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2. CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA INFÂNCIA

4.2. Confraternizações

4.2.3. Festas juninas

As festas juninas são um evento tradicional no Nordeste, celebradas no mês de junho com comidas de milho, danças embaladas pelo forró, concursos de quadrilhas e trajes típicos de estampas coloridas. É comum as escolas celebrarem essas festas, em que os/as estudantes fazem apresentações, dançando forró ou quadrilhas, com os trajes característicos: meninos de calças remendadas com retalhos de tecido, camisas xadrez, barba ou bigode pintado e chapéus de palha. As meninas usam vestidos volumosos e coloridos, tranças nos cabelos, maquiagens e chapéu de palha.

As festas juninas no CREI, nos dois anos da pesquisa, tiveram as mesmas características: as crianças fizeram apresentações de danças, houve venda de comidas típicas e, em seguida vinha o recesso escolar finalizando o primeiro semestre do ano. A instituição usou em suas decorações bandeirolas coloridas, imagens de meninos e meninas dançando e tocando instrumentos (Fotos 15, e 16 a 18, p. 91).

Foto 15: Festa Junina 2017 (entrada)

Foto 16: Festa Junina 2017 (pátio)

Fonte: Pesquisadora. Junho de 2017.

Foto 17: Festa Junina 2018 (entrada)

Fonte: Pesquisadora. Junho de 2018.

Foto 18: Festa Junina 2018 (pátio 3)

Fonte: Pesquisadora. Junho de 2018.

Como nos cartazes de chamada, nas imagens acima há a presença de menino e menina, dando visibilidade a ambos, por outro lado orientando as vestes a

serem usadas e os pares a serem formados: menina usando vestido volumoso e menino com calça, camisa, bigode e chapéu e pares heterossexuais.

Nas duas festas em que estive, cada turma fez uma apresentação de dança para as famílias, que também foram a caráter. Apenas a turma Pré-escolar II (5 anos) fez mais de uma apresentação, e nas duas vezes só com as meninas. No ano de 2017 as meninas da turma dançaram uma canção que tinha como tema o amor não correspondido de uma boneca por um boneco de teatro de mamulengo (SILVA, ROSA, 2017). Na coreografia foi usado um bambolê decorado com flores e os movimentos correspondiam à letra da canção:

FLOR DO MAMULENGO Eu sou a flor do mamulengo, ai ai, Me apaixonei por um boneco, E ele neco de se apaixonar, Neco de se apaixonar Neco de se apaixonar, e ele neco! Já estou com os nervos à flor do pano, ai ai, De desengano, vou ter um treco. E ele neco de se apaixonar... Se no teatro eu não te atar Boneco, eu juro, vou me esfarrapar, Não tem sentido viver sem teu dengo Meu mamulengo. Se no teatro eu não te atar Boneco, eu juro, vou me esfarrapar, Eu não consigo viver sem teu dengo Meu mamulengo. (Composição: Luís Fidelis; Intérprete: Banda Mastruz com Leite)

A professora da turma me relatou em coversa informal que escolheu a canção porque já havia realizado a mesma coreografia em outra instituição. Perguntei o que as crianças acharam da canção. Ela respondeu que explicou a elas que era a história de uma boneca que gostava de um boneco e não era correspondida, e as crianças não tiveram nenhum tipo de reação. Não soube explicar porque escolheu só as meninas para dançar excluindo os meninos. As respostas da professora indicam uma ação pedagógica sem reflexão, executada apenas para cumprir uma demanda escolar. Se na Educação Infantil as atividades devem ser lúdicas e ter significado para as crianças, o que significa a história de um amor entre boneca e boneco não correspondido, dentro dos padrões heteronormativos?

A escolha da canção contribui, implicitamente, para fortalecer alguns estereótipos de gênero culturalmente difundidos como algo natural: a submissão e desamparo feminino (―Já estou com os nervos à flor do pano, ai ai, de desengano, vou ter um treco...‖); a necessidade de a mulher sentir-se completa apenas com um amor de um homem (―Se no teatro eu não te atar Boneco, eu juro, vou me esfarrapar, não tem sentido viver sem teu dengo...‖); e a ideia de masculinidade que não expressa ou não cultiva seus sentimentos (―Me apaixonei por um boneco, e ele neco de se apaixonar...‖).

A canção, utilizada em 2018, relatava a história da menina que abandona a boneca e inicia a fase do namoro. As meninas da turma dançaram com bonecas que as largavam em alguns momentos da coreografia:

O XOTE DAS MENINAS Mandacaru quando fulora na seca É um sinal que a chuva chega no sertão Toda menina que enjôa da boneca É sinal de que o amor já chegou no coração Meia comprida, não quer mais sapato baixo Vestido bem cintado, não quer mais vestir timão Ela só quer, só pensa em namorar (4x) De manhã cedo já tá pintada Só vive suspirando, sonhando acordada O pai leva ao doutor a filha adoentada Não come nem estuda, não dorme nem quer nada Ela só quer, só pensa em namorar... Mas o doutor nem examina Chamando o pai de lado lhe diz logo em surdina Que o mal é da idade e que pra tal menina Não tem um só remédio em toda a medicina Ela só quer só pensa em namorar... (Composição: Luiz Gonzaga/ZEDANTAS; Intérprete: Luiz Gonzaga)

Mais uma vez o discurso da canção apresentada pelas meninas de 5 anos mostra a mulher, não mais menina, voltada ao relacionamento amoroso. Com a descoberta da sexualidade, as roupas mudam para se tornarem mais sensuais, meias, saltos, vestidos justos ao corpo, maquiagem no rosto. A descoberta do amor faz a menina assumir algumas características: suspirar, sonhar acordada, perder o interesse por outras coisas, inclusive os estudos. É vista como doente pelo homem que a tem sob domínio (o pai). A mulher é objeto de desejos dos homens, mas lhe é

proibido sentir e ter desejos e prazeres próprios. Contudo esse enredo não faz parte da experiência de crianças de 5 anos.

Para as meninas, dançar as duas canções pode ter sido apenas momento de divertimento, mas exigiu delas embelezamento, ensaios, aprender as letras e coreografias, e incorporar as personagens. Isso quer dizer que também tiveram que assumir as características de uma feminilidade submissa, carente, de pessoa incompleta, assim como o embelezamento como forma de atrair atenção. Portanto, nessas performances as crianças do CREI vivenciaram as experiências de conformidade de gênero na perspectiva binária e heteronormativa nas atividades escolares, sem discussão, reflexão ou avaliação pelas professoras reproduzindo-se identidades de gênero binárias, dicotômicas e excludentes.

Nas festas compareceram em torno de cinquenta famílias, menos de dez pais, as demais mães e avós, que assistiram às apresentações de seus filhos e filhas com entusiasmo ou, às vezes, frustração, pois algumas crianças, as menores principalmente, ficavam assustadas com a multidão e barulho e não conseguiam fazer suas apresentações.

Caracterizaram as crianças, meninas maquiadas, com seus vestidos coloridos, volumosos e rodados, meninos com seus bigodes e barbas desenhados nos rostos, sinalizando em seus corpos uma forma de masculinidade e feminilidade adulta. Como afirmam Carvalho, Melo e Ismael (2008a, p 6), “entendemos que o corpo é continuamente transformado em gênero, é marcado/sinalizado pelo gênero de formas mais ou menos fixas ou fluidas, variáveis no tempo e espaço, e no curso da vida individual”. Nesse sentido, a instituição escolar ensina às crianças, de forma lúdica, que características devem assumir para afirmar identidades binárias de gênero, e as famílias corroboram fornecendo em acordos tácitos e sem contestação.