• Nenhum resultado encontrado

Relações escola-família: ―Acho que creche tem que ser parceria do funcionário

2. CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA INFÂNCIA

5.5. Relações escola-família: ―Acho que creche tem que ser parceria do funcionário

Esta categoria foca especialmente em como se dá a participação das famílias na vida escolar das crianças e como a instituição espera que seja. Questionei as entrevistadas como era a participação das famílias, como elas desejavam que fosse, se havia conflitos e em torno de que. Com exceção da professora P-MI, todas as demais afirmaram que a participação das famílias não era satisfatória. As duas monitoras afirmaram que não tinham contato com as famílias.

A professora P-MI da turma de 2 anos afirma que “os pais” (termo genérico para se referir às famílias) são bem participativos. Muitas crianças dessa turma estão pela primeira vez ingressando no ambiente escolar, e muitas famílias estão

começando o processo de “separação” dos/as filhos/as, então é possível que este seja um dos motivos para a maior participação das famílias naquela turma de pequenos.

As queixas das demais professoras em relação à pouca participação das famílias se referiram à não continuidade em casa do trabalho realizado no CREI e falta de interesse pelo comportamento dos/as filhos/as:

P-MII: “Ah, eu esperava mais que eles dessem um apoio, porque eu acho que creche tem que ser parceria do funcionário com os pais, e aqui não tem. Aqui eles não querem nem saber se a criança comeu e se não comeu, eles nem perguntam [...]. Aí, muitos pais e muitas mães ainda veem creche como depósito, joga lá... pra eles comendo, tomando banho e dormindo, tá ótimo. E também o que piora mais é porque a maioria não trabalha, aí é só pra ficar livre das crianças, aí joga aqui [...]. Eu acharia tão bom que tivesse uma lei que só entrava uma criança no CREI se tivesse um comprovante dos pais que trabalhavam, seria ótimo.‖

P-PI: “Procurasse saber um pouco da sua criança, né? Porque, às vezes a criança, assim... está com dificuldade, tem uns que... como NC [menino], NC, quando a gente está na sala de aula NC não para um minuto, fica em movimento o tempo todo dentro da sala. Quer dizer, se a mãe viesse, né? Conversasse com ele seria bom... controlasse mais ele, mas já fica no cuidado de outras pessoas que não é nem da família dele. Aí acho que dificulta também isso‖.

P-PII: ―Se durante a semana a gente faz aquele trabalho, se no final de semana a família desse continuidade, com certeza seria 100% positivo, tu tá entendendo? Mas não é, porque durante a semana a gente tem aquele trabalho, né? de disciplina, e final de semana... Mas também tem a situação da família né? Tem família desestruturada... a gente também tem que compreender esse lado da família.‖

[Entrevista com docentes].

A queixa sobre a falta de interesse das famílias aparece na fala da professora P-MII ao ressaltar que a família considera a instituição apenas como local de depósito de crianças, não a vê como espaço pedagógico. Historicamente as creches e pré-escolas foram locais de depósito de crianças das famílias trabalhadoras (ABRAMOVICH 2003; KULMANN Jr. 2000). Ora, as famílias precisam de um aparato para deixar suas crianças seguras e com os cuidados básicos da saúde enquanto estão fora de casa.

O que mudou na função da Educação Infantil atualmente? Primeiro, é que todas as crianças têm o direito de frequentar esse local, independente da condição familiar. Segundo, não é mais simplesmente um local de guarda de crianças, mas um espaço pedagógico com ações planejadas e avaliadas, que visam não só os cuidados básicos, mas a aprendizagem, sobretudo no que concerne à socialização com outras crianças e culturas. Terceiro, é que o desenvolvimento da criança é o principal foco das instituições da Educação Infantil.

