• Nenhum resultado encontrado

2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS

2.2 A RELAÇÃO DA COMUNIDADE E DO INDIVÍDUO

2.2.4 PERÍODO CONTEMPORÂNEO

A existência de um grupo de interessados na mesma controvérsia de direito substancial não é nova. Está presente há muito tempo, na estrutura gentílica romana, nas aldeias medievais e, até mesmo, no próprio período moderno, segundo as possibilidades e os limites antes citados.

Isso ocorre em razão de um fato social incontornável, os homens cooperam. O indivíduo não nasce desprovido de qualquer laço com um grupo, tampouco ele escolhe todos os vínculos que forma na vida. Ele nasce em uma família, em um bairro, em uma economia, em um país, sob uma religião e, nada disso, foi por ele escolhido, tampouco houve manifestação de adesão.131

131 Em sentido semelhante, Michael Sandel salienta que não é possível pensar em um sujeito completamente desenraizado e sem qualquer referência coletiva. No mesmo sentido, Daniel Sarmento salienta que o indivíduo

Muito embora o indivíduo seja livre para realizar suas escolhas pessoais e estabelecer o seu modo de vida, afastando-se dos grupos que não mais lhe interessam, mantém ainda, em maior ou menor grau, uma intercessão com os grupos nos quais optou conviver, bem como laços de cooperação, pertencimento, solidariedade e interesses compartilhados na sociedade, mormente nos casos de persecução de bens comuns, necessidades e vulnerabilidades semelhantes.

Ninguém escolhe ser lesado por uma droga, por um produto, por uma prática ou por uma política pública. Mas, quando isso ocorre de forma comum entre vários indivíduos, é possível que isso altere o curso das histórias individuais e os una por razões de solidariedade e reciprocidade, que eles jamais escolheram ou quiseram. Isso implica, por vezes, a formação de uma identidade no grupo, com a coesão dos interesses e com vínculos interindividuais.132

São esses interesses comuns e laços de pertencimento que se sucederam, no mundo jurídico, em direitos e obrigações, também comuns a uma pluralidade de pessoas. Logo, quando surgia uma controvérsia de massa, envolvendo esses direitos e obrigações, um processo, com igual dimensão, se fazia e, ainda, se faz necessário. É, nesse contexto, que o debate sobre a agregação processual assume maior relevância para atuação do direito substancial coletivo ou plural.

O fenômeno não é, portanto, contemporâneo. Mas, ao menos, pode-se dizer que a sua dimensão é. Globalização, conglomerados econômicos, mercados financeiros interligados, empresas transnacionais, avanços tecnológicos nas comunicações e na informática, redes sociais, tudo isso, segundo Daniel Sarmento133, encurtou as fronteiras e fragilizou o Estado, que, agora, tem

menos condições de condicionar as forças presentes em seu território. O contraponto disso – do enfraquecimento estatal – é o fortalecimento, mais uma vez, na história das coletividades.

continua sendo ‘a medida de todas as coisas’, como dizia Protágoras, e sua autonomia está salvaguardada, mas não se pode esquecer que ele é um ser concreto, que se relaciona com outros sujeitos, mormente nos casos de fragilidades e carências (Cf. SANDEL, Michael. Liberalism and limits of justice. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p.121 e SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.65).

132 Nesse sentido, defende Elisabeth Chamblee Burch, que acrescenta, ainda, que a comunidade que se forma hoje não é mais geográfica, como ocorria entre as aldeias medievais ou com as comunidades tribais e religiosas, mas decorrentes de uma mesma prática, de um mesmo problema ou de uma mesma vitimização (Cf. BURCH, Elisabeth Chamblee. Group Consensus, Individual Consent. The George Washington Law Review, V. 79: 506- 541, p. 521-522. BURCH, Elisabeth Chamblee. Aggregation, community, and the line between. Kansas Law Review, 2010, V.58:889-916p).

133 SARMENTO, 2006, p. 46. No mesmo sentido, José Eduardo Faria (Cf. FARIA, José Eduardo. A definição do interesse público. In: SALLES, Carlos Alberto de (org.) Processo Civil e Interesse Público: o processo com o instrumento de defesa social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 86).

O fortalecimento dos grupos não deixou de ser percebido pelo direito. Superado o pavor de se retornar ao antigo regime medieval, cujas tendências comunais obstavam a autonomia e a competição dos indivíduos no mercado, surgem, agora, novas coletividades. De um lado, associações, sindicatos, partidos políticos, novas formas empresariais e, de outro lado, minorias e grupos submetidos às mesmas práticas ou às mesmas vulnerabilidades, como os consumidores, os afrodescendentes, os cortiçados.134 Surge, de novo, um pluralismo no direito.

