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2. CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA INFÂNCIA

5.6. O que as famílias esperam para o futuro de seus filhos e filhas?

porque os/as filhos/as “são problemáticos”, não aparecem.

Cada família tem uma configuração e uma cultura própria, por isso é complicado e injusto a instituição de Educação Infantil exigir o mesmo nível de acompanhamento de todas as famílias (SZIMANSKY 2010; CARVALHO, 2004a). A instituição poderia rever seu tempo escolar para aproveitá-lo o máximo no processo de ensino-aprendizagem, não esperando da família um complemento pedagógico que é função da instituição escolar.

As percepções docentes e familiares apontam que as construções de identidades de gênero das crianças atravessam as relações escola-família. De modo informal, as decisões pendulam entre as famílias autorizarem uma prática, com ressalvas (por exemplo, as brincadeiras), e recusarem outras (o banho misto), e a instituição acatar os interesses familiares para evitar conflitos entre ambas.

Apesar de o CREI considerar importante trabalhar na perspectiva de relações de gênero equânimes, é mais cômodo para as educadoras escolares acatar os interesses das famílias quanto às construções das identidades de gênero, do que trabalhar formalmente com uma política/prática de educação não-sexista. É mais cômodo porque a equipe docente não sabe como abordar esse tema (como afirmou a gestora), tendo em vista o próprio conceito de gênero ainda ser confundido com o de orientação sexual.

5.6. O que as famílias esperam para o futuro de seus filhos e filhas?

Esta seção se refere à questão aberta do questionário, que teve como objetivo identificar se nas famílias havia expectativas diferenciadas para meninos e meninas. As respostas das famílias sobre o que esperam para seus filhos e filhas perpassaram questões como: crescerem saudáveis e felizes, serem pessoas educadas e de bem, viverem em um país menos violento, e terem sucesso profissional. Destaco que as respostas não diferiram para filhos e filhas.

Considero relevante discutir algumas falas. As primeiras referem-se a aspectos religiosos enfocados por uma mãe e um pai:

Mãe 1 - de um filho e uma filha: ―Serem pessoas ensinadas na luz da palavra de Deus, que somem para uma sociedade mais justa e igualitária. Serem muito

felizes e pessoas conscientes de como podemos ajudar aos outros humanos, bons amigos, bons cônjuges. Para a glória de Deus!‖

Pai 2 - de um filho e duas filhas: ―Espero que eles cresçam com um bom caráter formado, e que sejam pessoas que venham contribuir com uma sociedade limpa e honesta na presença de Deus‖.

[Questionário com famílias].

Não se pode negar que a religiosidade ou ausência dela, é um aspecto que contribui para a construção das identidades. Nesse caso, a mãe e o pai esperam que seus filhos e filhas se eduquem com base nos ensinamentos religiosos.

Segundo a LDBEN (BRASIL, 1996), a escola pública é laica. O que pode ocorrer nas instituições públicas é o ensino de todas as religiões. Portanto, a escola não pode agir de forma proselitista, evidenciar apenas uma religião em seu espaço, seja com imagens, orações, ou qualquer outro ritual.

Porém, no CREI, ocorrem práticas religiosas. Enquanto as crianças aguardam nas filas para a ida às salas, elas cantam e rezam orações cristãs, bem como celebram os feriados religiosos, Páscoa e Natal, com músicas ou encenações bíblicas. Até mesmo nas festas de dia das mães e pais interpretaram músicas cristãs. Assim, a instituição de Educação Infantil ignorava práticas religiosas de outras famílias.

Apenas uma mãe fez uma observação quanto à esse ponto, no item sobre religião do questionário:

Mãe 6: ―Não temos religião, mas valorizamos as religiões de matrizes africanas. Repudiamos a prática do cristianismo no CREI, uma vez que vivemos em um Estado Laico, não se deve impor crenças e religiões na Escola‖.

[Questionário com famílias].

Nos dois anos que estive no CREI, presenciei a celebração da Páscoa Cristã, na qual as crianças fizeram encenação da morte e ressurreição de Jesus Cristo. As famílias estiveram em grande número. Observei que muitas cantavam e acompanhavam e outras apenas assistiam indiferentes ao que passava. Por lei, essas festas não deveriam ser celebradas nas instituições escolares, mas culturalmente é comum que sejam realizadas, principalmente para mostrar o

desempenho das crianças e se confraternizarem com as famílias. Minha sugestão é que essas confraternizações focassem em temas como amor, paz e respeito, que são os valores comuns a todas as religiões.