Outro ponto que destaco da fala da professora P-MII (que tem formação em Magistério e estava cursando Pedagogia), é o desconhecimento das lutas pela direito da criança de frequentar a Educação Infantil independente da condição econômica das famílias. O desejo dela de querer que ingressassem apenas as crianças de pais e mães trabalhadoras já foi uma pauta superada com os movimentos de lutas pelo direito à educação, para garantir que todas as crianças frequentem a Educação Infantil, se assim a família desejar.

A professora P-MII faz uma cobrança implícita às mães das crianças que não trabalham e enviam seus filhos e filhas à creche, como se fosse obrigação das mães o cuidado e a educação das crianças, e como se as mães pudessem ou devessem prescindir de uma instituição especializada como o CREI. Ademais, a professora P-MII quando se queixa de que “os pais” não querem saber “se a criança comeu ou não etc.”, não considera a possibilidade dos familiares confiarem na qualidade dos serviços do CREI. Será que ela gostaria de ser fiscalizada?

A professora P-PI também reclama da falta de interesse da família a partir do exemplo com o menino NC, sua expectativa irrealista é que a mãe fosse ao CREI controlar o comportamento do filho. Por que a mãe precisaria ir à instituição resolver um problema que ocorre no contexto do CREI? A dificuldade é da criança de 4 anos que não quer ficar sentada ou da professora que não consegue controlá-la?

Até onde eu soube não havia nenhum laudo médico do menino que explicasse a “inquietude” dele em sala de aula. A situação da docente confirma a afirmação de Carvalho (2004a, p. 44) de que as professoras solicitam as famílias “quando se sentem frustradas e impotentes – quando os/as estudantes apresentam dificuldades de aprendizagem e/ou de comportamento com as quais elas não conseguem lidar”. Esse realmente é um dos momentos em que a escola chama a família para “investigar” a causa dos “problemas” das crianças.

Ao mesmo tempo em que a professora P-PII cobra a participação da família para a manutenção da rotina do CREI, ela associa sua ausência à desestruturação familiar, caracterizada na comunidade por pais e mães presidiários e/ou usuários de drogas, e por crianças vindas de abrigos por serem retiradas das famílias temporária ou permanentemente.

Acerca da participação de pais e mães no CREI, a supervisora afirmou que as mães são as mais presentes, e a gestora informou que o número de pais que participam vem aumentando. De fato, nas atividades que observei o número de mães foi mais expressivo. A supervisora aponta alguns motivos para a ausência dos pais:

Supervisora: ―A maioria é mãe, que vem pra reunião, né? que... você tá dizendo? É. Por causa disso... a separação né? Aí quem vem com mais frequência é a mãe. Às vezes é por causa de trabalho do pai, aí, muitas vezes pra o pai não faltar o trabalho, aí a mãe falta pra vir acompanhar. Ou então a mãe não trabalha e ela vem acompanhar porque o pai tá trabalhando. É assim!‖. [Entrevista com supervisora].

As mães assumirem a responsabilidade de participar das atividades do CREI, é um reflexo da cultura patriarcal que atribui às mulheres a responsabilidade, em primeiro lugar, pelos cuidados das crianças, mesmo que tenham que sair do seu trabalho fora de casa para estar presente na instituição escolar. E quando não comparecem, a instituição cobra à mãe, e não ao pai.

O mesmo não acontece com os pais. A eles é atribuída a responsabilidade pelo sustento do lar, e por isso não poderiam se ausentar do trabalho. Constatação semelhante encontra-se na pesquisa de Paz (2010) ao analisar as festas dos dias das mães e dos pais em uma instituição de Educação Infantil no Distrito Federal, confirmando que as relações escola-família ainda são fortemente ancoradas na participação das mulheres, professora-mãe (CARVALHO, 2004a; 2000).

Outra questão que explorei com as docentes foi se havia diferenças da participação das famílias de meninos e de meninas. Com exceção de uma professora, as demais informaram que as meninas são mais acompanhadas:

P-MI: ―Há sim, às meninas dão mais dengo, né? dão mais denguinho. Os meninos já é mais alvoroçado, mais soltão, mais... não tem aquele... Por mais

que seja menino ou menina tem que ter um limitezinho, acha que é porque é guri, ele pode fazer o que quer! Eu penso, né?‖

.