As Constituições Federais, de uma forma geral, mormente depois das redemocratizações ocorridas na Europa e na América Latina, assimilaram esse pluralismo e, também, equacionaram, sob o ponto de vista jurídico, as relações substanciais entre o indivíduo e a comunidade – ao incorporar valores e princípios como solidariedade, justiça distributiva, igualdade, função social da propriedade, função social do contrato, os direitos coletivos.135

O indivíduo, que antes foi ícone da modernidade, continua com o seu espaço preservado, podendo orientar sua vida e suas escolhas. Mas, há, agora, o reconhecimento e a valorização de uma intersecção inerente entre os interesses desses indivíduos e de grupos, em razão de laços de pertencimento e cooperação. Se, antes, a relação era de tensão, agora se admite a convergência e a coordenação dos indivíduos em torno dos mesmos interesses ou direitos.

Para o processo civil, o reconhecimento dessa conexão ou interdependência no plano material, ensejou o aprimoramento dos instrumentos processuais, dentre eles, as técnicas de agregação.

Essas técnicas permitem a adoção de um processo com a mesma dimensão da controvérsia de direito substancial, restabelecendo a simetria entre substância e processo, com reflexos processuais relevantes na eficiência processual, na economia e na uniformidade dos resultados.

134 Nesse sentido, a Professora Ada Pellegrini Grinover, em um estudo seminal sobre os direitos coletivos no sistema jurídico brasileiro, apontou que, diante de uma violação de massa, o indivíduo lesado pode se encontrar em uma situação inadequada para reclamar contra o prejuízo pessoalmente sofrido. Nesse contexto, surgem os grupos ou os corpos intermediários, conscientes da comunhão de interesses e das fragilidades individuais que obstam a persecução pessoal do direito alegado. Multiplicam-se, assim, as associações de consumidores, de amigos do bairro, de pequenos investidores, que se unem para a proteção e defesa dos interesses ou direitos comuns. Nesse contexto, novos tipos de tutela hão de ser encontrados, não somente para esses grupos, mas também para as pessoas físicas envolvidas na mesma controvérsia de massa (Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos

interesses difusos. Revista de Processo, V. 14-15, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr/set.de 1979, p. 28-29).

135 Em sentido semelhante, Daniel Sarmento e Rodolfo de Camargo Mancuso revelam que a Constituição Federal Brasileira de 1988 deu guarida aos valores de solidariedade, cooperação, igualdade e democracia participativa (Cf. SARMENTO, 2006, p. 63; MANCUSO, 2011, p. 46).

Os instrumentos de agregação, como as ações coletivas, o caso-teste e outras técnicas, ao adotarem a mesma dimensão da controvérsia de direito substancial, podem ensejar a compensação integral do dano, o desestímulo à prática ofensiva e, ainda, uma função redistributiva136, devolvendo ao grupo a força que antes foi pulverizada. Contribui, por fim, com

os reflexos processuais antes mencionados na eficiência, na economia e na uniformidade.

Com o recente processo de massificação, de grandes proporções e até transnacional, nem o Estado, nem o mercado conseguiram mais concentrar forças e reger, integralmente, os comportamentos dos grupos sociais. Novas práticas sociais e econômicas surgem de forma dispersa e fragmentada, sem que sejam consideradas, por vezes, ex ante em uma norma.137

Se todos os indivíduos, prejudicados por essas práticas comuns, pleitearem, individualmente, será difícil verificar o impacto disso no plano coletivo, no sentido de restaurar a ordem violada e alterar a prática ofensiva ou lesiva para todos os afetados. Os indivíduos, no entanto, poderão maximizar, egoisticamente, os resultados da sua demanda. Dessa forma, é possível que cada um se aproprie individualmente de algo pensado a partir de um todo – o que não é adequado à exigência constitucional de igual respeito e consideração aos interessados de um mesmo grupo.

Por exemplo, uma política pública de saúde e um concurso público são pensados, em regra, de forma central e paritária para todos os interessados. Há uma tabela de medicamentos disponíveis e um edital de concurso, os quais são aplicáveis, de forma isonômica, a todos os pacientes da rede pública de saúde e a todos os candidatos do concurso público. Se essa tabela de medicamentos ou o edital do certame vierem a ser questionados, individualmente, pleiteando- se, por exemplo, um medicamento de tecnologia mais avançada ou os pontos de uma questão

136 Carlos Alberto de Salles salienta, em boa hora, que a justiça corretiva tem por escopo restaurar a ordem violada, parcialmente destruída por uma ação injusta de outrem. A justiça distributiva, por sua vez, é aquela que define a ordem protegida pela justiça corretiva, isto é, como se realiza a alocação individual de recursos comuns ou como se realiza a alocação de benefícios e ônus entre as pessoas (Cf. SALLES, Carlos Alberto de. Entre eficiência e a equidade: bases conceituais para um Direito Processual Coletivo. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin e RODRIGUES, Marcelo Abelha (coords.). O Novo Processo Civil Coletivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 65-66). Valendo-se disso, pode-se dizer que a agregação processual permite a manutenção da justiça corretiva em consonância com a justiça distributiva no tocante aos direitos substanciais coletivos, pois permite alocar, individualmente, recursos (corrigindo um direito violado), tendo em mente, ainda, a dimensão comum ou coletiva da distribuição desses recursos (ordem protegida pelo direito) na qual essa alocação será realizada. 137 José Eduardo Faria é preciso ao salientar a incompatibilidade entre a crise social e a crise do direito, pois a sociedade descola-se do direito e vai caminhando numa linha absolutamente inédita. O Estado é incapaz de criar, previamente, uma norma para regular cada segmento social, setor ou sistema diferenciado da sociedade brasileira e intervém por meio de princípios. A textura aberta dos princípios permite, por sua vez, a revitalização da livre negociação, do direito privado, do direito contratual, variáveis que não foram considerados no processo normativo (Cf. FARIA, 2003, p. 86).