A fala a seguir anuncia como uma mãe considera importante o trabalho da família com o CREI para a educação do filho:

Mãe 3 – de um filho: ―Espero que ele cresça preparado para o mundo, pois estou trabalhando juntamente com o CREI para isso, quero que seja uma criança educada e participativa em tudo na sociedade‖.

[Questionário com famílias].

Essa mãe foi uma das que justificou todas as respostas do questionário, e disse que meninos e meninas podem brincar juntos, mas sob a supervisão docente. Vale questionar: que mundo ela pensa, prepara e apresenta para seu filho? Pois, se na instituição de educação ele só pode brincar com meninas sob a supervisão docente, o que ele poderá aprender sobre as diferenças que existem no mundo? De acordo com a mãe, que não concorda que meninos e meninas tomam banho juntos para não estimular a curiosidade, como ele deverá participar na sociedade tendo a curiosidade podada desde cedo? Essas questões podem ser úteis para investigações posteriores, e ajudar a escola pensar que perspectivas de sociedade e educação as famílias desejam para suas crianças.

Não tendo identificado expectativas binárias e dicotômicas de gênero nas respostas das famílias para o futuro de seus filhos e filhas, destaco a expectativa de uma mãe sobre a liberdade de escolha de suas filhas:

Mãe 6 – de duas filhas: ―Que sejam pessoas livres para fazerem as escolhas que desejarem no âmbito corporal, da orientação de gênero e da liberdade sexual‖.

[Questionário com famílias].

Essa é mãe que se interessou e se disponibilizou para participar a qualquer momento da pesquisa, e por isso realizei com ela a entrevista. Mãe de duas meninas, espera que elas tenham liberdade de escolha, e destaca as que se referem às questões de gênero e sexualidade. Concorda que banhos e brincadeiras sejam mistos, e que meninos e meninas têm a mesma capacidade para aprender.

A mãe tem 33 anos, é graduada em Sociologia, e no momento é dona de casa, veio do sudeste em busca de qualidade de vida e mora com o pai das filhas, que é estudante na UFPB. Atua no campo das políticas públicas, e já trabalhou nas secretarias de educação e do trabalho.

As questões da entrevista foram sobre as relações com a instituição de educação e as construções das identidades de gênero das crianças no CREI. Indaguei como ela via as relações escola-família de forma geral e como achava que deveriam ser. Ela informou que as famílias têm pouca participação na vida escolar:

Mãe 6: ―Mas a escola é pouco aberta às famílias, eu acho. Tenho um olhar bastante crítico quanto a isso aí, já falei algumas vezes com a diretora que a gente precisava ter um espaço mais democrático na gestão da escola, sabe?‖

P: ―Você acha que a escola dá pouca abertura para a participação da família?‖

Mãe 6: ―Pouca ou quase nenhuma, assim, porque tudo vem pronto, sabe? E... poucos momentos de reunião mesmo, assim de... até de acompanhamento das crianças de fato, assim... Elas começaram a estudar aqui na CREI em março, a gente teve uma reunião pedagógica, e assim, a coordenadora pedagógica falando assim do todo, do geral, nada assim específico, sabe?‖

[Entrevista com mãe].

No caso dessa mãe, se vê a contradição com o CREI quando afirma que as famílias são pouco participativas. Mas, é importante destacar que é o posicionamento de uma mãe, bem peculiar, com recursos para dar suporte à educação das filhas. Nem todas as famílias têm essa configuração, recursos culturais, e disponibilidade para acompanhamento da vida escolar dos/as filhos/as.

Sobre se havia relações conflituosas com a instituição, explicou que as interações são tão escassas que nem possibilitam a emergência de conflito:

Mãe 6: ―Mas eu não sei se é de conflito, assim, acho que é o jeito... um pouco da zona de conforto, assim sabe? De não se desafiar a fazer diferente, uma coisa de reprodução mesmo, mais do que de intenção: ‗— ah, não queremos a participação‘, tanto é que quando a gente conversa sempre tem essa coisa de: ‗— venham, a gente quer ouvir vocês, venham sempre...‘, de fato todas as vezes que eu vim, a diretora recebeu e tal, mas não interferiu no cotidiano, você sabe? Na forma das coisas acontecerem‖.

[Entrevista com mãe].