P-MII: ―Não acho que a diferença venha a partir do gênero. Eu acho que a diferença vem a partir... é... se a criança é filha única ou filho único‖.

P-PI: ―Só que as meninas eu acho, é como disse... as meninas eu acho meio... Os meninos eu acho meio carentes, as meninas não, as meninas são meio... como é que se diz? Eu acho meio bestinha... [expressão de constrangimento]. Aí sempre as mães têm o maior cuidado, né? Com as meninas as mães têm um pouquinho mais de cuidado, com os meninos muito não‖.

P-PII: “Eu acho que... não sei... como eu disse a você, menina é delicada, menina é doce, a mãe sempre vai ter aquela preocupação, que eu acho como a gente tem, o professor, tá entendendo?‖.

[Entrevistas com docentes].

A professora P-MII afirma que as crianças que não têm irmãos/ãs são mais bem acompanhadas pelas famílias. A supervisora e a gestora afirmaram que não veem diferença. Talvez pelo fato das professoras estarem constantemente com as crianças essa diferença seja melhor percebida do que no caso da supervisora e gestora.

As meninas são vistas como mais necessitadas de atenção por uma suposta fragilidade (“delicadas, dengosas e bestinhas”), enquanto os meninos são visto como independentes que não precisam de tantos cuidados. Na cultura androcêntrica, o princípio de visão e divisão social, e o habitus (BOURDIEU, 2002) fundamentam as características das mulheres como objetos a serviço dos homens, enquanto os homens são os violentos e donos dos espaços. Por isso as mulheres são ensinadas desde cedo a se protegerem, principalmente dos homens, e aos homens, geralmente, não é ensinado a não serem violentos e respeitarem as mulheres.

Outro ponto questionado foram os conflitos entre instituição e família. Apenas a professora P-PII, a supervisora e a gestora informaram que há conflitos entre escola-família, e que eles giram em torno da não manutenção da rotina, do descrédito das famílias quanto ao comportamento das crianças no CREI, que às vezes difere do de casa, e do descumprimento das regras do CREI, como horários, fardamentos, documentos etc.

A ausência ou não percepção dos conflitos destacada pelas demais professoras se deve pelo não contato delas com as famílias. O contato só ocorre mediante autorização da gestão. Quando há algum problema nas turmas, é a gestão que assume a responsabilidade com as famílias. Segundo a gestora, o contato entre professoras e famílias foi cortado devido à agressividade e ameaças que as professoras e monitoras sofriam por parte da comunidade, em gestões anteriores. Segundo a gestora, tais conflitos entre familiares e educadoras escolares ocorriam devido a pequenos acidentes sofridos por uma criança na instituição ou por brigas entre crianças. Por isso, atualmente, qualquer problema é tratado direto com a gestora.

Todas as entrevistadas relataram que não percebem conflitos referentes às questões de gênero. A meu ver isso ocorre porque as docentes não têm conhecimento aprofundado sobre o conceito, o que impede a reflexão sobre suas práticas. O único momento que elas consideraram conflituoso foi o banho, caso fosse misto. Não conseguem ver, por exemplo, a proibição de uma mãe para o menino não brincar com bonecas, e a brincadeira com bonecas faz parte das ações do CREI. Por outro lado, não haver conflitos em virtude de gênero pode apontar uma mudança nas percepções de educadoras/es e familiares sobre as relações de gênero, reconhecendo que não precisam ser totalmente excludentes, ainda que em suas práticas ocorram separações e exclusões, de forma não intencional ou planejada.

A respeito de suas participações no acompanhamento escolar das crianças, dez familiares afirmaram no questionário que são muito participativos, e cinco justificaram:

Mãe 6: ―Faço questão de acompanhar o desenvolvimento escolar‖.