da prova objetiva que foi elaborada em discordância ao edital, e se isso for realizado sem a consideração ao alcance coletivo da controvérsia, a paridade originária existente entre os interessados, por força do direito substancial, poderá vir a sucumbir. A agregação, nessa hipótese, reinsere a controvérsia no plano coletivo, conferindo uma visão ampla de seus efeitos no grupo e tratando os interessados na controvérsia com igual respeito e igual consideração.

Do mesmo modo, se não houver interesse ou força para litigarem sozinhos, há o risco de a prática ofensiva permanecer sem reparação. Não houver interesse porque o dano fragmentado entre os indivíduos foi ínfimo. Não houver força porque o dano foi disperso, de forma a ser complexo, por exemplo, imputar o nexo de causalidade a um mesmo agente causador. Exemplo disso são os casos em que a etiologia de uma doença, como o câncer, é ainda desconhecida. Nessa hipótese, a causalidade somente é aferida em estudos epidemiológicos de grupo e não em casos clínicos individuais, sendo impraticável aferir o nexo de causalidade para o indivíduo.

A função redistributiva e os demais objetivos da agregação serão retomados no momento oportuno. É relevante, no entanto, consignar que a agregação, ao pensar sob o ponto de vista coletivo ou do status do grupo, fornece uma visão mais ampla da controvérsia e de seus impactos nos demais membros da coletividade. Com isso, permite otimizar, ou melhor, equacionar os interesses envolvidos e, ainda, realizar a reparação integral do dano causado.

Mas, depois de muita tinta gasta, da revalorização das relações substanciais entre o indivíduo e a coletividade e da elaboração de novos instrumentos de solução de conflitos, sobretudo técnicas processuais de agregação, alguns problemas teóricos e processuais ainda persistem.

Ainda é preciso estabelecer um link ou uma equivalência entre o indivíduo e a comunidade, de forma que a agregação seja a técnica necessária e adequada ao direito substancial coletivo ou plurissubjetivo, cujas controvérsias envolvem uma pluralidade de interessados. Essa agregação, de todo modo, não deverá impor gravames à autonomia individual, no sentido de ser o indivíduo um sujeito autônomo para litigar aquilo que lhe é próprio ou particular: a sua própria história.

O processo não pode se submeter integralmente à autonomia individual – no que se aproximaram os modernos – no sentido de tudo ser exclusivamente individual. Do contrário, tratar direitos e obrigações, que envolvem uma pluralidade de pessoas em um processo

individual, seria tarefa árdua e, de todo modo, inadequada com relação à atuação do direito substancial coletivo e aos escopos do processo, como efetividade, economia e uniformidade.

O processo também não pode ceder, integralmente, ao apelo coletivista – no que se aproximaram os medievais – porque, do contrário, tratar as relações propriamente individuais em um processo coletivo poderia, por vezes, obstar o indíviduo de narrar a sua própria história, que pode não coincidir com os interesses ou direitos comuns ou ser contrária à história do grupo.

Nesse ínterim, o processo e as técnicas de agregação pendem entre os planos individual e coletivo, conforme o grau de oposição ou de identidade entre os interesses do indivíduo e do grupo ou, noutros termos, conforme se identifica uma relação substancial individual ou uma relação substancial plurissubjetiva ou coletiva, atinentes a uma pluralidade de interessados.

Assim, ora adota-se instrumentos mais consensuais, em que o próprio indivíduo opta ou consente com agregação processual, seja de forma expressa, seja de forma implícita, ora adota- se instrumentos menos consensuais. No último caso, desde que seja identificada uma zona de convergência de interesses, em que o indivíduo atua na qualidade de membro do grupo, isto é, de forma impessoal e indiferenciada aos seus atributos particulares, singulares e específicos.

É preciso, então, investigar como os sistemas jurídicos processuais estabeleceram esse link entre o indivíduo e o grupo e, a partir disso, realizaram a correta identificação do direito substancial coletivo, de forma determinar a técnica de agregação aplicável e o seu regime jurídico.

Segue-se, adiante, com uma análise do sistema jurídico estadunidense e brasileiro. Nesse momento, o objetivo é examinar apenas o “estado da arte” desses sistemas, no tocante ao desenvolvimento das ações coletivas e de outras técnicas de agregação, bem como a relação desses instrumentos de agregação com os direitos substanciais coletivos ou plurissubjetivos. Essa comparação não para por aqui, muito pelo contrário, acompanha toda a investigação.