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No contexto comunitário: o modelo Zwelethemba

CAPÍTULO 1 – DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS

3. No contexto comunitário: o modelo Zwelethemba

Para Melo, os conflitos familiares e de vizinhança têm um aspecto cultural e estrutural que se destaca e, por isso, as soluções dos conflitos devem ser

82 Froestad e Shearing (2005) utilizam-se de argumentos de McCold (2000), Digman (2005), Van Ness (2002) e

Mika e Zehr (2003).

83 Froestad e Shearing (2005).

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No caso do conflito ocorrer no contexto escolar, mas o círculo restaurativo ser realizado pelos facilitadores comunitários deve-se avaliar a necessidade da presença de algum representante da escola, além dos pais (juridicamente essencial nos casos que envolvem menores de 18 anos).

construídas no contexto comunitário, com um olhar sistêmico e de co- responsabilidade.85

As práticas restaurativas no contexto comunitário buscam incentivar o diálogo em âmbito mais amplo: são processos de construção mais coletiva e de rede, não são individuais ou da relação específica de conflito. Devem incluir horizontalidade e equilíbrio das relações de poder86 e buscar a expressão das singularidades de diferentes grupos, em especial os que são considerados minoritários ou que historicamente são excluídos socialmente, problematizando, assim, os valores das comunidades.87

As práticas restaurativas no contexto comunitário visam construir mudanças na dinâmica social da comunidade através do empoderamento da mesma. Para isso, é essencial que seus membros se percebam capazes e com habilidades para lidar com os conflitos surgidos, acionando os recursos governamentais e não- governamentais no auxílio da resolução dos conflitos e na construção de vínculos e redes importantes.88

Para Melo, a articulação entre a comunidade e essas instituições, unindo forças, tem se mostrado mais eficaz no que se refere à segurança pública e promoção de justiça social e cidadania. Desta forma, os espaços comunitários podem ser mais adequados para a promoção da segurança pública, evitando-se processos de exclusão social.89

Afirma ainda que, para que essas perspectivas sejam fomentadas na comunidade, é importante que as instituições comunitárias e organizações não- governamentais proporcionem um movimento de passagem do olhar individual para o coletivo, reforçando, com isso, a identidade individual e comunitária; bem como possibilitem a autonomia e gerem liberdade e responsabilidade da comunidade,

85 Melo (2008).

86 Com o modelo Zwelethemba, insere-se o facilitador secretário nas práticas de Justiça Restaurativa. Jovens e

alunos recém capacitados podem ser inseridos como facilitadores nos círculos restaurativos, sendo possível uma horizontalização das relações de poder com os adultos, potencializando-se o protagonismo juvenil.

87 Conforme destaca Melo (2006), visando estes objetivos, o projeto de São Caetano do Sul busca inserir nas

práticas restaurativas comunitárias, quando necessário, grupos organizados de mulheres, idosos, negros e homossexuais, sendo que esta participação depende da autorização das partes e sempre em número menor que os demais participantes, visando manter um ambiente de caráter não profissional e não militante. Quando se considera necessário, pode haver também a participação de profissionais estatais, visando garantir a segurança e não re-vitimização dos participantes dos círculos restaurativos.

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Nessa perspectiva, as instituições governamentais e não-governamentais têm a função, tanto de assegurar a participação comunitária, como de fomentá-la, por meio de suporte a esses projetos.

tornando-a relativamente independente dos serviços públicos para a resolução de seus conflitos.90

Desta forma, o empoderamento comunitário precisa ser construído articulado à Justiça, Segurança, Sistema de Saúde e de Desenvolvimento Social, e por meio do esforço conjunto de suas instituições governamentais, sempre com os olhares voltados para a perspectiva comunitária. Melo afirma que se pode perceber esse movimento nas práticas da Justiça Restaurativa, da Polícia da Comunidade91 e do Programa de Saúde da Família,92 e, para isso, buscam-se mudanças no foco de atuação dessas instituições.93

Nesta nova perspectiva de ação, as instituições governamentais e seus agentes têm um papel fundamental para o encaminhamento dos casos, buscando a resolução dos conflitos no contexto comunitário e soluções não punitivas para o conflito.

