• Nenhum resultado encontrado

2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS

2.2 A RELAÇÃO DA COMUNIDADE E DO INDIVÍDUO

2.2.3 PERÍODO MODERNO

2.2.3.2 DOUTRINA DA NECESSARY PARTY E INDISPENSABLE PARTY E O LITISCONSÓRCIO

Em segundo lugar, desenvolveu-se, nesse período, a doutrina da necessary party e

indispensable party.

Hazard Jr.91 explicita que, segundo a doutrina da necessary party, todos aqueles interessados na

controvérsia de direito substancial são partes necessárias à demanda, de forma a possibilitar a resolução integral e plena daquela controvérsia em juízo. A integração dos indivíduos interessados é necessária, sob pena de não serem eles vinculados ao resultado do julgamento. Excetuavam-se apenas as hipóteses de representação, em que os indivíduos consentiam ou autorizavam o processamento coletivo da demanda, aderindo, assim, ao seu resultado.

88 Segundo Sergio Arenhart, o desenvolvimento do direito inglês apontou para uma gradual substituição das funções das Cortes locais (Manorial Courts) pela atuação das Cortes de Common Law e pela intervenção supletiva da Court of Chancery. O Chanceler, da Corte de Chancelaria (Court of Chancery), valendo-se de decisões anteriores – dado que suas decisões não eram fundadas apenas nas regras de direito, mas também na equity (regras de equidade) – solucionava as controvérsias coletivas, adaptando o sistema jurídico às dificuldades inerentes aos direitos de grupo e às ações coletivas (Cf. ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 140 (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil V6).

89 HAZARD JR, Geoffrey C.et al. An historical analysis of the binding effect of class suits. University of Pennsylvania Law Review, 1998, V. 146: 1849-1948, p.1863.

90 Ibidem, p.1863.

91 HAZARD JR, Geoffrey C. Indispensable party: the historical origin of a procedural phantom. Columbia Law Review, 1961, V. 61: 1254-1289, p.1255.

A doutrina da indispensable party é, por sua vez, uma derivação da primeira, mas seu sentido é inverso. Segundo essa doutrina, continua Hazard Jr92, a integração dos interessados à demanda

é indispensável, porque eles serão imperiosamente vinculados pelo resultado da ação coletiva. Sem a integração de todos, o processo deve ser extinto sem a resolução do mérito da controvérsia. Enfim, nesse caso, não se admite o processo, a não ser com pluralidade de partes.

As duas doutrinas compartilhavam um mesmo princípio: quem não figurou formalmente no processo na condição de parte, não deveria ser submetido à autoridade da coisa julgada. Assim, ao indivíduo, deveria ser conferida a oportunidade de consentir com o processamento coletivo da controvérsia ou de ser integrado ao processo, juntamente com todos os demais interessados.

Convêm trazer à baila, ainda, uma diferença crucial entre as duas doutrinas. A primeira doutrina, da necessary party, recomendava a integração das partes interessadas ou o consentimento ou a autorização individual para fins de representação em uma demanda. Mas, caso isso não fosse possível, era admissível a resolução da controvérsia de direito substancial por outro método, desde que fossem adotadas soluções criativas no tocante à estruturação subjetiva da relação processual (ex. ações coletivas) e fosse afastada a vinculação do indivíduo ao julgamento coletivo (res judicata). A segunda doutrina, da indispensable party, não admitia, por sua vez, soluções criativas. Assim, caso as partes não fossem integradas à demanda, o processo deveria ser extinto sem resolução de mérito, sem quaisquer outras alternativas.93

92 HAZARD JR, 1961, p.1271.

93 Inicialmente, a Corte de Chancelaria (Court of Chancery) adotava apenas a doutrina da necessary parties. Os primeiros precedentes relativos a essa doutrina surgiram entre 1673 a 1687, a exemplo dos casos Woodcock v.

Mayne e Walley v. Walley. No primeiro precedente, um credor hipotecário secundário demandou o credor

hipotecário principal. O Chanceler Lord Nottingham determinou a inclusão, como parte, dos herdeiros do devedor hipotecário, para que a resolução da controvérsia substancial fosse completa e eficiente. Caso não fosse possível a inclusão da parte necessária à demanda, in casu, os herdeiros do devedor hipotecário, eles não seriam vinculados pelo julgado e a questão controvertida seria suscetível à rediscussão posterior. No precedente Walley v Walley, por sua vez, um avô estabeleceu um crédito em títulos em benefício do seu neto, sendo os bens e valores confiados à administração do seu filho, pai do menor. O pai quebrou seu dever fiduciário e vendeu os títulos a ele confiados. O beneficiário, por sua vez, ajuizou demanda em face dos compradores, para reaver os títulos vendidos. Os compradores argumentaram que o pai do beneficiário era parte necessária à demanda. Lord Nottingham superou essa preliminar e determinou o prosseguimento da demanda ao julgamento de mérito, sem a integração da parte necessária, pois, na ocasião, o pai do beneficiário estava em missão militar na Índia, razão pela qual era impraticável sua integração à demanda. Mais tarde, a doutrina da necessary party deu origem à doutrina da indispensabilidade por ocasião dos precedentes Lowe v. Morgan (1784) e Fell v. Brown (1787). Nesse último caso, não foi admitido que um credor hipotecário secundário prosseguisse em face do credor hipotecário principal, sem a integração dos herdeiros do devedor. Isso porque os herdeiros do devedor hipotecário estavam nos Estados Unidos e seria inviável, segundo o Chanceler Lord Thurlow, o pronunciamento judicial sobre a controvérsia sem a inclusão das partes indispensáveis à demanda, razão pela qual o Chanceler suspendeu o processo até que os herdeiros retornassem à Inglaterra (Cf. HAZARD JR, 1961, p.1256-1274. Em sentido semelhante, REED, John W. Compulsory joinder of parties in civil actions. Michigan Law Review, 1957, V. 55: 327-538p).

