• Nenhum resultado encontrado

2. CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA INFÂNCIA

2.4. Relações escola-família

Viu-se que a história da escola está relacionada com a ideia de família que se tem atualmente, e a relação entre ambas existe desde o início da criação da escola. Apresento considerações sobre as relações escola-família e orientações de alguns documentos oficiais para essa parceria.

A família, segundo Danda Prado (1985), existe desde os primórdios da humanidade e foi se reorganizando ao longo do tempo e conforme os espaços de inserção. Novos papéis foram atribuídos aos membros das famílias, sua estrutura também se modificou. Não é exclusivamente composta por pai, mãe e filhos (modelo nuclear e patriarcal). Entretanto não mudou a noção de crianças como “propriedade” dos pais e mães, que disputam o poder sobre os/as filhos/as com outros grupos sociais que ditam normas para controlar a educação: escola e meios de comunicação, por exemplo.

A autora apresenta a seguinte definição de família: “não é um simples fenômeno natural. Ela é uma instituição social variando através da História e apresentando até formas e finalidades diversas numa mesma época e lugar, conforme o grupo social que esteja sendo observado” (PRADO, 1985, p. 12). Deve-se levar em consideração, para essas variações, as clasDeve-ses sociais, o número de membros e que papel esses desempenham.

Prado (1985) também destaca as funções sociais atribuídas às famílias, que são: reprodução, identificação social, socialização e econômica. No caso da socialização, a autora afirma que “a socialização das crianças é dividida pela família e pelas instituições educacionais” (p. 35). Chamboredon e Prévot (1986) também destacam que as escolas maternais são os locais onde as aprendizagens desenvolvidas nas famílias são redefinidas ou conformadas, e são os locais de maior “confronto” com as famílias em virtude do seu processo de socialização.

Concordo com as funções atribuídas às famílias na medida em que ela é o primeiro ambiente que a criança se situa, mas não entendo como exclusividade daquela o exercício dessas funções, inclusive porque a própria família se constrói dentro de um conjunto sociocultural que orienta papéis, valores, crenças, atitudes e comportamentos.

As relações escola-família vêm sendo discutidas em vários campos de conhecimento. Nogueira (2015) analisou 88 resumos de teses e dissertações sobre

o tema no campo da Sociologia da Educação, no período de 1997 a 2011. Seu foco foi identificar as instituições de educação superior de origem; os/as orientadores/as, enfatizando que a maior produção ocorreu onde havia relação com grupos de pesquisa em Sociologia da Educação; o percurso metodológico, que abordou os tipos de pesquisa, perfil dos sujeitos e campos de investigação; referencial teórico, que segundo a autora foi pouco apontado nos resumos; objeto de estudo; e os principais resultados.

Os objetos de estudo identificados nos resumos pela autora foram:

Influência da família e da escola na trajetória/desempenho escolar; Sucesso escolar improvável; Estratégias/práticas educativas, internacionalização, migrações, dever de casa, pais-professores; Modos de socialização familiar e escolarização dos filhos; Significados atribuídos à escolarização; Representações;

expectativas e ambições;

Participação/contatos/aproximação/parceria escola-família; Políticas públicas e/ou ações institucionais: efeitos nas famílias (NOGUEIRA, 2015, p. 15).

Segundo a autora, os resumos analisados abrangeram da Educação Infantil ao Ensino Superior, e não apontaram trabalhos que discutissem gênero nas relações escola-família. Destacou, como ponto frágil, que diversos resumos ainda não são consistentes para fazer determinadas análises, por não conterem as informações necessárias sobre o trabalho, e a principal falha foi referente à literatura por não abranger de fato o campo da Sociologia da Educação.

Outro levantamento é o de Romanelli (2013), que analisou periódicos nacionais, no mesmo período do trabalho anterior (1997 a 2011), também no campo da Sociologia da Educação. Identificou em todas as publicações que o pertencimento a uma determinada classe social contribui nas relações família-escola, por exemplo, desde escolha do estabelecimento de ensino até o desempenho dos/as estudantes.

