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2. CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA INFÂNCIA

2.2. Gênero

Apresento o conceito de gênero em diferentes perspectivas para apontar como ele perpassa os diversos âmbitos sociais, mas o foco de análise e aprofundamento desta pesquisa é na perspectiva educacional com a contribuição dos Estudos Culturais da Educação, na qual está inserida.

As perspectivas teóricas que apresento são: a sociológica com Pierre Bourdieu (2002), que define gênero a partir da divisão social e sexual do trabalho; a histórica com Joan Scott (1995), ao apontar gênero como uma categoria de análise das relações sociais; a psicológica com Maria Cala Carrillo e Ester Barberá Heredia

(2009), que destacam a evolução do conceito na Psicologia; e a perspectiva educacional com Guacira Louro (2014), que mostra como esse conceito se insere nas práticas escolares, e Maria Eulina Carvalho (2014) que o situa como uma aprendizagem que se inicia desde a Educação Infantil. Entendo que são perspectivas distintas e meu objetivo não é fundi-las em uma síntese, mas destacar como gênero atravessa as práticas sociais e no conhecimento científico.

Gênero é uma construção relacional produzida nos processos culturais, sociais, educacionais, políticos e econômicos. Tais construções têm base no binarismo, que considera a existência apenas de dois polos – macho e fêmea – e na dicotomia, que determina características e papéis únicos e exclusivos de masculinidade atribuídos culturalmente ao homem, e de feminilidade às mulheres (BOURDIEU, 2002; CARVALHO, COSTA E MELO, 2008a).

De acordo com Bourdieu (2002), gênero é um princípio de visão e divisão sexual, sendo a visão os sentidos que se atribuem às coisas e corpos que, de tão afirmados, parecem naturais. Essa atribuição se dá, tradicionalmente, de forma polarizada (homem X mulher) e relacional segundo o princípio de divisão, desde a antiga divisão sexual do trabalho (mulheres no âmbito da reprodução e homens no âmbito da produção) e dos espaços público e privado (mulheres em casa e homens na rua). Isso ocorre por meio de um trabalho psicossomático e mimético em que os fatores sociais, psicológicos e comportamentais são inscritos no corpo para adequar-se ao ambiente.

Para o autor, o gênero também se constitui por meio do habitus, que é “um trabalho coletivo de socialização, difusa, contínua e arbitrária” (BOURDIEU, 2002, p. 31) de identidades distintas, tendo o princípio de divisão androcêntrico como dominante, no qual os corpos se inscrevem dentro de uma forma de masculinidade, inclusive a construção do feminino serve para apontar o que não é do masculino. O habitus constitui-se, de forma arbitrária, em modos de ser, pensar e agir com base em um padrão dominante, no caso de gênero, o masculino.

Na perspectiva histórica, Scott (1995, p. 86) define gênero em dois pontos: “(1) o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos”, ou seja, gênero faz parte das relações sociais e estas não podem ser concebidas sem o gênero. Segundo a autora, essas relações podem ser pensadas a partir de quatro aspectos:

 dos “símbolos”, que representam culturalmente o masculino e o feminino, sobretudo o que o masculino não pode ser;

 dos “conceitos normativos que expressam interpretação do significado dos símbolos” e se impõem de forma binária e fixa pelas diversas instituições, determinando características para cada gênero;

 das instituições e da organização social nas análises das relações de gênero, ao não considerar apenas o parentesco (a vida familiar nuclear heterossexual) na construção de gênero, mas ampliar para as demais instituições: educação, política e trabalho;

 e da “identidade subjetiva” ao investigar como são construídas as identidades de gênero, e relacioná-las às atividades e organizações históricas e cultuais, individuais e coletivas.

O segundo ponto de definição da autora é: “(2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (p. 86), e sua construção deve ser analisada de forma relacional, que atribui características próprias ao masculino e feminino, em razão do sexo biológico. Essa construção ocorre por meio de práticas socioculturais em que um gênero não é concebido sem o outro, porém o masculino é mais valorizado socialmente que o feminino. Sendo as relações sociais permeadas pelas relações de poder, a autora afirma, ainda, que a “representação do poder” pode ser modificada, o que modificaria também as relações.