Essas relações são potencialmente conflituosas, como já apontou Carvalho (2000; 2004a), por envolver as decisões para a vida da criança, e o poder das duas instituições sobre ela (PRADO, 1985), pois é permeada pelas relações de poder professora-mãe, escola-família, o espaço público disputando forças com o espaço privado. Há uma relação de poder da instituição sobre a família porque esta depende do CREI que cuida de suas crianças dez horas por dia. Essa relação de poder se estabelece na negação da participação das famílias, e o inverso ocorre quando as famílias impõem suas decisões que, por vezes, vão contra as regras do CREI, exceto quando envolvem questões de saúde e segurança da criança. Um exemplo: a gestora contou que muitas famílias chegam pedindo para usar na criança os próprios produtos de higiene dela, e não os do CREI; em outra situação uma mãe pediu para não dar banho na criança, pois já havia dado em casa; no caso da Mãe 6, que é vegana, suas filhas não devem comer alimentos de origem animal.

Como esta mãe afirmou, e também a gestora em todas as reuniões e durante a entrevista, a instituição é aberta para receber colaboração da família, só não tem definido como ela deve ocorrer. Quando acontece na instituição pesquisada, é de forma esporádica a pedido da direção, para resolver algum problema. Na ausência de problemas, então as relações escola-família são consideradas boas como a Mãe 6 afirmou:

Mãe 6: ―Ah, é boa! É boa. As vezes eu acho que sou um pouco chata, de questionar as coisas, sabe? por essa coisa de... ah, é boa! Com as professoras das meninas pouquíssimos contato, mais com a coordenadora e com a diretora, né? que a gente vê na entrada, mas com as professoras muito pouco‖.

[Entrevista com mãe].

A mãe considera a relação boa, mas se avalia “chata” por ser questionadora, por buscar saber sobre o desenvolvimento das filhas, justamente o que a instituição de educação diz que espera da família. Também confirma o que as professoras e gestora informaram sobre o pouco contato entre mães, pais e professoras. Por um lado essa mãe critica a falta de contato direto com as professoras, que estão constantemente com as crianças; por outro lado, a gestão busca preservar a

integridade das professoras e monitoras, tendo em vista os conflitos ocorridos anteriormente, já mencionados.

Sobre as construções das identidades de gênero no CREI, esta mãe aponta a experiência da filha de 4 anos que é mais expressiva em casa:

Mãe 6: ―Em casa a gente nunca teve essa coisa de menina e menino, muito pelo contrário [...] Mas ela, desde que tá na CREI tem essa coisa de divisão de coisas de meninos e coisas de meninas, então eu não sei se é uma visão que os coleguinhas trazem, imagino de casa, né? que as famílias reforçam isso no geral, né?... Outro dia separei uma roupa e ela: ‗— ah, não posso ir com essa roupa porque senão vão achar que é uma roupa de menino‘, era uma camiseta larga... essas coisas... Outro dia ela relatou que eles foram no campo de futebol aqui na praça fazer uma atividade, que as meninas ficaram assistindo os meninos jogarem futebol, e eu falei: ‗— ué, mas por que você não jogou F.?‘, ela falou assim: ‗— ah, porque era só os meninos e a gente precisava ser a torcida‘, e eu falei: ‗— ué, os meninos não podiam ser torcida? Ou vocês jogavam todo mundo junto sem ter torcida‘, ela: ‗— a não, a professora falou que era só pros meninos jogarem‘, então... não sei, sabe? [...] Mas aí eu não sei se é diretamente a CREI, o seu projeto pedagógico, sabe?... mas é isso também, a gente tenta fazer a mediação, desconstruir, ajudar a desconstruir... é minha visão‖.

[Entrevista com mãe].

Pela experiência com a filha no CREI, a mãe afirma que a menina já demarca o que é de menino e de menina, e em casa a mãe e o pai tentam não fazer essas demarcações. A mãe desconhece o projeto pedagógico do CREI e não tem certeza de como a filha está aprendendo a perspectiva dicotômica de gênero, se com os/as colegas ou na prática docente. Isso pode indicar que as docentes não conhecem as culturas familiares, e suas práticas dicotômicas de gênero podem, eventualmente, ir contra a cultura de alguma família. Ou seja, a instituição diz que deseja a participação das famílias, mas desconsidera suas particularidades.

No caso dessa mãe, fica nítido que o CREI e a família não têm seus acordos definidos sobre as construções das identidades de gênero das meninas. A família tem uma cultura de não demarcar os gêneros em casa, e a instituição ainda separa meninos e meninas, como é o caso do banho e foi o caso do episódio no campo de futebol.