Os textos analisados pelo autor abordaram a relação escola-família como objeto de estudo necessário à investigação; o desempenho de estudantes de classes sociais diferentes tendo ou não o apoio da família; a participação de determinados membros da família na escolarização dos/as estudantes; e as mídias como produtoras de capital cultural nas famílias.

Romanelli (2013) destaca alguns problemas de ordem metodológica, por exemplo, quanto à falta de identificação mais precisa dos interlocutores, e a ausência de análise sobre as desigualdades de gênero no trabalho doméstico de cuidar da vida escolar dos/as filhos/as. Também evidencia que as análises fortalecem o campo teórico, indo além da mera reprodução do conhecimento já adquirido, gerando novas indagações e reflexões.

Os resultados de cada levantamento se diferenciam inicialmente pela natureza de suas fontes. O trabalho de Romanelli (2013) foi mais específico por analisar produções na íntegra e concluídas; Nogueira (2015) apresentou um panorama das características das teses e dissertações produzidas destacando o local de realização, campos de pesquisa e metodologias utilizadas. Ambos ajudam a identificar as necessidades de pesquisa, as orientações teóricas e em que se pode avançar para discutir as relações escola-família.

Escola e família têm suas especificidades, segundo Carvalho (2008), e suas relações estão ancoradas em suas características. A autora apresenta as funções que cada uma das instituições exerce: a família deve preparar os/as filhos/as para irem à escola, e a escola deve formar intelectualmente os/as estudantes. A autora argumenta que a escola idealiza um tipo de família, a que tem recursos humanos, materiais, intelectuais e econômicos para prover os estudos dos/as filhos/as, e assim desconsidera as famílias reais. Isso torna a relação entre as instituições tensa, pois a escola espera da família, dever de casa, suporte ao trabalho de formação intelectual que é sua função e não da família.

As famílias também idealizam um tipo de escola. Segundo Szymanski (2010), as famílias avaliam uma escola como boa por meio da atuação docente, permanência de professores/as, quantidade de tarefas enviadas para casa (mesmo que isso resulte em mais trabalho para as famílias quando as crianças não têm autonomia), pelo tratamento das crianças e pelo histórico de resultados alcançados.

Szymanski (2010) destaca também que as famílias têm um currículo próprio com o objetivo de desenvolver seu papel de socialização das novas gerações:

Embora não se trate de conhecimento sistematizado, é o resultado de uma aprendizagem social transmitida de geração em geração. Seu caráter educativo expressa-se tanto na finalidade de transmissão de saberes, hábitos, conhecimentos e em procedimentos que garantam sua aquisição e fixação, como também na constante avaliação dos membros receptores quanto ao grau de

assimilação do que lhes foi transmitido. Como toda avaliação, sofre os vieses interpretativos e serve a propósitos ideológicos calcados em valores e crenças (SZYMANSKI, 2010, p. 20).

Apesar das atribuições das famílias serem apresentadas de forma geral, a aprendizagem das crianças é particular a cada família e tem a ver com suas condições e particularidades: composição parental, nível econômico, formação escolar, convicções religiosas e políticas, e acesso aos bens culturais. Szymanski (2010) sugere, para uma boa relação entre escola e família, que essas particularidades devem ser consideradas pela escola, para evitar tratamentos diferenciados junto a crianças e famílias que afetem o desempenho escolar, bem como promover o respeito e a confiança, delimitando o papel de cada instituição.

É importante ressaltar que família e escola sofrem modificações constantes, e as relações entre ambas também. Nogueira (2005), em um apanhado das pesquisas sobre as relações família-escola, aponta que o investimento familiar na infância se modifica com as mudanças sociais dentro da própria família, um investimento afetivo vai tomando espaço junto ao investimento na realização profissional. Nesse passo, a escola também se modifica, seu tempo, suas metodologias, seus objetivos, o conhecimento (re)produzido, o público que atende, as relações, os serviços, o trabalho docente, a inclusão de outros profissionais etc. A autora identificou nas pesquisas que a relação da escola com a família se modificou, a escola ficou mais próxima no sentido de assumir funções que antes eram exclusivamente da família.