É preciso destacar que essas doutrinas permanecem vigentes até hoje, inclusive no direito estadunidense, e foram desenvolvidas no bojo do instituto denominado joinder (compulsory

joinder), o que se assemelha ao nosso litisconsórcio, nas modalidades unitário e necessário.94

Cândido Rangel Dinamarco95 assevera que, por força do litisconsórcio, admite-se, em juízo, um

aglomerado de pessoas como demandantes ou demandados em razão da existência de fatos da vida, envolvendo uma pluralidade de interessados. Nesse caso, o esquema da relação jurídica de direito substancial supera o esquema processual tradicional, em que coexistem apenas duas pessoas. Esses fatos da vida são, por sua vez, direitos e obrigações compartilhadas por mais de uma pessoa, que se tornam, portanto, imediatamente interessadas na solução da crise de direito substancial. Isso, por sua vez, traz reflexos na relação de direito processual tradicional, que transita a passos largos de um caráter dualista para um caráter mais pluralista. A partir de então, admite-se a estruturação plurissubjetiva ou coletiva da controvérsia de direito substancial.

Nesse ponto, é preciso destacar que o fenômeno de direito substancial, que justificou, e ainda justifica, o litisconsórcio e as referidas doutrinas inglesas (necessary party/ indispensable

party), é o mesmo fenômeno que originou, séculos antes, as ações populares romanas e as ações

coletivas medievais. O que mudou, no período moderno, foi apenas o fundamento pelo qual as ações coletivas são agora admitidas e os objetivos que as justificam no sistema processual.

Todavia, antes de abordarmos a proximidade do regime jurídico aplicável às ações coletivas e ao litisconsórcio ou compulsory joinder sob esse aspecto substancial, é preciso retomar o raciocínio quanto ao desenvolvimento das referidas doutrinas inglesas até se chegar ao assunto.

Destaca-se que as doutrinas da necessary party e indispensable party foram aplicadas de forma vacilante no século XVII, não sendo examinadas de forma coerente ou sistemática pela Corte de Chancelaria. O mesmo ocorreu, anos mais tarde, no sistema jurídico dos Estados Unidos.

94 No sistema jurídico estadunidense, o precedente mais influente sobre o tema é Shields v. Barrow (1854), que também realizou a distinção entre partes necessárias e partes indispensáveis à demanda. Antes desse precedente, essa questão foi objeto de discussão em Russell v. Clarck’s Executors, Cameron v. M’Roberts, Mallow v. Hinde e outros (Cf. REED, 1957, p.340 et seq).

95 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil II. 6. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 349 et seq.

Ora as Cortes de Justiça faziam menção a essas doutrinas, ora as ignoravam. A linha que as diferenciava era muito tênue e não raro ambas as doutrinas eram superadas e convenientemente abandonadas, mormente, nos casos envolvendo relações coletivas ou plurissubjetivas.96

A integração ou o consentimento dos interessados ao processamento coletivo de uma demanda eram necessários como regra geral. Mas, se a integração de todos os interessados ou o consentimento individual se tornassem impraticáveis, em razão do grande número de sujeitos envolvidos na controvérsia de direito substancial – plurissubjetiva ou coletiva –, as referidas doutrinas eram abandonadas e, no lugar, as ações coletivas passam a ser admitidas.97

Quando identificada uma relação de direito substantivo plurissubjetiva ou coletiva e sendo possível a participação direta dos interessados, impunha-se o joinder ou o litisconsórcio. Não obstante, quando identificada uma relação de direito substantiva plurissubjetiva ou coletiva e sendo impraticável a participação direta de todos os interessados, a agregação processual deveria ocorrer por outros instrumentos do sistema jurídico. Dentre eles, destacaram-se as ações coletivas, que foram – à moda desse período – excepcionalmente admitidas em juízo.

Pode-se dizer, assim, concluindo-se o raciocínio, que as doutrinas da necessary party e

indispensable party têm a mesma origem das ações coletivas: a necessidade de agregação

processual, na hipótese em que discutida uma mesma controvérsia de direito substancial, envolvendo uma pluralidade de interessados. O tratamento processual é o mero reflexo das relações substantivas que envolvem o indivíduo e a coletividade a que ele está associado.