No campo da Psicologia, os estudos de gênero foram introduzidos com a perspectiva de “psicologia das mulheres”, focando apenas as experiências delas. Atualmente adota-se a denominação de “psicologia do gênero”, que enfoca as relações e interações entre masculino e feminino, segundo Cala Carrillo e Barberá Heredia (2009). Estas autoras também destacam que os conceitos de sexo e gênero têm sido abordados de forma pouco esclarecedora, causando confusão entre as concepções. As definições de sexo e gênero para elas são:

O sexo refere-se às características biológicas específicas de homens ou de mulheres, e a pesquisa empírica o operacionaliza como uma variável dicotômica e excludente. O gênero, por sua vez, se interpreta como um conjunto de fatores culturais e psicossociais (características, papéis, gostos, habilidades) que se atribuem, de

formas diferentes, a uns e a outras. (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 92).1

Como se observa, o sexo (aspecto biológico que produz o binarismo) é o argumento para as definições de gênero (aspecto cultural que ratifica a diferença binária). Cala Carrillo e Barberá Heredia (2009, p. 93), apontam três linhas teóricas que definiram ao longo da história o sistema sexo/gênero na psicologia: “SER: o sistema sexo/gênero como propriedade interna; ACREDITAR: o sistema sexo e gênero como construção psicossocial; FAZER: o sistema sexo/gênero como atividade interativa” (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 93).2

A primeira linha teórica, mais antiga, Ser, define o sistema sexo/gênero como “uma característica inerente à pessoa e que determina sua forma de comportamento” (p. 93)3

, ou seja, o sexo é fator determinante para o gênero do sujeito por ser inerente a ele. Nessa linha as diferenças são embasadas numa perspectiva comparativa entre os gêneros a partir das variáveis cognição e capacidades físicas.

Na segunda linha, Acreditar, “a ideia central é que o sistema sexo/gênero constitui uma categoria que perpassa qualquer contexto cultural e social” (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 95).4 Gênero é aprendido culturalmente com a realidade social, por meio de estruturas já estabelecidas mentalmente por quem acredita que as características são determinadas e diferentes para o masculino e o feminino.

A terceira linha, Fazer, é a mais atual na qual o sistema sexo/gênero “é concebido como algo que as pessoas fazem, e não como algo que possuem, é daí sua categorização como ação verbal, e não como sujeito nominal” (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 96)5. Nessa perspectiva, gênero é uma

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El sexo alude a las características biológicas específicas de hombres o de mujeres y la investigación empírica lo operativiza como una variable dicotómica y excluyente. El género por el contrario, se interpreta como un conjunto de factores culturales y psicosociales (rasgos, roles, aficiones, habilidades) que se les atribuyen, de manera diferenciada, a unos y a otras. (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 92).

2 “SER: el sistema sexo/género como propriedad interna; CREER: el sistema sexo/género como construcción psicosocial; HACER: el sistema sexo/género como actividad interactiva” (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 93)

3 “una característica inherente a la persona que determina la forma en que se comporta” (p. 93)

4 “la idea central es que el sistema sexo/género constituye una categoria saliente en cualquier contexto cultural y social” (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 95).

5 “se concibe como algo que las personas hacen en lugar de como una propiedad que poseen los individuos, de ahí su categorización como acción verbal y no como sujeto nominal” (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 96)

ação, construção e atuação social performática, ocorrendo nos níveis sociocultural, interativo e individual:

No nível sociocultural o gênero se desenvolve através de uma ideologia que se estende mediante os estereótipos presentes nos meios de comunicação, assim como na família e no trabalho.

No nível interativo, as chaves de gênero orientam comportamentos diferenciados nas interações sociais com homens ou com mulheres, processo que nem sempre ocorre de forma consciente.

Por último, no nível individual, mulheres e homens aceitam as diferenças de gênero como parte do autoconceito e adotam atitudes e comportamentos adequados a seu sexo segundo as normas estabelecidas em cada cultura (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 96).6

Essa terceira linha enfatiza que o fazer é a mola propulsora das construções de gênero, que pode dar-se nos diversos locais e abrange os aspectos cognitivos, afetivos, biológicos e culturais dos sujeitos, portanto, é contextualizado, o que leva à ressignificação do gênero conforme os sujeitos se situem no tempo e espaço. Ainda segundo as autoras, os estudos de gênero na psicologia buscam explicar o comportamento humano em toda sua diversidade, considerando os fatores biológicos e socioculturais, e destacam que o gênero é um marcador base das diferenciações.

No campo da Educação, aponto as contribuições de Louro (2014), que a partir de um breve apanhado histórico sobre o movimento feminista, apresenta as transformações do conceito de gênero como: construção ligada aos aspectos biológicos; uma categoria de análise relacional baseada nas relações de poder; um processo constante, múltiplo e plural ligado a outras categorias. Situando-o no campo da Educação, propõe pensar gênero a partir do campo social, onde as desigualdades são produzidas, assim, ele se constitui nas e pelas diferentes instituições, incluindo a escola.