Pai 12: ―Para o bom crescimento do meu filho‖.

Pai 13: ―Porque devemos participar da educação dos filhos junto aos professores‖.

Mãe 17: ―Porque eu acho que é fundamental‖. [Questionário com famílias].

As mães e pais afirmam que o acompanhamento familiar, aliado ao trabalho docente, é fundamental para o desenvolvimento de seus filhos e filhas, convergindo com o posicionamento da instituição de Educação Infantil. Não foi possível no questionário identificar como as famílias gostariam de participar, mas é uma possibilidade para a própria instituição pensar sobre as formas dessa participação.

Apenas um pai afirmou que participa pouco por falta de tempo. Sete mães afirmaram que participam só nas reuniões e eventos, e as justificativas de seis foram:

Mãe 3: ―Devido ao meu trabalho, mas participo todas as vezes que posso‖.

Mãe 7: ―Não tenho tempo de participar mais ativamente‖.

Mãe 8: ―Trabalho‖.

Mãe 14: ―Geralmente aguardo um convite‖.

Mãe 16: ―Minha vizinha traz ele e pega‖.

Mãe 18: ―Acho importante estar sempre presente‖. [Questionário com famílias].

O trabalho é o fator principal para a participação restrita das famílias. E também é um dos principais motivos pelas quais elas buscam o CREI. Portanto, que alternativas a instituição poderia criar para garantir a desejada participação das famílias? Relembro que a média de participantes nas reuniões durante os dois anos em que estive no CREI era de 15 a 25, sendo que a instituição tinha matriculadas de setenta a oitenta crianças.

É evidente que as famílias que estiveram presentes nas reuniões são as que geralmente mais acompanham a vida escolar das crianças. A gestora, em conversa informal, afirmou que são sempre as mesmas famílias que participam das reuniões,

as que têm um grau de instrução maior, e aquelas que precisam estar no CREI, porque os/as filhos/as “são problemáticos”, não aparecem.

Cada família tem uma configuração e uma cultura própria, por isso é complicado e injusto a instituição de Educação Infantil exigir o mesmo nível de acompanhamento de todas as famílias (SZIMANSKY 2010; CARVALHO, 2004a). A instituição poderia rever seu tempo escolar para aproveitá-lo o máximo no processo de ensino-aprendizagem, não esperando da família um complemento pedagógico que é função da instituição escolar.

As percepções docentes e familiares apontam que as construções de identidades de gênero das crianças atravessam as relações escola-família. De modo informal, as decisões pendulam entre as famílias autorizarem uma prática, com ressalvas (por exemplo, as brincadeiras), e recusarem outras (o banho misto), e a instituição acatar os interesses familiares para evitar conflitos entre ambas.

Apesar de o CREI considerar importante trabalhar na perspectiva de relações de gênero equânimes, é mais cômodo para as educadoras escolares acatar os interesses das famílias quanto às construções das identidades de gênero, do que trabalhar formalmente com uma política/prática de educação não-sexista. É mais cômodo porque a equipe docente não sabe como abordar esse tema (como afirmou a gestora), tendo em vista o próprio conceito de gênero ainda ser confundido com o de orientação sexual.

5.6. O que as famílias esperam para o futuro de seus filhos e filhas?

Esta seção se refere à questão aberta do questionário, que teve como objetivo identificar se nas famílias havia expectativas diferenciadas para meninos e meninas. As respostas das famílias sobre o que esperam para seus filhos e filhas perpassaram questões como: crescerem saudáveis e felizes, serem pessoas educadas e de bem, viverem em um país menos violento, e terem sucesso profissional. Destaco que as respostas não diferiram para filhos e filhas.

Considero relevante discutir algumas falas. As primeiras referem-se a aspectos religiosos enfocados por uma mãe e um pai:

Mãe 1 - de um filho e uma filha: ―Serem pessoas ensinadas na luz da palavra de Deus, que somem para uma sociedade mais justa e igualitária. Serem muito