Feliz ano velho (1982), de Marcelo Rubens Paiva. A

“reconstrução da vida literária” teria ocorrido após esse período, na virada dos anos de 1990

Tal reconstrução havia sido provocada, segundo o jornalista carioca, em virtude do advento da internet somado à profissionalização do mercado editorial, em um processo no qual se destacaram também a profusão das bienais e festas literárias, a instituição de vários prêmios literários de grande porte e, ainda, a edição brasileira da revista britânica Granta, lançada em 01 de julho de 2012, que revelou vinte novos escritores (segundo regras da revista, somente contistas com menos de 40 anos). De acordo com Pires, estiveram na origem dessa reconfiguração nomes como Marçal Aquilo, Luiz Ruffato, Nelson de Oliveira, Marcelino Freire, Paulo Scott.

Tanto os mais experientes quanto os mais jovens representantes da nova literatura – fase destituída de homogeneidade temática – apresentam-se, frisou o jornalista, em festas literárias por diversos países. É uma geração que surgiu, a partir de uma “marginalidade

produzida”, uma vez que, muitos deles, ainda bem jovens, mesmo não tendo livros

divulgados, alcançaram destaque, por exemplo, em eventos internacionais. Em tal contexto, ponderou, constata-se que os mecanismos de inserção na vida literária foram alterados e ampliados o que eleva, consequentemente, as dificuldades quanto à delimitação de um cânone.

De acordo ainda com Pires, um elemento em desvantagem, no quadro da nova literatura, seria a venda de livros – não obstante os novos escritores possam contar com a divulgação de seus textos entre os internautas, como também com um público representativo em suas palestras, no que diz respeito ao mercado editorial, as estatísticas não são promissoras. Lembrou o jornalista que o livro ainda é o grande veículo de divulgação da literatura, pois, embora um e-book tenha preço acessível, os suportes tecnológicos para a leitura dos mesmos, os chamados e-readers, possuem, no Brasil, preços consideravelmente elevados, portanto inacessíveis ao grande público. Tal posicionamento revela um traço significativo desses novos escritores, qual seja, o trânsito entre a literatura e as artes visuais. Muitos têm suas obras adaptadas para o cinema como é o caso de Marçal Aquino, João Paulo Cuenca, Laura Erber, Daniel Galera. Acrescentou que diversos escritores se dedicam às suas produções, garantidos por bolsas de fomento à literatura.

Tratando desse novo contexto literário, a jornalista espanhola Cecília Ballesteros, no artigo “A nova literatura brasileira: jovem, branca, urbana e de classe média”, publicado no periódico El País, explicitou:

"Pluralidade é a palavra chave quando se fala de estéticas contemporâneas", assegura Cristhiano Aguiar que, com um único livro de contos (Ao Lado do

prêmio Osman Lins de contos no ano seguinte [...]. Essa literatura cidadã dominada, como em outros países, pela chamada autoficção, a mescla de gêneros, o auge do conto (sic), que tem uma larga tradição, e a narrativa fragmentada e episódica, própria das redes sociais, não apenas prejudica o compromisso, característico da chamada "geração 90", surgida [...] depois da ditadura militar [...]. Também rechaça uma rica e centenária tradição literária e vive em conflito entre a identidade e o cosmopolitismo, sinal dos tempos, sobretudo, em países emergentes, como o Brasil, com 75% da sua população vivendo em cidades de mais de um milhão de habitantes (BALLESTEROS, 2014, s/p).

Do fragmento, pode-se assinalar o destaque à ligação da nova literatura com as redes sociais, com as novas tecnologias o que, consequentemente, impulsiona – como também disse Assis Brasil outrora – a crítica a rever os parâmetros. Ganharam destaque, no texto de Ballesteros nomes como: João Paulo Cuenca (Rio de Janeiro, 1978), o citado Cristhiano Aguiar (Campina Grande, 1981), a poetisa e contista Luisa Geisler (Canoas, 1991), Emilio Fraia (São Paulo, 1982) e Laura Erber (Rio de Janeiro, 1979). São escritores que figuraram

entre os vinte nomes contemplados “pela edição que a prestigiada revista britânica Granta

dedicou ao Brasil e alguns [...] participaram da última Feira de Frankfurt, na qual o país foi o

principal convidado” (BALLESTEROS, 2014, s/p).

O romancista e professor da Universidade Federal do Paraná, Cristóvão Tezza – que esteve na comissão de jurados na referida edição brasileira da Granta (2012) destacando “os vinte melhores jovens escritores brasileiros” –, sobre a referida questão, assegurou – próximo ao que predicou Paulo Roberto Pires – que:

Já houve uma grande ruptura com os anos 1970, que fechou um ciclo mais ou menos clássico da ficção e da poesia do século XX. [...] Nos anos 1980 e 1990, houve uma espécie de hibernação de uma geração intermediária que seguiu novos caminhos, mas foi uma transição. A característica da nova literatura é a ruptura com a tradição clássica. Reflete claramente a nova realidade econômica, política e social do Brasil. Hoje, o país é profundamente urbano e tenta dialogar com a realidade internacional (TEZZA apud BALLESTEROS, 2014, s/p).

Isento de dúvidas, a expressão nova literatura como concebida pelo crítico piauiense, em meados do século XX apresentou, lato sensu, um propósito semelhante ao uso atual do termo, por também designar uma literatura brasileira que promovia revoluções no sistema literário, aspecto que será tematizado nos tópicos a seguir que explicitarão aspectos salutares de sua crítica hebdomadária e, consequentemente, tangenciará a gênese da Nova literatura, conforme seus termos.