A Justiça Restaurativa volta-se para a comunidade e potencializa nela a capacidade de resolução de seus conflitos, não havendo necessidade de um Juiz que determine o certo, o bom, nem como aquela situação será resolvida. O papel do Juiz passa a ser o de retornar à comunidade os seus conflitos, encaminhando-os para círculos comunitários de Justiça Restaurativa. Entretanto, caso as pessoas envolvidas mesmo assim julguem necessário, elas podem recorrer às instâncias judiciais.94

Percebe-se que grande parte dos casos atendidos pela Justiça Restaurativa é oriunda do próprio contexto escolar. Melo afirma que cerca de 25% dos conflitos escolares estão sendo criminalizados no estado de São Paulo. Afirma que a Justiça Restaurativa é uma quebra do controle estatal sobre os conflitos, mas questiona até que ponto esse controle não está sendo exercido nas escolas e comunidades.

90

Idem.

91 A Polícia Comunitária volta-se para a comunidade como um todo e para seus conflitos, não apenas atuando em

casos de criminalidade, como também em uma intervenção mais abrangentes e preventivos. Deve buscar o bem- estar de seus cidadãos e estar estreitamente vinculada à comunidade, num trabalho em conjunto, como cidadãos que fazem parte dela. O projeto de Justiça Restaurativa possibilita aos agentes de polícia que, mesmo nos casos em que os envolvidos decidem por não encaminhar a denúncia, o agente possa fazer o encaminhamento a Justiça Restaurativa.

92 Melo (2006) afirma, ainda, que o Programa de Saúde da Família atende, por meio de equipes

multiprofissionais a um número determinado de famílias de uma mesma região. Seu desafio é integrar o atendimento e conhecimento da comunidade ao sistema mais amplo de saúde. Seus agentes têm uma relação de confiança e proximidade com as famílias e a comunidade e, devido a esse vínculo, identificam situações de violência, porém a denúncia pode ocasionar a descontinuidade do seu atendimento. Donde, a importância de sua vinculação a um projeto de Justiça Restaurativa, com foco na responsabilização e não na punição.

93 Melo (2006). 94 Idem.

Afirma que as escolas trabalham, de forma geral, na lógica da racionalização e mudança de atitudes dos alunos, deixando de valorizar os afetos e relações envolvidas, que são pilares da Justiça Restaurativa.95

Pelo fato do modelo Zwelethemba96 ser o modelo de resolução de conflitos mais utilizado no contexto comunitário de São Caetano do Sul, vamos detalhá-lo mais especificamente, destacando seus valores e aspectos metodológicos.97

Este modelo busca a Construção da Paz98 partindo-se do conflito inter- pessoal. Alguns autores também o chamam de Pacificação, visto que têm por objetivo comum: “reduzir a probabilidade de que o conflito específico continue.”.99

São formados Comitês de Paz por pacificadores locais que realizam Reuniões de Pacificação onde comparecem pessoas da comunidade. Os Comitês têm o objetivo de devolver o conflito a seus donos legítimos, pois consideram que as pessoas da própria comunidade têm mais conhecimento e capacidade para contribuir instrumentalmente para a solução e diminuição dos conflitos. 100

O conflito é entendido de forma mais ampla, no contexto comunitário, e considera-se que os papéis de vítima e infrator101 podem ser alternados,

principalmente quando se trata de uma relação familiar ou de vizinhança, em que a historicidade do conflito deve ser levada em consideração.

Desta forma, a Pacificação reporta à origem dos conflitos, sua história, a série de eventos que contribuíram para seu desenvolvimento, mas sem julgar, envergonhar ou culpar qualquer uma das partes. Reporta-se ao passado, ao histórico do conflito, porém privilegia o olhar para o futuro, para a resolução dos

95 No 1º. Seminário Internacional de Justiça Restaurativa, 2009.

96 Modelo que surge em 1997, com o início da democratização da África do Sul, na comunidade de

Zwelethemba, próxima a Cidade do Cabo. O termo significa, no dialeto Xhosa, um lugar de esperança. Inicialmente surge como uma forma de controle e como política de segurança pública, buscando a participação da população no controle de manifestações públicas durante o período eleitoral. Em relação às mudanças que aconteciam no período, a população não estava satisfeita nem com o que ocorria nos “fóruns populares”, formas disfarçadas de controle do Estado, nem com a lentidão dessas mudanças. Vários experimentos para a resolução de conflitos passaram a ocorrer até que no ano 2000 um novo modelo toma forma e é aplicado em cerca de vinte comunidades sul-africanas.

