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CAPÍTULO 2 – DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSAR AS

2. Encontro

A idéia de Encontro está presente na obra de Moreno desde seus primeiros trabalhos e é considerada um conceito chave da teoria psicodramática.

Encontro significa mais do que uma vaga relação interpessoal (Zwischen Mensschliche Beziehung). Significa que duas pessoas se encontram, mas não somente para se enfrentarem, e sim para viverem e experimentarem-se mutuamente. [...] Em um Encontro as duas pessoas estão ali, com todas as forças e debilidades, dois atores humanos explodindo de espontaneidade, apenas em parte conscientes de seus fins comuns.172

Conforme destacamos anteriormente, o encontro, no sentido moreniano, só é possível entre duas pessoas que estão em uma relação télica, de real percepção mútua. Desta forma, mesmo que entre duas pessoas não haja o Encontro moreniano, os processos psicodramáticos buscam o aprimoramento das percepções mútuas entre as pessoas. Moreno assim define Encontro: “dois indivíduos com experiências pregressas diversas, com expectativas e papéis diferentes, encarando um ao outro, um terapeuta em potencial de frente para outro terapeuta em potencial.”.173

Nessa passagem, Moreno discute o Encontro e as relações de saber-poder atribuídas aos coordenadores de um grupo, sejam eles médicos, conselheiros ou sacerdotes, afirmando que o status profissional pode afastar o indivíduo do real Encontro com o outro.

Moreno amplia essas afirmações referentes às relações de poder em um grupo com os seguintes postulados: “(a) o grupo está em primeiro plano e o terapeuta encontra-se subordinado a ele; (b) o terapeuta, antes de emergir na

171

Perazzo, p.35, 2009.

172 Moreno, p. 336, 1966 In: Bustos, p. 39, 1992. 173 Moreno, p. 20, 1983.

qualidade de líder terapêutico, é simplesmente outro membro do grupo; (c) ‘cada homem é o agente terapêutico do outro.’”.174

Bustos afirma que, em relações marcadamente assimétricas (professor-aluno, pai-filho, empregador-empregado, terapeuta-paciente) existem papéis e condutas específicos, que remetem a direitos, obrigações e responsabilidades diferentes e, se as diferenças são quebradas, as disposições se confundem.175 Apesar da assimetria, Bustos, afirma ainda que o Encontro entre as pessoas nesses papéis é possível e que as responsabilidades são proporcionais aos papéis. Nas relações simétricas as responsabilidades são as mesmas. Nas relações assimétricas há um “contrato” que estabelece os papéis que estão em jogo. A quebra do “contrato” pode impossibilitar o encontro, o que não significa que não possa haver profunda interação emocional entre as pessoas nos papéis. “Moreno disse que o Encontro não inclui apenas a aceitação, mas também a resposta, a recusa, ‘a soma total de aspectos emocionais de uma relação.’”.176

Portanto, Bustos afirma que em relações entre papéis assimétricos certa verticalização é necessária e saudável, devendo ser evitada a tentativa de horizontalização “artificial”, pois gera uma situação de anarquismo e, conseqüentemente, de autoritarismo. Isto ocorre porque, na tentativa de escapar de regras rígidas, as mesmas são desconstruídas. Porém a pessoa que está no papel complementar tem expectativas em relação às regras pertinentes a essa relação e sente-se desorientada sem elas. Assim, ciclicamente, volta-se ao autoritarismo.177

Se um vínculo vertical se horizontaliza, é impossível fazê-lo sem uma profunda modificação do código. Caso essa modificação ocorra, o novo código assumirá o comando do vínculo. Logo, não é possível sobrepor o código gerado no vínculo vertical até um horizontal. Isso só cria confusão e caos.178

Desta forma, a assimetria das relações, que implica verticalidade, por remeter a Papéis sociais e âmbitos diferentes de responsabilidade, não significa que a horizontalidade das relações não possa ocorrer, uma possibilidade, sempre, para as relações humanas compartilhadas.