Sobre a participação da família na escola, Nogueira (2006) destaca que não é mais restrita a reuniões ou encontros esporádicos. A comunicação é realizada por diversos meios, agendas, bilhetes, câmeras ao vivo, e até mesmo por mensagens instantâneas através dos recursos tecnológicos, além da criança, que pode ser estimulada a narrar os fatos ocorridos na escola ou em casa.

Outra mudança apontada pela autora é o estreitamento nas interações entre docentes e mães/pais, já que atualmente o contato pode ser direto entre ambos a qualquer momento. E a terceira mudança se refere ao papel de cada instituição, a escola assumindo cada vez mais a responsabilidade da família de formação básica para o convívio, e a família sendo cobrada, ou interferindo, nas atividades pedagógicas de especialidade da escola.

No Brasil, há alguns anos a política educacional chama a família para ser ativa na escola (NOGUEIRA, 2006; CARVALHO, 2008). Pode ser uma situação

complicada para famílias de baixa renda, em que todos/as os/as adultos/as da família trabalham em duplas ou triplas jornadas, não têm acesso a recursos pedagógicos, e veem na educação dos filhos e filhas uma forma de garantirem o futuro deles/as.

Na página do Ministério da Educação (2016) encontram-se recomendações para as famílias acompanharem seus filhos e filhas na escola nos níveis da Educação Infantil e Ensino Fundamental. No que concerne à Educação Infantil as recomendações são:

 Na instituição: observar autorização para funcionamento, limpeza, se existe projeto pedagógico, qual a frequência de reuniões com as famílias, como é o acesso dos familiares à instituição, a qualificação docente, a quantidade de docentes adequada para o número de crianças, se o espaço físico é seguro e adaptado para as crianças;

 Com a criança em casa: fazer perguntas sobre docentes e funcionários/as, sobre os/as colegas, incentivar a falar sobre a rotina, as atividades, as conversas que ocorrem no ambiente escolar;

 A criança na instituição: suas reações ao chegar e sair da instituição, as relações com colegas e docentes e o material que produz.

Também encontram-se orientações para a participação das famílias nas DCNEI. O Art. 7º, inciso II, determina que a proposta pedagógica da instituição cumpra sua função sociopolítica e pedagógica “II – assumindo a responsabilidade de compartilhar e complementar a educação e cuidado das crianças com as famílias”. O Art. 8º diz que as crianças devem ter acesso aos diferentes tipos de linguagem e para tal deve-se considerar:

III – a participação, o diálogo, e a escuta cotidiana das famílias, o respeito e a valorização de suas formas de organização;

[...]

X – a dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer forma de violência – física ou simbólica – e negligência no interior da instituição ou praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos de violações para instâncias competentes. (BRASIL, 2009)

O Art. 10º das DCNEI dispõe que a instituição deve estabelecer formas de registros do desenvolvimento da criança, inclusive para a própria família analisar: “IV – documentação específica que permita às famílias conhecer o trabalho da

instituição junto às crianças e os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança na Educação Infantil”. Aqui as Diretrizes estão considerando que as famílias tenham conhecimento pedagógico, sobre desenvolvimento e aprendizagem, e façam uma avaliação das crianças, que é papel da instituição. Muitas famílias até exigem esses registros, mas as DCNEI não consideram que também existem famílias com adultos que não são alfabetizados ou são analfabetos funcionais, e que, para muitas famílias, esses registros só interessam em caso de mudança de instituição escolar. Então como informar à família sobre o desenvolvimento da criança se os registros escritos podem não ser compreendidos por uma mãe, e se essa mesma mãe não tem condições de frequentar as reuniões ou plantões escolares?