97 Com base, principalmente, nos textos de Melo (2008) e Froestad e Shearing (2005). Entretanto, é importante

destacar que este modelo foi adaptado para São Caetano do Sul.

98 Ao contrário do processo de Pacificação, a Construção da Paz “conduz freqüentemente para longe das

questões da segurança para preocupações de desenvolvimento mais amplas, como saúde pública, higiene, alimentação, abrigo, coleta de lixo, educação e oportunidades recreativas. Assim, a construção da paz amplia o escopo para a realização de valores restaurativos para além da segurança.” (Froestad e Shearing, p. 112, 2005).

99 Froestad e Shearing, p. 94, 2005.

100 La Prairie, p. 80, 1995 In: Froestad e Shearing, p. 93, 2005 101

Entende-se que as pessoas que estão diretamente envolvidas no conflito não são vítima e infrator, pois estes termos já trazem em si um julgamento. Utiliza-se o termo “partes” ou “participantes”. Uso que também fazemos nesta dissertação.

conflitos e a construção de uma Cultura de Paz. Para este processo, considera-se a importância de se trabalhar com o tempo, pois entende-se que soluções rápidas podem ser superficiais.

Durante o processo de Pacificação, busca-se construir um consenso quanto ao acordo e todos os participantes são convocados a expressar-se. Apesar de ocorrer, a expressão emocional não é o foco do encontro, a meta é instrumental, de construção de passos e estabelecimento de combinados que contribuam para um futuro “melhor”. O objetivo principal não é a restauração das relações, mas sim a pacificação dos conflitos.102

O processo de chegar a um acordo é considerado muito importante, mas é o seu cumprimento que diz da Pacificação que ocorre, sua meta principal. Percebe-se, portanto, a relevância da construção do acordo pelas partes envolvidas, aumentando a probabilidade de honrá-lo. Ao final da Reunião, pergunta-se a todos os participantes se acreditam que o acordo poderá ser cumprido e como podem comprometer-se com isso, sendo que se tornam responsáveis por acompanhar o cumprimento ou não do acordo.

Nas Reuniões de Pacificação, a participação de todos é voluntária: tanto das pessoas diretamente envolvidas no conflito, dos participantes convidados da comunidade, como dos pacificadores.

Por ser relevante o conhecimento dos conflitos locais, os pacificadores são pessoas da própria comunidade que recebem uma capacitação rápida da metodologia de condução do encontro e de resolução de conflitos. O objetivo é que o conhecimento de cada um seja valorizado e que possam adaptar a metodologia ao contexto e à comunidade em que estão inseridos. Froestad e Shearing consideram que este é um papel que deve ser aprendido na prática, o que garante a adequação da metodologia à especificidade de cada comunidade, sua cultura, estilo de vida e aos seus conflitos. Afirmam ainda que a religião é um elemento de conhecimento compartilhado que, em algumas Reuniões, pode ser utilizado no processo de Pacificação.103

102

No contexto sul-africano, o termo “restauração”, assim como o termo “reintegração”, não são adequados aos processos de Pacificação, visto que esta não é a meta central, porém podem ocorrer como resultado das Reuniões de Pacificação. Froestad e Shearing (2005) sustentam que em alguns casos, a melhor opção de Pacificação pode ser o afastamento ou evitar o encontro entre as partes do conflito, e todos que estão na Reunião buscam assegurar que isso aconteça.

Referendados nesses aspectos, identificam algumas características importantes para desempenhar o papel de pacificador, como confiança, habilidade com a fala e compreensão intuitiva e implícita de vida.

Apesar da valorização do aprendizado no exercício cotidiano do papel de pacificador, é relevante destacar que, com a prática, os pacificadores podem desenvolver habilidades de condução das reuniões de forma a se tornarem “especialistas locais”. Essa situação pode promover uma tensão em relação aos valores centrais do modelo, visto que pode causar uma hierarquia comunitária no que se refere ao conhecimento e capacidade de facilitar as reuniões de pacificação, indo contra a idéia inicial de democracia deliberativa do modelo. Por esse motivo, Froestad e Shearing advertem sobre a necessidade de monitoramento para que o afastamento dos valores centrais não ocorra. A capacidade e conhecimento dos pacificadores não podem se tornar mais importantes do que as vozes e experiências dos participantes da reunião, visto que eles são as pessoas cruciais do processo de pacificação.