174 Moreno, p. 24, 1983. 175 Bustos (1992). 176 Bustos, p. 43, 1992. 177 Bustos (1992). 178 Idem, p. 49.

IV - Teoria de papéis e o conceito de papel

A palavra papel (role, rotulus) tem origem grega e romana e refere-se aos “rolos” em que eram escritas as peças de teatro. Com o teatro moderno retomou-se a prática, sendo os rolos de peças lidos para os atores decorarem seus papéis. Cada parte cênica passou a ser chamada de papel ou role. Naffah faz este estudo etimológico da palavra papel (rotulus, role, rótulo) e afirma que “na medida exata em que o rótulo aumenta, diminui nosso contato com a substância que ele envolve”.179

Moreno destaca que o Papel é:

A forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. [...] A função do papel é penetrar no inconsciente, desde o mundo social, para dar-lhe forma e ordem.180

Martin afirma que, para Moreno, o homem só tem consciência de si experimentando um Papel. Fazendo referência à tese de Moreno, afirma: “uma criança nunca poderá ter consciência do seu eu, se não começar a desempenhar Papéis. O primeiro que existe é o Papel e dele surge o eu.”181

Moreno faz a distinção entre três diferentes categorias de Papéis vivenciadas pelo sujeito: psicossomáticos, psicodramáticos e sociais.182 É importante destacar

que essa formulação teórica está pautada na Matriz de Identidade,183 em que Moreno discorre sobre o desenvolvimento humano desde seu nascimento: um momento inicial de indiferenciação do “ser” em relação ao outro (fase do duplo); em seguida, o “ser” passa a se diferenciar (fase do espelho); e, depois de perceber o outro, pode atuar como outro (fase da inversão de papéis). Retomemos sua diferenciação dos Papéis:

Papéis Psicossomáticos – Papéis iniciais da infância, vinculados às necessidades fisiológicas iniciais e de sobrevivência, como ingeridor, eliminador e dormidor.

Papéis Psicodramáticos - Papéis imaginados, vinculados à fantasia, podem ou não ser vivenciados no palco psicodramático ou no contexto social.

Papéis Sociais – Papéis reais de pai, mãe, filho, professor.

Os papéis psicossomáticos, ao serem desempenhados, ajudam a criança a experimentar o que chamamos “corpo”; [...] os papéis psicodramáticos a ajudam a experimentar o que denominamos “psique”; e [...] os papéis sociais

179 Naffah, p. 170, 1979. 180 Moreno, p. 27-8, 1984. 181 Martin, p. 213, 1996. 182 Moreno (1984).

contribuem para fazer surgir o que chamamos “sociedade”. Corpo, psique e sociedade são, portanto, as partes intermediárias do eu total.184

Assim, Moreno destaca que a criança começa a atuar desde o nascimento, desempenhando Papéis psicossomáticos. Inicialmente, a criança integra-se na sociedade familiar, para através dela integrar-se no ambiente sócio-cultural. “O desempenho de Papéis é anterior ao surgimento do ego. Os Papéis não decorrem do eu, mas o eu pode emergir dos Papéis.”.185

Além disso, Moreno verificou que a representação de um Papel não significa capacidade de percebê-lo, assim como percebê-lo não significa conseguir representá-lo.186

A teoria psicodramática aponta, além disso, para a frágil delimitação entre as três categorias de Papéis, visto que elas se entrelaçam quando o ser está desempenhando os diferentes Papéis.

Alguns autores187 retomaram as proposições de Moreno e problematizaram a conceituação dos diferentes Papéis. Exporemos a seguir essas contribuições, visto que são importantes revisões e aprofundamentos da teoria de Papéis de Moreno.