Outro documento que orienta a participação das famílias é o Plano Nacional de Educação (2014-2024) (PNE), que tem como metas para a Educação Infantil a universalização da oferta para crianças de 4 e 5 anos até 2016, e ampliação da oferta para as crianças de até 3 anos.

O PNE aponta dezessete estratégias para atingir as metas, e destaco as três referentes à família:

 “(1.4) definir mecanismos de consulta pública da demanda das famílias por creches;

 (1.12) apoiar as famílias de crianças de até 3 anos com programas complementares articulando educação, saúde e assistência social;

 (1.14) fortalecer o acompanhamento das crianças no acesso e permanência à Educação Infantil em colaboração com as famílias e órgãos públicos” (BRASIL, 2014).

Considero relevante que a Educação Infantil componha o PNE, uma vez que ela só passou a integrar o sistema de educação no final da década de 1990, o que a faz recente nesse sistema.

Essas diretrizes sugerem um trabalho complementar da família para a escola, não só da escola para a família, como indica a LDBEN. E supõem uma família com tempo, capital cultural e econômico, e uma pessoa disponível para acompanhar o desenvolvimento da criança (CARVALHO, 2004a). Ora, as creches e pré-escolas ainda são locais de guarda das crianças para que mães e pais possam trabalhar, e as famílias ainda buscam essas instituições com essa finalidade. Não é tão fácil contar com a disponibilidade permanente da família nesse nível de ensino.

As relações de gênero também estão presentes nas relações escola-família. Carvalho (2000; 2004a; 2004b) aponta que a escola cobra a participação da família na figura da mãe, pois deduz que ela tem o tempo necessário (mesmo que trabalhe fora de casa) e a obrigação social, moral e “natural” para o acompanhamento da vida escolar das crianças. Essa cobrança reforça “a divisão sexual do trabalho de cuidado e educação infantil [...] ampliando nesse caso os deveres domésticos das mães de modo a incluir a instrução acadêmica” (CARVALHO, 2000, p. 150).

A autora destaca também que uma das formas solicitadas pela escola para o acompanhamento da vida escolar das crianças é a política informal do dever de casa (CARVALHO, 2004b), que implica a participação de pais e mães com conhecimentos pedagógicos para a realização do mesmo, sendo o tempo e o espaço da escola pouco aproveitado para o ensino-aprendizagem. E mais uma vez são as mães que frequentemente ajudam filhos/as nas tarefas escolares.

O referencial teórico desta seção define a família como primeira instituição de socialização das crianças, que tem currículo próprio, e divide essa tarefa com outras instituições, dentre elas a escola. Família e escola têm suas especificidades, mas as transformações sociais, familiares e escolares afetam as relações entre ambas, fazendo com que suas especificidades sejam confundidas, cada uma fazendo o papel da outra, sobrecarregando docentes, que já têm o trabalho desvalorizado, e mães com duplas ou triplas jornadas de trabalho dentro de uma divisão sexual do trabalho injusta para as mulheres.

Compreendo famílias neste trabalho como uma instituição diversa, plural, que se forma por meio da reprodução biológica e/ou laços afetivo, e contribui para a formação pessoal e social dos sujeitos nelas presentes. No que concerne à relação com a escola entendo que ela é importante para garantir o acesso e a permanência das crianças e jovens na instituição. São as famílias que buscam a instituição escolar para matricular os/as filhos/as, têm o compromisso de enviá-los/as para a escola com higiene e saúde, precisam ser informadas sobre a proposta e as metodologias da escola, e devem ficar atentas ao comportamento de seus filhos e filhas.

É também importante entender que as relações escola-família são complexas e delicadas, com contradições e desigualdades, mas na Educação Infantil essas relações são mais exigidas devido à dependência que as crianças têm dos adultos, com os cuidados físicos, por exemplo. Nesta pesquisa essas relações se tornam

ainda mais delicadas por investigar as construções das identidades de gênero das crianças nesse contexto de realização dos cuidados corporais de seres dependentes e vulneráveis.