Afirma-se, nesse sentido, que as doutrinas da necessary party e indispensable party nasceram, no período moderno, a partir de uma mutação do regime jurídico das ações coletivas98.

96 HAZARD JR et al, 1998, p.1859-1860.

97 A numerosidade (numerosity) e a impraticabilidade do litisconsórcio (joinder) de todos os interessados são premissas vigentes até hoje no sistema jurídico estadunidense para a admissão das ações de classe, segundo a

Federal Rule 23 (Cf. HERR, David. Annotated Manual for Complex Litigation. 4. ed. Minneapolis: West, 2012,

p.378).

98 Sergio Cruz Arenhart defende que, na realidade, as ações coletivas é que nasceram de uma mutação do regime do litisconsórcio (Cf. 2003, p.140-144). Essa divergência não é, no entanto, relevante em relação ao exposto acima, porque independentemente do que surgiu primeiro – se foram as ações coletivas ou se foi o litisconsórcio – o fato é que ambos se encontram no bojo de um mesmo regime jurídico. Arenhart sustenta que o litisconsórcio surgiu primeiro, pois ele considera o surgimento das ações coletivas apenas no século XVII com o Bill of Peace. Adotamos, no entanto, o raciocínio de que as ações coletivas existiam em Roma e durante toda a Idade Média. Isso justifica, portanto, a inversão da ordem mencionada, isto é, o litisconsórcio surgiu de uma mutação do coletivo.

Lembra-se que, anteriormente, as relações substanciais plurissubjetivas ou coletivas dominavam o cenário medieval e, para tratar esse fenômeno, recorriam-se às ações coletivas, sem que isso fosse problematizado no âmbito processual. A preocupação era apenas resolver a crise de direito substancial, o que interessava à pluralidade de sujeitos de uma controvérsia.

Suplantada aquela ordem e inaugurado um novo ethos social, marcadamente individualista, a dualidade processual (Tício v. Caio) passa a ser regra. E, na melhor das hipóteses, exigia-se a integração compulsória das partes interessadas (necessary parties ou indispensable party) ou o consentimento e a autorização para fins de representação. Nesse contexto, a preocupação, mais do que resolver a crise de direito substancial, era estabelecer uma técnica processual hábil a tratar a pluralidade de interessados, preservando, porém, a autonomia individual ou pessoal.

Nada há de curioso nisso. Não causa estranheza essa orientação mais individualista do sistema processual para as controvérsias subjetivamente simples (Tício v. Caio) – que se tornam agora, no período moderno, um fenômeno bastante comum – e isso é, até mesmo, esperado como reação ao período medieval. O único problema é que os grupos não desapareceram de uma hora para outra. Eles ainda persistiam, mesmo que em proporções e em relevância bem menores.

Nesse contexto, considerando a persistência residual das controvérsias atinentes aos grupos ou às comunidades, que eram típicas do período medieval, considerando, ainda, a inviabilidade de proceder à integração de todos ou de obter o consentimento ou autorização individual de todos os interessados, a Court of Chancery passou a admitir, excepcionalmente, as ações coletivas, mas, sob determinados contornos, de forma a preservar a autonomia individual ou pessoal.

É interessante notar que quando as ações coletivas são admitidas, a Court of Chancery menciona essa admissão por razões de mera conveniência (artifact of convenience)99. O

processamento coletivo teria relevantes objetivos a cumprir no sistema processual, como evitar a duplicidade de demandas individuais similares, alcançar eficiência, economia processual e uniformidade nos provimentos jurisdicionais. O direito substancial coletivo ou plurissubjetivo foi desacreditado pelas Cortes de Justiça, as quais se direcionaram à questão processual apenas.

A Court of Chancery, ao mencionar a conveniência como fundamento para admissão das ações coletivas, deixa de lado – o que parece ter sido propositado pelo próprio panorama individualista da época – um dos fundamentos básicos do processo civil vigente hoje, a saber, o processo é um mero instrumento ou método de solução da crise de direito substancial.100

O processo visa à atuação do direito substancial. Na feliz assertiva de Giuseppe Chiovenda101,

“o processo deve dar, tanto quando possível, a quem tem um direito, tudo aquilo e propriamente aquilo que ele tem o direito de conseguir” [tradução nossa]. Essa assertiva apresenta uma textura

normativa aberta, alcançando tanto os direitos individuais, como também os direitos coletivos.

Logo, se a crise de direito substancial é coletiva, o processo também é coletivo102. Não se trata

de mera conveniência, mas da atuação do próprio escopo jurídico do processo, o qual deve manter simetria ou correlação à crise de direito substancial que é, in casu, plural ou coletiva.

Isso – obviamente e como era de se esperar – não era claramente percebido no período moderno. As ações coletivas foram, sim, excepcionalmente aceitas. Mas, nota-se que quando admitida a ação coletiva, em exceção às doutrinas da necessary party e indispensable party, sua técnica foi, de certo modo, restringida, para equacionar a problemática da autonomia individual ou mesmo para camuflar essa problemática processual. Vamos avançar sobre essa temática.