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2. CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA INFÂNCIA

2.3. Infância

2.3.1. Educação Infantil no Brasil

Apresento brevemente a história da Educação Infantil no Brasil e alguns de seus principais documentos em vigência atualmente, fruto das reivindicações de estudiosos/as da área em torná-la essencial para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças, e não apenas um local de guarda ou recreação.

A expansão de creches e pré-escolas no Brasil se deu com a mudança na forma da produção econômica, e seu objetivo inicial era assistir os/as filhos/as das classes pobres trabalhadoras. Na perspectiva do pedagogo Moysés Kuhlmann Jr. (2000, p. 8), “a educação assistencialista promovia uma pedagogia da submissão, que pretendia preparar os pobres para aceitar a exploração social”. O objetivo desse atendimento era apenas oferecer serviços básicos para a saúde das crianças, nem sempre em locais propícios.

Kuhlmann Jr. (2000) aponta que as transformações políticas passaram a dar novo entendimento à luta pela educação infantil: “as ideias socialistas e feministas, nesse caso, redirecionavam a questão do atendimento à pobreza para se pensar a educação da criança em equipamentos coletivos, como uma forma de se garantir às mães o direito ao trabalho” (p. 11). Isso refletia a reorganização familiar, pois esta

não contava mais com uma mãe em tempo integral no trabalho doméstico, e precisava de auxílio externo para o cuidado com as crianças.

Com o avanço nos estudos sobre a infância, a educação infantil passou a ser desejada não só para as classes pobres, mas para as demais, o que provocou atividades duais: creches desenvolvendo trabalho assistencialista, atendendo crianças pobres com idade de 0 a 3 anos; e pré-escolas desenvolvendo atividades pedagógicas, além da assistência, como preparação para a passagem para o próximo nível, atendendo crianças de famílias com melhores condições financeiras (KUHLMANN Jr., 2000).

O autor ainda destaca que os estudos sobre a infância foram apontando a necessidade de ver a criança como ser que aprende com as diversas experiências, nas brincadeiras, nos jogos, no contato com a natureza, no uso de parques infantis, nas relações com os demais, na linguagem etc., ou seja, esses estudos atentaram para a valorização das experiências das crianças, e não apenas para as vontades dos adultos.

Chamboredon e Prévot (1986), já indicavam que o “ofício de criança” foi se desenhando com os estudos da psicologia ao apontarem novas considerações sobre infância a partir das divisões da faixa etária. Aliado às reconfigurações familiares, que passaram a necessitar de locais para deixar os/as filhos/as, as pesquisas sobre o desenvolvimento infantil foram um dos fatores para a entrada da criança nas instituições escolares cada vez mais cedo.

Para os autores, os estudos sobre a infância redefiniram a prática pedagógica das instituições escolares: as ações educativas passaram a demarcar as “performances” das crianças conforme a idade (são estabelecidos objetivos para cada idade, andar, falar etc.), a criança é o sujeito principal do processo, as/os docentes passaram a ser as/os agentes mediadoras/es e as creches e pré-escolas os locais apropriados para essa institucionalização performática. Nesse sentido, é preciso ter bem definidos os objetivos educativos para não produzirem “performances” excludentes, mas que valorizem a diversidade das crianças nas instituições.

Ana Cerisara (1999) aponta as principais características, ou desafios, da Educação Infantil. A primeira é que não é um nível para o ensino de conteúdos em disciplinas específicas. Sua função é educativa, perpassando todos os espaços e “envolvendo todos os processos de constituição da criança em suas dimensões

intelectuais, sociais, emocionais, expressivas, culturais, interacionais” (p. 16), por meio de trabalho intencional, planejado, avaliado, sistematizado.

A segunda característica é que historicamente à Educação Infantil foi atribuída a função de cuidar e educar, mas o desafio é que não foi bem definido como aliar essas práticas para se efetivarem como prática pedagógica, o que resultou no estigma de desvalorização do trabalho de cuidado.