No que se refere ao desempenho do papel de pacificador, algumas particularidades podem ocorrer. Assim mesmo, para que estas práticas não se afastem por demais dos aspectos filosóficos e metodológicos, a pacificação é regulada pelo Código de Boas Práticas104 que as guiam e limitam, desenhando aos pacificadores um repertório de perguntas a seguir para possibilitar a mobilização e participação de todos os envolvidos no conflito. O Código estabelece os passos, organiza e estrutura as ações dos pacificadores.

A respeito do Código de Boas Práticas, Froestad e Shearing (2005) apontam que: “há vantagens e desvantagens a se considerar o quanto as regras devem ser explícitas. [...] por serem embutidas, permite-se que as regras tornem-se parte da ‘arquitetura’ e, desta forma, úteis para criar um ‘hábito’ que estrutura o comportamento.”105

Outra questão relevante destacada por Froestad e Shearing diz respeito ao pagamento dos pacificadores, visto que este elemento estabeleceria uma distinção e uma classe de “peritos” na comunidade. Visando a não segmentação nos grupos

104

Este Código foi adaptado para o contexto da prática restaurativa em São Caetano do Sul e esta adaptação será exposta mais adiante.

uma estratégia foi traçada.106 Cada Reunião tem uma ajuda de custo e parte desse

recurso é dividido entre os Pacificadores e outra parte é destinada a projetos locais de desenvolvimento, que ajudam no desenvolvimento a comunidade e na criação de empregos. Para os pacificadores, o pagamento não chega a ser uma renda que sustente uma família, mas é uma boa contribuição para seus gastos, sendo visto como um reconhecimento de sua capacidade e da importância de seu trabalho.

No Brasil, o modelo de Zwelethemba está sendo utilizado no contexto comunitário do município de São Caetano do Sul – SP, sendo que o modelo original foi adaptado ao contexto dessa comunidade e aos seus conflitos específicos.

Nesse projeto-piloto, o embasamento teórico do construcionismo social107 do modelo de Zwetethemba tem destaque, buscando potencializar a autonomia do sujeito e empoderar a comunidade, tornando-os capazes da resolução de seus conflitos. Busca quebrar paradigmas no que se refere à resolução de conflitos e a atos de violência.

Um dos aspectos que se torna prioritário neste projeto é atingir a auto- sustentabilidade, por dois motivos principais: para potencializar a autonomia da comunidade em relação a sua aprendizagem e sua prática; e devido à dificuldade de disponibilizar e acessar recursos financeiros, governamentais ou não- governamentais.108

No que se refere à relevância da autonomia da comunidade, esta é possibilitada, assim como no contexto sul-africano, pelo Código de Boas Práticas, adaptado ao contexto de São Caetano do Sul. O Código é o parâmetro central que delineia a prática restaurativa nesse contexto e é lido no início de cada círculo restaurativo:109

106 Esta estratégia não é utilizada em São Caetano do Sul, visto que, atualmente, nem os círculos restaurativos,

nem mesmo os facilitadores recebem qualquer ajuda de custo.

107 “O construcionismo social, com múltiplos recursos conversacionais e com um olhar que valoriza

positivamente o potencial criativo do inesperado e do novo, beneficia um projeto piloto que busca a descoberta de caminhos ainda não trilhados.” (Melo, p.143, 2008).

108 Melo (2008). 109

Ajudamos a criar um ambiente seguro e de confiança na nossa Comunidade; Respeitamos a Constituição do Brasil e as leis; Não usamos força ou violência; Não tomamos partido em disputas; Trabalhamos na comunidade como uma equipe cooperativa, não como indivíduos; Seguimos com transparência as regras para a resolução de conflitos, comuns a todos os membros da comunidade; Não espalhamos boatos ou mexericos acerca do nosso trabalho ou de outras pessoas; Nós assumimos compromisso com aquilo que fazemos; O nosso objetivo é restaurar, não ferir. (Melo, p.146-7, 2008).