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CAPÍTULO 2 – DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSAR AS

1. Dos tipos de conflito

Os quatro círculos restaurativos que acompanhamos referem-se a conflitos ocorridos no contexto escolar, sendo dois deles entre alunos e os outros dois, entre professores e alunos. Vejamos primeiramente os conflitos, para na seqüência problematizá-los.

- F1, F2, F3 e F4: Facilitadores - Ad: Adolescentes ou jovens - Prof: Professor - Profa: Professora - M: Mãe - P: Pai - Av: Avó - I: Irmã - Pesq: Pesquisadora

1.1. Conflito aluno-aluno

No Círculo 1, a adolescente conta que estava na sala de aula durante o intervalo e que o adolescente passou e deu um soco na sua cabeça, o qual doeu muito. Relata que a professora estava em sala, mas não sabe se ela viu. Ela e sua mãe ficaram com medo, pois o adolescente já havia seguido a adolescente e uma amiga, com uma tesoura na mão, na saída da escola, momento em que pediram ajuda a policiais que estavam por perto e nada aconteceu.

O adolescente relata que deu um tapa na cabeça dela porque ele estava copiando a matéria do quadro e ela ficou na frente. Ele pediu licença e ela não saiu. Conta que além deste fato não aconteceu mais nenhum problema entre eles e que a mãe nunca foi chamada na escola por seu comportamento.

No Círculo 3, o conflito também ocorreu em sala de aula, conforme relata a jovem:

Ad – “Eu liguei pro meu namorado pra desejar boa noite pra ele. Aí ele (rapaz) pegou e me chamou de vagabunda. Falei: se eu fosse vagabunda eu teria dado pro pai dele. Ele pegou uma cadeira e falou que ia arrebentar em mim. Eu falei que não era pra ele passar vontade. Aí ele pegou uma lata de coca cheia e arremessou na minha cara e começou a me xingar de puta, de vadia, rasgadeira. Aí a professora falou pra mim que ele tinha problema e que não era pra mim ligar. Na hora da saída os meninos bateram nele e ele falou que fui eu que mandei. (Círculo3)

Este conflito se estende e acaba incluindo a família da jovem, pois o rapaz afirma ter sido ameaçado por eles enquanto prestava depoimento na delegacia. A jovem registra Boletim de Ocorrência pela agressão do rapaz e este registra Boletim de Ocorrência de ameaça do pai da jovem. A agressão ao rapaz por parte de outros alunos da escola não foi registrada na delegacia.

Percebemos, à primeira vista, nesses conflitos uma relação horizontalizada, visto que os Papéis sociais de aluno são desempenhados com uma complementaridade de Papéis simétrica, não hierárquica. Entretanto, olhando mais de perto, percebemos que em ambos os casos há uma verticalização da relação pelo lugar atribuído ao jovem que, no contexto escolar (o mesmo onde ocorre o conflito), é considerado de “inclusão” e “com problemas.”.254

1.2. Conflito professor-aluno

Seguindo a mesma linha de problematização, podemos perceber que os conflitos a seguir referem-se à complementaridade de papéis professor-aluno, porém

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Termos usados por educadores, trazidos ao círculo pela fala dos jovens. Veremos que, além de “ter problemas” e ser “de inclusão” também lhes é atribuído o qualificativo “homossexual,” tanto ao adolescente do Círculo 1 como ao rapaz do Círculo 3. Discutiremos mais detidamente estes aspectos no Capítulo 4.

assimétrica e hierárquica. Aos jovens também são atribuídos Personagens estereotipados, como: “problema”, “silenciado”, “violento”, dentre outros.

