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CAPÍTULO 2 – DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSAR AS

2. Sinopses dos círculos

Cenário dos círculos: biblioteca de uma escola estadual. A biblioteca é uma sala ampla e bem iluminada, com muitas mesas redondas, cada uma com várias

cadeiras. Tem prateleiras cheias de livros, muitos dos quais são novos. A porta é dupla, com uma porta comum de madeira e outra de ferro, gradeada e com cadeado.

2.1. Círculo 1:250

Comparecem as duas partes do conflito. Uma das partes é constituída por um adolescente de 14 anos e sua mãe. A outra parte é constituída por uma adolescente também de 14 anos, sua mãe e a irmã, de aproximadamente 7 anos. Fazem parte do círculo restaurativo, também, duas facilitadoras e a pesquisadora.

O conflito refere-se à agressão, em sala de aula, do adolescente, que deu um tapa/soco na cabeça da adolescente, apesar de ambos afirmarem que sempre tiveram um bom relacionamento. Quem fez o Boletim de Ocorrência foi a adolescente, pois o tio a levou ao hospital e o médico que a atendeu afirmou que deveriam fazer o Boletim de Ocorrência. A professora estava em sala, mas os adolescentes não sabem se ela viu o que ocorreu.

O adolescente afirma que fez isso porque ele estava copiando a matéria do quadro e ela ficou na frente e, apesar de pedir licença, ela não saiu. Ele é tido na escola como aluno “de inclusão”.251 A adolescente conta que ele não tem dificuldades de relacionamento com os outros adolescentes e que ele só mexe com as meninas, pois tem medo dos meninos. Conta que ele é “ignorante e excluído”.

Ele já a havia seguido, a ela e a uma amiga, com uma tesoura na mão, na saída da escola, momento em que pediram ajuda a policiais que estavam por perto. A mãe está bastante apreensiva e preocupada com a possibilidade desse conflito se agravar.

No acordo, realizado sem a presença das mães, ele afirma que poderia pedir licença a ela com mais educação. A proposta dele de acordo é que ela não fique na frente do quadro e que ela saia quando ele pedir. A adolescente diz que sairá da frente do quadro e respeitá-lo.

As mães são convidadas a entrar na sala novamente e as facilitadoras contam para elas o acordo que foi feito entre os adolescentes.

250 É importante destacar que este círculo não foi gravado, pois os facilitadores ainda não haviam assinado o

Termo de Consentimento (anexo). Entretanto, o uso das anotações feitas foi permitido verbalmente pelos facilitadores e pelos participantes. Os círculos que se seguiram foram gravados com autorização dos facilitadores e dos participantes dos círculos.

251

A expressão “de inclusão” refere-se ao processo de inclusão, em salas regulares de ensino, de alunos tidos anteriormente como “de classe especial”, que incluíam alunos com necessidades especiais de ensino, desde dificuldades de aprendizagem até diferentes síndromes e deficiências físicas ou mentais.

O adolescente pede desculpas à menina e ela diz que não tinha a intenção de prejudicá-lo, fez o Boletim de Ocorrência porque o médico disse que deveria fazer. O pós-círculo é marcado para dali a 15 dias.

Depois de 15 dias, comparecem para o pós-círculo. A adolescente e sua mãe chegam no horário e são ouvidas, confirmam que o acordo foi cumprido e o conflito cessado, que o relacionamento está melhor. Assinam o documento que será encaminhado ao fórum e são dispensadas. Quando o adolescente e sua mãe chegam já está em andamento a realização de outro círculo e lhes é pedido que aguardem um pouco. Depois de alguns minutos, a facilitadora que conduzia o círculo pede que eu vá até o local onde os dois estão aguardando, confirme se o acordo foi cumprido e o se o conflito cessou e, em caso positivo, colha suas assinaturas. Assim faço. As partes não se encontram no espaço do pós-círculo, mas relatam que se encontraram nos corredores da escola.

2.2. Círculo 2:252

Comparecem ao plantão restaurativo o adolescente de 17 anos e sua irmã de 34 anos. Estão presentes também duas facilitadoras e a pesquisadora. Apesar de ter afirmado em audiência no Fórum que compareceria, a professora (que constitui a outra parte do conflito) não foi ao círculo. Trata-se de um conflito prolongado entre professor e aluno, em que o jovem se sente constantemente agredido pela professora, com insultos verbais. Entretanto, quem registra o Boletim de Ocorrência é a professora, pois afirma ter sido agredida fisicamente pelo jovem em episódio que foi por ele relatado no círculo. Após o registro desse Boletim de Ocorrência, o jovem e sua família também registraram ocorrências de bullying junto à escola e às autoridades de ensino.

É importante destacar que os fatos relatados no círculo restaurativo referem- se ao olhar do jovem e da sua irmã, visto que a professora não compareceu. Foi realizado o pré-círculo com o jovem, onde ele pôde expressar-se porém, o círculo propriamente dito não ocorreu nesse dia, pois, ultrapassado em pouco mais de 1h o horário marcado para a sua realização sem o comparecimento da professora, a atividade foi encerrada pela facilitadora. Não temos informações da continuidade desse círculo.

252 Apesar de utilizarmos o termo círculo, o que de fato ocorre é o pré-círculo, pois apenas uma das partes do

2.3. Círculo 3:253

Presentes ao círculo restaurativo uma jovem de 16 anos, acompanhada de sua mãe, seu pai e seu irmão de aproximadamente 10 anos, que fica numa mesa ao lado e não participa, apenas escuta. Além disso, estão presentes quatro facilitadores, um deles que estava havia bastante tempo afastado da prática e estava retornando. Ainda estão presentes duas pesquisadoras de mestrado e uma de graduação, colega de uma facilitadora.