Ao definir Papel como “um conjunto de atos, segundo o modelo prescrito por uma determinada sociedade, na interação entre seres humanos”.188, Mezher questiona a própria existência dos Papéis psicossomáticos, visto que, neles essa interação não seria possível e propõe a substituição do conceito de Papel psicossomático por “zona corporal em ação”.189

Já Perazzo, estudando os Papéis imaginários e psicodramáticos, afirma que Moreno não os diferenciava, pois ambos incluem fantasia e imaginação, independentemente do locus.190

Essa diferenciação foi feita por Naffah, ao considerar que psicodramático é o Papel atuado no palco psicodramático e imaginário é o Papel não atuado, que permanece na imaginação e fantasia do sujeito, não é inter-relacional.191

A partir das proposições de Mezher e Naffah, Bustos e Perazzo aprofundam a problematização referente à Teoria de Papéis moreniana e, em específico, sobre

184 Moreno (1984) In: Martin, pp. 214, 1996. 185 Moreno, p. 210, 1984.

186

Moreno (1984).

187 Naffah (1979), Mezher (1980), Gonçalves (1988) e Perazzo (1994 e 2009). 188 Mezher, p. 221, 1980.

189

Mezher, p. 223, 1980.

190 Perazzo (1994). 191 Naffah (1979).

Papel psicossomático. Para eles, o que Moreno havia definido como Papel psicossomático, refere-se a funções vitais essenciais ao desempenho do Papel social de filho.192

Segundo Bustos,

Para que uma ação tenha categoria de papel, deve preencher alguns requisitos básicos, sendo o mais importante a consciência possível sem a qual não se pode admitir esse comportamento como sendo unidade de conduta.193.

Com base nisso, considera que em relação à criança não é adequado usar um conceito de interação social como o conceito de Papel, pois ainda está no período de Matriz de Identidade, tem uma precária maturação psicofísica, e o desempenho deste Papel social de filho tem a função de internalizar as regras trazidas pela mãe, convertendo-as em estruturas do eu.194

Perazzo desenvolve essas discussões e cria uma categoria que nomeia como Papéis de fantasia os quais, apesar de serem do âmbito imaginário, são livres de transferências e podem ser jogados fora do contexto psicodramático.195

Moreno define o Papel social como “uma unidade de experiência sintética em que se fundiram elementos privados, sociais e culturais [...] uma experiência inter- pessoal que necessita, usualmente, de dois ou mais indivíduos para ser realizada”.196

Para Bustos os Papéis sociais são “os que correspondem às generalizações convencionais de acordo com determinantes culturais”.197 Destaca que, segundo Moreno, cada Papel social é formado por fatores individuais e coletivos. Outra característica dos Papéis sociais é que eles são complementares,198 papel e contra- papel e como o indivíduo estabelece diversas relações, forma-se o Cacho de Papéis, ou clusters.199 Esses Papéis complementares trazem vínculos de dinâmica passiva

(filho-mãe), ativa (filho-pai) ou interativa (irmão-irmão).

192 Bustos (1990) e Perazzo (1994 e 1999). 193 Bustos, p. 72, 1990. 194 Bustos (1990). 195 Perazzo (1994 e 1999). 196 Moreno, p. 238, 1974. 197 Bustos, p. 73, 1990. 198

Por papel ser um conceito inter-relacional, qualquer papel possui um contra-papel, o papel complementar, que completa a relação formando um vínculo. Por exemplo, ao papel de mãe corresponde o complementar filho. Cada papel existente tem seu complementar. (Bustos, 1990).

199

Cachos de papéis, também conhecido como agrupamento de papéis ou ainda clusters. Bustos (1990) desenvolve a teoria dos clusters. Os papéis se agrupam segundo sua dinâmica, configurando três clusters, a partir da Matriz de Identidade. O cluster um está relacionado aos papéis mais passivos; o cluster dois aos papéis mais

Perazzo define Papel social como “um atributo do indivíduo, conferido consensualmente pela sociedade”.200

Conforme afirma Martin, os indivíduos podem, de certa forma, escolher o Papel social que querem desempenhar, mas em alguns casos têm de aceitar o que lhes é imposto. Em ambos os casos, os Papéis assumidos exigem uma conduta socialmente determinada.201

Moreno afirma ainda conclui que é uma vantagem metodológica estudar Papéis, visto que é mais concreto que personalidade ou ego. Se considerarmos os Papéis que o indivíduo desempenha podemos observar o “eu” que experimenta, são os aspectos tangíveis e operacionais do “eu”.202

Levando-se em consideração as contribuições contemporâneas ao conceito de Papel e suas diferentes classificações, tomaremos por base de análise a classificação adotada por Perazzo:

- Papéis sociais: designa todos os papéis da vida cotidiana, vivenciados nas relações mais diversas (papel de pai, de médico, de amigo, de filho, de marido, etc.)