No Círculo 2, percebe-se que há um conflito que vem se prolongando entre a professora e o aluno. Por diversas vezes o aluno foi colocado para fora de sala e ele se sente agredido pela professora, pois ela não percebe suas mudanças em relação ao papel de aluno.255

No momento em que o aluno nega-se a sair da sala a professora afirma ter sido agredida física e verbalmente por ele e registra Boletim de Ocorrência. Vejamos como o jovem relata o episódio:

Ad – Ela (professora) falou: O A (jovem) é igualzinho a eles. Educadamente, no meio de todo mundo, levantei a mão, falei: Professora a senhora tá falando ao meu respeito ou a senhora errou meu nome? Não. É você mesmo. E me apontou com o dedo. Aí eu fiquei nervoso e falei, mas não em relação a ela, que eu só tava me f... na mão dela. Eu já tava alterado. [...] Não vou descer que eu não sou bobo de ficar subindo e descendo toda hora, por motivo besta. [...] Quando eu passei na porta a professora começou a apontar como se eu fosse cachorro: Vai, vai, vai!!!! Aí eu comecei a me alterar mais. Aí a tia veio querer me puxar também e falou: Calma A (jovem)! (Círculo 2)

Ao tomar conhecimento das supostas agressões sofridas pelo jovem em sala de aula, a família registra a ocorrência na regional de ensino.

No Círculo 4, apresentam-se dois conflitos interligados. Um, mais amplo, inclui a escola como um todo, conforme relata do professor:

Prof – Nós estamos tendo um período muito difícil da escola, a direção no período da tarde perdeu totalmente o controle, qualquer hora que você chega lá à tarde o pátio está sempre lotado. [...] aí eles agem em grupo, eles fazem arrastões, depredam a escola, queimam carteiras, a sala de troféus quebraram os vidros essa semana, jogaram os troféus em cima do teatro, e ele está sempre nesses grupos. [...] Aí eu fiz o Boletim de Ocorrência. Preciso fazer o Boletim de Ocorrência e quem sabe a partir daí a gente consiga com o Conselho Tutelar, ou sei lá com quem, tentar reverter um pouco, porque a tarde está sem controle algum. Professor não consegue dar aula, a própria direção não consegue mais controlar, porque no início eram sete alunos, parece que agora 18. [...] Depois eu até gostaria de saber como é que a gente vai fazer pra ajudar a escola nesse sentido, porque a gente não pode contar muito com a direção.

F1 – Se a gente fosse até a escola, pra fazer o trabalho lá, será que a direção da escola permitiria?

Prof – Permite, porque tá sem controle. Eu acredito que permite. [...] Claro que tem todo um problema todo de direção, essa direção nova, de 2000 pra cá, aí você vai entender porque tudo isso, já passaram 9 diretores por lá. Porque as direções efetivas elas tem cargos na Prefeitura ou no Estado, não ficam lá, então cada ano muda de direção. E a diretora que hoje tá lá, teve lá um problema na escola e ela chamou os pais, que não deveria chamar, chamou pra uma reunião, porque a gente sempre resolveu, a gente sempre teve problema lá. [...] Ela chamou todo mundo e ainda chamou os pais pra vir ajudar, na madrugada, tudo... Aí foi um desastre, de lá pra cá perdeu totalmente o controle. Aí quem sofre? Os professores que estão na sala de aula, os inspetores, essa inspetora, por exemplo, não sei se vocês ficaram sabendo, jogaram vidro na cara da professora, ela fez até um Boletim de Ocorrência, depois ela entrou em depressão e não voltou também mais, no dia da audiência ela nem foi porque estava doente. Ela ficou com um calombo, então essa é a situação na escola. O que a gente precisa agora é socorro, que vocês ajudem a gente. Eu acredito que não haverá empecilho da direção. [...] Porque muitos professores não são efetivos, estão o primeiro ano na escola, aí pronto, ficam apavorados, ou faltam, faltam, ou vêm e não conseguem ministrar aula.

255 Discutiremos este aspecto mais detidamente no eixo temático referente ao Personagem aluno “problema e

[...] Nós já tivemos reunião na diretoria de ensino, já protocolamos, já pedimos audiência, mas não nos atendeu, mas mandou a supervisora, ficamos um dia das 9 da manhã até as 4 da tarde. A gente já fez tudo que podia, eu sou efetivo desde 2000. E a gente sempre lutou lá, muda a direção a gente tá lá acompanhando. Teve um episódio com a inspetora que um dos alunos, [...] jogou manteiga na cara dela. De lá pra cá ela perdeu a moral totalmente: ó fulana, ó na sua testa tem manteiga. Então acabou com a vida dela, acabaram com a vida dela.