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A nivel sociocultural el género se desarrolla a través de una ideología que se extiende mediante los estereotipos presentes en los medios de comunicación, así como en las estructuras familiares y laborales.

A nivel interactivo, las claves de género orientan comportamientos diferenciados en las interacciones sociales con hombres o con mujeres, proceso que no siempre actúa de forma consciente.

Por último, a nivel individual, mujeres y hombres aceptan la distinción de género como parte del autoconcepto y adoptan actitudes y comportamientos adecuados a su sexo según las normas establecidas en cada cultura. (CALA CARRILLO, BARBERÁ HEREDIA, 2009, p. 96)

Louro (2014, p. 45) afirma que “os gêneros se produzem, portanto, nas e pelas relações de poder”, com base nos estudos foucaultianos que o consideram descentralizado, ou seja, exercido em diferentes modos e espaços, por diferentes agentes, produzindo sujeitos e corpos. Outro conceito importante que ela destaca é o de diferença, ligado às relações de poder, que apontam o “diferente” como ponto de referência para demarcar posições, lugares, papéis e características. Assim, poder e diferença são fundamentais na perspectiva da autora para pensar as relações de gênero aprendidas, reproduzidas e/ou reconfiguradas no espaço escolar.

Segundo Louro (2014, p. 61) “a construção escolar das diferenças”, perpassa todo o processo pedagógico e desde seu início a escola promove a separação de sexo, de classe e de idade. Essa separação também é curricular e metodológica, podendo ser observada na linguagem que distingue os sujeitos e anunciam o que é ou não permitido fazer em razão das atribuições de gênero; nos materiais didáticos onde são expressas as identidades desejáveis e aceitáveis; e no incentivo diferenciado à participação e dedicação em determinadas disciplinas.

Louro (2014) afirma que nas escolas também ocorrem situações, planejadas ou não, em que essas diferenciações e separações são superadas por práticas que possibilitam o cruzamento das fronteiras de gênero binárias e dicotômicas. Nesse sentido, ela aponta proposições para fortalecer essas práticas, como, por exemplo, a pedagogia feminista, que traz como proposta um ensino em que todos/as aprendem juntos/as, a partir de uma prática dialógica que considera e valoriza todas as vozes e experiências, com base num trabalho de cooperação (em que todos/as agem para o bem comum) ao invés da competição.

Na perspectiva da Educação Infantil, assumida nesta tese, Carvalho (2014) afirma que gênero “funciona como um princípio de organização da ordem social e continua sendo usado como um princípio organizador do sistema, da instituição, das práticas curriculares e pedagógicas da Educação Infantil” (p. 436). Assim, gênero é um processo aprendido, que se inicia nos primeiros anos de vida e tem continuidade nas instituições educacionais.

A autora define gênero como “um dos elementos estruturantes da organização social, da divisão do trabalho, das relações sociais e das identidades individuais e sociais” (CARVALHO, 2014, p. 428), bem como “um processo de corporificação” (431). Portanto, a construção das identidades de gênero ocorre

tradicionalmente em todas as relações: homem/homem/mulher/mulher, adulto/adulto/criança/criança; e em todas as instituições: política, econômica, educacional, religiosa, cultural etc., tendo como referência o corpo biológico em que são inscritas características de masculinidade e feminilidade culturalmente construídas. O trabalho com o corpo é central na Educação Infantil, sendo os cuidados explícitos, porém o gendramento ainda implícito.

Como observado, o conceito de gênero vem sendo debatido e reconfigurado ao longo do tempo, nos diversos campos de conhecimento, enfatizando sua característica transversal. Gênero é a primeira forma de divisão social e de relação de poder. Construído tradicionalmente de forma naturalizada e invisível nos diversos espaços sociais, e sendo aprendido, portanto, suas tradicionais relações de desigualdades e identidades binárias e dicotômicas podem ser transformadas.

Assim, é preciso investir em práticas que desconstruam as relações desiguais de gênero, o sexismo e as identidades fixas, baseadas em estereótipos. Ampliando as experiências e vivências infantis. Entendo que meninos/homens e meninas/mulheres podem e devem aprender sobre suas múltiplas capacidades físicas, intelectuais e emocionais, a dividir responsabilidades sociais, a assumir o cuidado cotidiano consigo, com os outros e com o planeta, e a trabalhar em conjunto pela garantia do bem estar de todos e todas.