- Papéis psicodramáticos: jogados apenas no cenário psicodramático, servindo de elo de ligação entre os Papéis sociais e os Papéis imaginários.

- Papéis imaginários: Papéis conservados dentro do sujeito (encapsulado) e não atuados (conservados ou não pela transferência). Expressão conservada do desejo.

- Papéis de fantasia: não atuados e não conservados necessariamente pela transferência, podendo ser jogados dentro ou fora do cenário psicodramático.

- Papéis dramáticos: desempenhados por atores.203

V - Personagem

Como pudemos perceber, o conceito de Papel já foi bastante aprofundado e teorizado, desde seu fundador (Moreno) até os psicodramatistas contemporâneos. Já em relação ao conceito de Personagem, como evidencia Perazzo, há pouca discussão e escritos. Segundo ele, há uma incorporação desses termos por parte dos psicodramatistas devido ao seu constante uso, considerando-os muitas vezes

ativos, e o cluster três refere-se aos papéis interativos, que são os mais simétricos. As três dinâmicas são possibilidades alternativas no desempenho de todos os papéis. (Bustos, 1990).

200 Perazzo, p. 83, 1986. 201

Martin (1996).

202 In: Martin, 1996. 203 Perazzo (2009).

como sinônimos, ambos referidos “a uma representação de um ser humano e sempre produto da imaginação.”.204

Entretanto, como o psicodrama tem suas bases nas técnicas de ação, derivadas do teatro, consideramos importante aprofundar a discussão do conceito de Personagem para além de seus aspectos práticos, visto que abre uma chave conceitual para a discussão que nos propomos nesta pesquisa.

Aguiar contribui afirmando que os Personagens podem ser não-humanos e trabalha o conceito de Personagem vinculado às práticas do teatro espontâneo. Afirma que, de forma geral, o Personagem possui um conflito, o qual não necessariamente pertence ao ator. No teatro espontâneo psicoterápico é freqüente que esse conflito pertença ao ator e ao Personagem, assim, é preciso que seja definido para construir o Personagem e trabalhado.205

Calvente desenvolve o conceito de Personagem paralelamente à Teoria de Papéis de Moreno, ampliando-a.206 Outros autores psicodramáticos contemporâneos aprofundaram também a Teoria de Papéis, como foi visto anteriormente, visto que, em sua origem, Moreno não diferenciava especificamente Papel de Personagem, principalmente em relação aos Papéis psicodramáticos.

Para Calvente, “o Personagem não nasce da natureza e, sim, da imaginação. Sua origem é a subjetividade.”.207 O Personagem integra aspectos relacionais e está entre a elementariedade do Papel e a complexidade da Identidade. Afirma que é pelo Personagem que se revela e é colocada em evidência a subjetividade. Diz ele: “suspeito que seja um híbrido, um produto transicional, um mestiço. [...] está ligado à fantasia e à imaginação, e também ao ambiente. Contém aspectos conscientes e inconscientes”.208

Um Personagem rígido (conservado) pode tomar grande parte da subjetividade de uma pessoa, fazendo com que se relacione, nos diferentes contextos, sempre através daquele mesmo Personagem, com pouca ou nenhuma espontaneidade.