F1 – Antes tinha lá o trabalho de Justiça Restaurativa?

Prof – Tem o pessoal que fez o curso, mas não pratica, precisa do apoio da direção, se não tem apoio aí... Se a escola não abre espaço, então, buscar outro espaço que possa chamar esses alunos, porque como eles foram listados, se não acontece nada, aí pronto.

F1 – Porque aí eu junto o outro grupo de facilitadores e a gente vai até a escola e conversa. (Círculo 4)

Chama atenção o abandono em que se encontram os profissionais desta escola, onde não conseguem desempenhar seu papel social de professor, visto que têm de se desdobrar na tentativa de controle dos atos de vandalismo ou violentos no interior da escola, sem terem formação nem recursos estruturais para isso. A constante mudança da diretoria da escola parece resultar numa “falta de direção”, no sentido de que não há linha de resolução dos conflitos escolares, apesar de haver um grupo de facilitadores dentro da própria escola.

Com o agravamento desses conflitos, o único caminho encontrado pelos professores é recorrer à polícia, através do registro de ocorrência e, conseqüentemente, à Justiça, onde são encaminhados à Justiça Restaurativa.

Depositam no grupo de facilitadores comunitários suas esperanças de que algo seja feito.

Essas demandas da escola, representada pelos professores, incluem um conflito entre um dos professores e um dos alunos, identificado como integrante do grupo de alunos que depredam a escola. O professor afirma que o jovem o ameaçou e registra Boletim de Ocorrência. Vejamos:

Prof – Na verdade no dia não houve xingamento, você tava com a lâmpada, pedi a lâmpada, naquele momento não teve xingamento, você não me xingou, e eu também não. Uma semana depois, [...] falei que esse era o menino que estava com a lâmpada. Foi a partir daí que você já foi agressivo comigo. Quando você foi pra ante-sala aí lá que você me chamou pra porrada. Eu fui pra sala dos professores, quando eu saí você estava em cima do muro.

Ad – Eu? Não teve nada disso.

Prof – Isso, estava lá em cima do muro aí você começou novamente chamar pra porrada. Foi a partir daí, uma semana depois, que eu abri o Boletim de Ocorrência. Nos tumultos você estava sempre presente. (Círculo 4)

Importante destacar que um conflito geral na escola é singularizado no conflito com o jovem, da mesma forma, esse jovem passa a representar as ações daquele grupo como um todo. Torna-se bode-expiatório de toda uma relação conflituosa existente na escola, entre professores e alunos. Todavia, esta situação abre a

possibilidade de trabalhar o conflito mais amplo, no âmbito da escola, por meio da Justiça Restaurativa.

Voltando a problematizar os conflitos de uma forma geral, chama a atenção que os conflitos acontecem em espaços escolares, na presença ou com a participação de educadores, os quais não intervêm para buscar uma solução do conflito no próprio contexto escolar. O mesmo acontece com os demais funcionários da escola, como a equipe de direção, que também não costuma intervir nos conflitos. Os conflitos se agravam e tomam outras rotas institucionais, como veremos no próximo item.

Essas constatações reforçam análises feitas anteriormente,256 de que os conflitos referem-se a “incivilidades”, conflitos do cotidiano que, neste caso do contexto escolar, poderiam ser resolvidos por mecanismos da própria escola, em seu espaço institucional. No entanto, isentando-se de sua parcela de responsabilidade, a escola transfere o problema para o sistema judicial.

Correndo o risco de se judicializar questões escolares cotidianas, colocando a indisciplina e as turbulências escolares no mesmo patamar do ato infracional. Se há o outro efeito – bastante importante – de redução do encaminhamento das situações de conflito escolar ao sistema de justiça propriamente (e, nesse sentido, uma “desjudicialização”), trata-se de argüir e pensar esses outros efeitos.257