O círculo restaurativo refere-se a um conflito entre a jovem e um rapaz (23 anos), colegas de sala. O conflito inicial entre os jovens se desdobra num conflito com os pais da jovem, principalmente o pai. Desta forma, inclui dois processos: um da Vara da Infância e Juventude, que se refere ao conflito entre a jovem e o rapaz e cujo Boletim de Ocorrência de agressão foi feito pela jovem; o outro, do Juizado Especial Criminal (JECrim), que se refere a uma ameaça do pai da jovem ao rapaz, que, por sua vez, faz o respectivo Boletim de Ocorrência, que destacaremos mais adiante.

Comparece ao círculo restaurativo apenas uma parte do conflito, o rapaz não comparece. Os relatos são da jovem e de sua família. Percebemos no transcorrer do círculo restaurativo que o pai fala em poucos momentos. Além disso, ocorre uma discussão bastante acalorada sobre o conflito entre a jovem e o rapaz, que apesar de não estar presente, é “representado” por um dos facilitadores que toma seu papel em alguns momentos. Durante boa parte do círculo ocorrem muitos olhares e falas paralelas.

Em linhas gerais, a jovem afirma ter sido agredida física e verbalmente pelo rapaz, que achava que ela tinha feito algum comentário sobre a sexualidade dele. Ao sair da escola o rapaz foi agredido por outros jovens que “tomaram as dores” da adolescente. O rapaz chamou a polícia, que aborda a jovem no caminho de casa, afirmando que ela teria mandado agredi-lo. Ela vai para a delegacia com seus pais, assim como o rapaz. Lá, o conflito se desdobra e inclui os pais, pois, o jovem sente- se intimidado pelos olhares e comentários deles em relação a ele. O conflito se intensifica e se prolonga até o dia seguinte. A jovem passa a não ir mais para a escola.

2.4. Círculo 4:

Constituem o círculo restaurativo as duas partes do conflito: um jovem de 16 anos com sua avó; e um professor acompanhado de uma professora, que trabalha na mesma escola. Está presente também uma facilitadora, que está sozinha. As facilitadoras normalmente trabalham em dupla, porém neste dia as outras não puderam comparecer. Desta forma, sou convidada a agir como facilitadora. Ela pede a mim que a ajude se eu achar que é necessário, se eu achar que ela “tá se perdendo”, afirmando: “você já conhece como funciona”. Além disso, no decorrer do círculo, outra pesquisadora (mestrado na UFSCAR) chega de surpresa e, com autorização da facilitadora, observa o círculo.

O círculo restaurativo refere-se ao conflito entre o jovem e o professor, que fez o Boletim de Ocorrência de ameaça. Entretanto, visando resolver um problema da escola com um grupo de jovens que fazem ameaças, agressões físicas e verbais e com comportamentos que geram danos patrimoniais, outros 19 adolescentes são convidados a comparecer ao círculo, juntamente com seus responsáveis. Desses jovens, apenas um (de 15 anos) e seu pai comparecem, mas só participam da parte inicial de apresentação do círculo, pois não estavam vinculados diretamente ao conflito entre o professor e o aluno. A facilitadora decide privilegiar a realização do círculo restaurativo do conflito específico professor-aluno e realizar posteriormente um círculo restaurativo na escola com a presença dos demais alunos e responsáveis. De forma geral, este círculo restaurativo se divide nas seguintes etapas:

1- Apresentação: com a presença de todos, não há apresentação do Código de Boas Práticas como normalmente é feito, apenas a explicação de que serão ouvidos separadamente primeiro e depois todos juntos.

2- Escuta dos professores. 3- Escuta do jovem com a avó.

4- Reunião das partes novamente. O jovem fala primeiro, depois o professor. Há uma segunda versão do conflito.

5- O jovem é convocado a assumir seus atos, ser verdadeiro. Fica evidenciado, neste momento, que a verdade dos fatos precisa aparecer. A avó questiona professores e escola por não ter conhecimento dos fatos e dos comportamentos do jovem que estão relatando. Nesse meio tempo, o outro jovem e

seu pai, que aguardavam do lado de fora, são liberados, pois participarão do círculo na escola com todos os envolvidos.

6- Acordo.

Este círculo restaurativo, comparando-se aos anteriores, é mais complexo, pois estão presentes as duas partes do conflito, que têm versões diferentes dos fatos e versões que se contradizem e se alteram no desenrolar do círculo. Além disso, neste círculo fica mais evidente as questões relativa à relação de idade, objeto desta pesquisa e que será mais profundamente analisada no capítulo a seguir.

Passamos agora a olhar para cada cena ou passagem de cena dos círculos restaurativos. Entretanto, é importante destacar que, visando preservar a identidade dos participantes desta pesquisa, seguimos a legenda, abaixo, para as transcrições de todos os círculos.

III - Dos conflitos e seus encaminhamentos

Após explanação dos aspectos mais estruturais e formais dos círculos restaurativos e de uma visão geral de cada círculo, por meio das sinopses, propomos a partir de agora analisar os tipos de conflitos e seus desdobramentos. Essa análise se faz importante, pois, não só nos traz alguns elementos relativos ao objetivo mais geral deste projeto de pesquisa, que se propõe a problematizar as práticas restaurativas, como também situa o lugar do jovem em função do tipo de conflito que o círculo circunscreve.