Fazendo uma análise comparativa entre Personagens e Papéis, Calvente afirma que o Personagem não se constitui especificamente enquanto aspecto 204 Perazzo, p. 55, 2009. 205 Aguiar (1998). 206 Calvente (2002). 207 Calvente, p. 26, 2002. 208 Calvente, p. 26, 2002.

vincular, ele possui uma intencionalidade e roteiro próprios, estabelecidos na sua origem, no status nascendi e, por isso, é mais independente do aspecto relacional no aqui-agora. Enquanto isso, o Papel é um conceito com a lógica e coerência relacional, delimitado pelo contra-papel e pelo efeito Cacho de Papéis.209

É nessa lógica da complementaridade de Papéis e Cacho de Papéis que “um mesmo Personagem aparece representando papéis diferentes, mas com uma coerência e uma lógica próprias do Personagem.”.210 Lógicas conservadas e vivenciadas pelo ator social nos diferentes Papéis. A função do Personagem está vinculada, de acordo com Calvente, à sua origem, ao seu processo de formação e ao contexto em que se insere. “A origem é a fantasia e a imaginação que, modeladas pelas relações, geram Personagens mais ou menos expressivos e úteis, que permanecem ou vão sendo abandonados.”.211

Calvente afirma que os Personagens podem ter origem recente ou ser muito antigos na história do sujeito e, normalmente, têm a função de auxiliá-lo em momentos de dificuldade e em situações em que o sujeito sente-se ameaçado, ocasiões em que surgem como ato criativo. Entretanto, o próprio Personagem pode, no seu processo de estabelecimento, tornar-se uma ameaça para o sujeito e para as inter-relações, enrijecendo-as e tornando-as pouco espontâneas, pois são as formas de comportar-se deste Personagem que se repetem nas diferentes relações e contextos, configurando uma “resposta velha às situações novas”.212

Em relação à formação do Personagem, Calvente afirma haver três diferentes formas,213 conforme segue:

- Personagem assumido (equivalente ao role-taking): em parte elaborado e em parte imposto ao sujeito, com pouca espontaneidade. São Personagens rígidos, têm característica defensiva e estão vinculados a situações de rejeição.

- Personagem representado (equivalente ao role-playing): é menos rígido e tem mais espontaneidade. Aparece em situações novas, e busca dar conta da ansiedade nessas situações. Aos poucos, ao se sentir seguro, a pessoa por detrás do Personagem pode ir se despindo e revelando-se.

209 Calvente (2002). 210 Calvente, p. 27-8, 2002. 211 Calvente, p. 29-30, 2002. 212 Calvente, p. 31, 2002. 213 Calvente (2002).

- Personagem criativo (equivalente ao role-creating): com maior espontaneidade, Personagem e pessoa quase se confundem, um está incluído no outro. Ainda assim, a subjetividade “cria” o Personagem que, em sua criação, foi espontâneo.

Para Calvente, o Personagem é um recurso que a pessoa possui e pode ou não utilizar. Podem ser generalizações sociais, de âmbito coletivo, que aludem a características das pessoas, por exemplo, católicos, provincianos e marginais. Nesses casos, refere-se a um pré-juízo, geralmente utilizado de forma depreciativa e pode personificar-se em apenas uma pessoa, que se torna representante daqueles que se identificam com o mesmo. Em instituições, esses Personagens podem apresentar-se como estereótipos institucionais e referir-se propriamente àquele contexto ou expandir-se para outros contextos vivenciais.214

Segundo Perazzo,

A contribuição notável de Calvente é a de nos chamar a atenção para determinadas formas repetitivas de comportamento em papéis sociais diferentes como que configurando um Personagem conservado que se repete em situações e contextos diversos.215

Perazzo acrescenta que o Personagem estereotipado, conservado, “migra através do efeito cacho ou feixe de papéis em múltiplas complementaridades dos mais diferentes papéis sociais.” 216

Calvente e Perazzo privilegiam em suas práticas o contexto psicoterápico e é a partir desse olhar que teorizam e fazem uso do conceito de Personagem. Para Perazzo, interessa identificar qual Personagem interno dos vínculos primários potencializa a co-construção de transferências217 em seu status nascendi.218

Buscando integrar as contribuições teóricas dos autores219 que tem por base, propõe que:

A transferência e seu status nascendi representam um conjunto em que, em um vínculo primário, através de uma complementaridade de papéis sociais se estrutura um Personagem conservado pelo poder simbólico atribuído ao outro, tendo como pauta uma lógica afetiva de conduta.220

214 Calvente (2002). 215

Perazzo, p. 55, 2009.