O cuidar na Educação Infantil não pode ser relacionado apenas às práticas de higiene. Seu objetivo deve ser promover a autonomia das crianças sobre seus corpos e suas ações, o autorreconhecimento e o reconhecimento dos demais como diferentes de si, e isso se dá por meio de um trabalho sistematizado. Portanto, o educar e o cuidar são indissociáveis e vão desde a organização do espaço para receber as crianças à aprendizagem do respeito a si e aos demais.

É necessário apontar, dentro dessas características, como o currículo é pensado para a Educação Infantil, tendo em vista sua especificidade de cuidar e educar. Compartilho da concepção de currículo apontada por Verena Wiggers (2012), que o concebe como “artefato culturalmente determinado por um campo social, para ser desenvolvido em uma realidade específica, ou seja, nas instituições de educação coletiva... [contribuindo] para construção de novas formas de o ser humano ser e estar no mundo” (p. 83). Portanto, currículo deve ser um artefato inacabado, mutável, de questionamentos constantes, para que possa refletir os interesses dos diversos grupos sociais, não apenas de um, nos diferentes momentos históricos.

Não é tarefa fácil pensar um currículo ou proposta pedagógica na Educação Infantil devido a sua peculiaridade de articular cuidado e educação (WIGGERS, 2012), pois, segundo a autora, ainda se encontram ações que não sistematizam as práticas de cuidado para que se transformem em práticas educativas e façam sentido para as crianças e seu desenvolvimento. Por outro lado, é preciso atentar para não desenvolver apenas ações escolarizantes como forma de preparação para o ingresso no Ensino Fundamental.

Em 1996, com a aprovação da LDBEN 9.394, a Educação Infantil passou a compor os níveis de ensino, desvinculando-se dos órgãos assistencialistas e vinculando-se à educação, mas essa transição ocorreu de forma lenta. Em 2013 tornou-se obrigatória a matrícula para as crianças de 4 e 5 anos, o atendimento devendo ser feito em creches para crianças de 0 a 3 anos, e em pré-escolas para as

de 4 e 5 anos, com período integral, com duração de até dez horas, ou parcial de, no mínimo, quatro horas. A LDBEN estabelece o atendimento em oitocentas horas no total do ano letivo, e as formas de avaliação não podem ser determinantes para a transição para o Ensino Fundamental.

Atualmente as orientações para a organização e funcionamento da Educação Infantil são determinadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil de 2009 (DCNEI), e pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2017. As DCNEI orientam a organização da proposta pedagógica, do currículo, do trabalho docente, do atendimento às crianças e das formas de avaliação.

Em 2017, foi homologada a BNCC, normas que orientam a organização de um “conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais” (BRASIL, 2017a, p. 5) para Educação Básica, com objetivo de estudantes desenvolverem uma série de competências definidas pelo documento. Para a Educação Infantil, determina um currículo estruturado em cinco campos de experiência: (1) O eu, o outro e o nós; (2) Corpo, gestos e movimentos; (3) Traços, sons, cores e formas; (4) Escuta, fala, pensamento e imaginação; (5) Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações. Esses campos já foram expressos no Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI) lançados em 1998.

Não faz parte deste trabalho apontar as críticas que cada documento recebeu durante e após sua elaboração, mas trazê-los para apresentar a afirmação da Educação Infantil como nível de educação que precisa ser valorizado em todos os aspectos: do trabalho que é desenvolvido, das pesquisas, e principalmente da valorização docente.

Como observado, a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica e direito da criança e de todas as famílias, foi resultado de lutas de grupos sociais e pesquisadoras/es para que as crianças, amparadas legalmente, tivessem um local que promovesse cuidado e educação, com recursos pedagógicos adequados para a faixa etária e de forma gratuita.

Mas ainda são necessários esforços para a construção de uma proposta curricular que efetive práticas que atendam às necessidades de aprendizagem infantis, e que tenham a criança (e não apenas a visão dos/as adultos/as quer da família quer da escola) como centro dessa construção.