216 Perazzo, p.55, 2009.

217 Transferência entendida aqui como transferência de papéis. 218

Perazzo (2009).

219 Calvente (2002), Nery (2003), Baiocchi (2003). 220 Perazzo, p. 56, 2009.

No contexto psicoterápico, a função do trabalho psicodramático é desvendar, desmontar, desmascarar e desconstruir os aspetos transferenciais do Personagem e possibilitar a construção de novas formas relacionais, mais espontâneas.221

Perazzo222 destaca a importância dessas discussões para trabalhar psicodramaticamente com repetições, heranças e destinos intergeracionais, que são cumpridos passivamente pelo sujeito. Buscando, dessa maneira, romper com o poder simbólico do contra-papel no status nascendi e esta conserva, possibilitando um insight dramático que aciona um impulso de transformação e a ação dramática e vivencial espontâneo-criativa.

Calvente afirma ainda que, em relação ao Papel complementar: “Temos constatado que o complementar pode ser o verdadeiro gerador desse Personagem”223

Podemos afirmar, assim, que, apesar do Papel estar mais vinculado ao inter- relacional e à complementaridade de Papéis, o Personagem pode ser atribuído e imposto ao sujeito pelo Papel complementar. Sendo que o sujeito poderá desempenhá-lo com comportamentos reiterados e estereotipados.224

Calvente define o Personagem como “aquele que nos habita, que construímos, que nos foi imposto e aceito.”225 Também encontramos, nesta pesquisa, Personagens impostos pelos papéis complementares, porém, em muitos casos, estes não são aceitos e atuados pelo ser, afirmando os movimentos de resistência e espontaneidade como potenciais deste ser, em sua singularidade e em seus aspectos inter-relacionais.

Perazzo nos chama atenção, no entanto, para o fato de que “o papel é um roteiro agido por um ator ou atriz através de um Personagem”.226

Podemos afirmar que os conceitos de Papel e Personagem pertencem ao mesmo território da co-existência: trazem a marca de como o “ser” se percebe e é percebido. Entretanto, Papel é o roteiro de conduta na ação, e o Personagem aglutina, num “modo de ser”, aspectos e dimensões desses roteiros de conduta.

221 Perazzo, 2009.

222 Fazendo referência ao artigo de Naffah (1980) O drama da família pequeno-burguesa e à dissertação de

mestrado de Márcia Almeida (1995) Valorizando os avós na matriz de identidade.

223 Calvente, p. 41, 2002.

224 Calvente (2002) afirma que este Personagem estereotipado, conservado, emerge por metáforas, conforme foi

destacado por Contro,224 e, por estar no contexto figurado, pode ser atravessado por diversos sentidos.

225 Calvente, p. 63, 2002. 226 Perazzo, p. 55, 2009.

Do lugar da Psicologia Social, o conceito de Personagem nos ajuda a identificar, nos contextos das instituições, os Personagens estereotipados atribuídos ao ser, e suas resistências a essas imposições. Do lugar de quem se preocupa com a possibilidade de transformação do outro, o drama se dá quando o ator social incorpora o Personagem atribuído ou vive a agonia de lutar contra ele e resistir.

VI - Do Psicodrama no contexto de pesquisa

Propomos, inicialmente, uma problematização do psicodrama como metodologia de pesquisa, sua inserção na pesquisa acadêmica, para além de técnicas de intervenção, destacando seus referenciais epistemológicos e as contradições existentes desde seu fundador (J.L.Moreno) até os psicodramatistas contemporâneos. Na seqüência, esclarecemos o modelo de pesquisa desta dissertação, evidenciando o seu embasamento filosófico e teórico no Psicodrama.

Seguimos a partir da pergunta de Brito: “O que o psicodrama tem a oferecer no âmbito da pesquisa universitária?”.227 Sua resposta: um método de pesquisa