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De posse deste conhecimento, sobre a construção social da infância, por extensão, podemos dizer que a escola também é uma construção social, e que a educação oferecida às crianças ao longo da história tem se modificado.

No seu início a Educação Infantil tinha um caráter totalmente voltado para a assistência social e levou um tempo considerável para se desvencilhar desta “alcunha assistencialista”. Esta demora foi de quase um século, pois segundo Monarcha (2009, p. 119- 120), o primeiro edifício do Jardim da Infância, ou melhor, o edifício do kindergaten – denominação de época – foi inaugurado em 1897, em São Paulo, mais especificamente nos fundos da Escola Normal da Praça da República, e para crianças com idade entre quatro e sete anos.

Segundo Rosemberg (2009, p. 147-48) “o modelo de uma pré-escola brasileira de massa, desempenhando também a função de assistência, foi introduzido no Brasil sob influência de propostas divulgadas pelas organizações intergovernamentais, em especial, o UNICEF e a UNESCO”. É do UNICEF, a mais antiga proposta para a pré-escola, e durante as décadas de 50 e 60, as bases conceituais do modelo de Educação Infantil foram lançadas, inclusive no Brasil, com diversas orientações, das quais a autora destaca: “a ênfase na participação da comunidade como estratégia para implantação da política social destinada à infância pobre; a estratégia de atuar junto aos governos nacionais” (no Brasil, junto aos Ministérios de Assistência Social e Ministério da Educação e Cultura); “sua entrada na área da educação” (que até então era de competência da UNESCO) (ROSEMBERG, 2009, p. 149).

Esses elementos melhor aperfeiçoados lançaram os pilares para novas propostas de educação pré-escolar de massa no Brasil, sendo uma delas o Projeto Casulo, implantado em 1976 pela Legião Brasileira de Assistência (LBA), cujas características foram:

[...] objetivos de assistência e de desenvolvimento integral da criança, que ampliaram a perspectiva exclusiva de preparação para a escolaridade obrigatória, mas que adotaram uma forte conotação preventiva; perspectiva de atendimento de massa, ampliando a cobertura de baixo custo, o que seria conseguido através de construções simples, uso de espaços ociosos ou cedidos pela comunidade e a participação de trabalho voluntário ou semi-voluntário de pessoas leigas (da comunidade) (ROSEMBERG, 2009, p. 151).

Portanto, a procedência deste modelo data da década de 60, mas sua implantação só ocorreu no final da década de 70; e na primeira avaliação após o ano seguinte desta, já se evidenciava problemas estruturais, tais como: “falta de pessoal capacitado; pouco conhecimento da cultura das famílias atingidas [...]; inadequação do espaço físico [...]” etc., evidenciando a dificuldade de efetivação de um programa apoiado consubstancialmente nos recursos de comunidades pobres (LBA, Avaliação do Projeto Casulo, 1978, p. 12 apud ROSEMBERG, 2009, p. 154).

Cabe destacar que a origem das instituições de Educação Infantil ligada a órgãos públicos, é da década de 1970, e tem a ver com a luta por creches empreendida pelos movimentos sociais de comunidades, mulheres feministas, trabalhadoras etc., que reivindicavam melhores condições de vida e local apropriado para deixarem seus/suas filhos/filhas durante a jornada de trabalho. O marco legislativo dessas reivindicações por direitos datam de maio de 1943, com um decreto que cria a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Conforme ressalta Mattos e Kishimoto (1998) o pensamento da época com relação às creches, era de que para a criança bastava um lugar para “abrigá-la e distraí-la” e para a mulher, a justificativa diante da necessidade de “colaborar nas despesas domésticas”.

Nas últimas décadas, com a intensificação do processo de urbanização, a inserção da mulher no mercado de trabalho e as mudanças na organização das famílias, houve um aumento na demanda por vagas em escolas para as crianças, na época, de 0 a 06 anos. No entanto, como vimos acima, não havia políticas bem definidas para este tempo de vida. Durante os anos 80, com a forte expansão de instituições de Educação Infantil no país, de forma desordenada, adota-se um modelo a baixo custo e empobrecido, que gerou precariedade no atendimento, realizado por profissionais, na sua maioria, sem nenhuma formação pedagógica.

A Legião Brasileira de Assistência, criada em 1942 e extinta em 1995, no Ministério da Previdência e Assistência Social, teve como objetivo coordenar o serviço de diversas instituições independentes, que historicamente eram responsáveis pelo atendimento das crianças de 0 a 6 anos, denominadas: comunitárias, confessionais e filantrópicas, de acordo com a localização destas e o tipo de mantenedora. Embora extinta, o Governo Federal continuou a repassar recursos para as creches por meio da assistência social.

De forma marcante, ainda nesta década, se intensificou a separação entre o atendimento nas creches (de 0 a 3 anos), visto como algo destinado às camadas populares, e a pré-escola, segmento direcionado para as classes médias e altas. De acordo com Karina Rizek,

ex-coordenadora de Educação Infantil do MEC,

Essa é uma separação que funda a Educação Infantil no país. As creches, totalmente financiadas pela assistência social, eram vistas como uma alternativa de subsistência para crianças mais pobres e estavam orientadas para cuidados em relação à saúde, higiene e alimentação. Já a pré-escola passou a ser encarada como a porta de entrada das crianças ricas na Educação. (Revista Nova Escola, março de 2010).

Para Mattos e Kishimoto (1998), ainda na década de 70, o direito à creche só para mulheres trabalhadoras denotava que o trabalho produtivo era uma “carga”, pois as impediam de desempenhar o papel de mãe, para o qual foram histórica e culturalmente preparadas. Nesse sentido, a creche era vista como um mal necessário; não havia entendimento de seu papel educativo e o reconhecimento do trabalho da mulher, no processo de produção, era quase inexistente.

Entretanto, a Constituição Federal de 1988, define o acesso à creche como um direito à população, e não somente à mãe trabalhadora e pobre, conforme o artigo 208, que diz que

“O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de [...] Inciso IV- educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”.

A criança passa, portanto, à condição de sujeito de direitos, com direitos à educação e cuidados. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, destaca também o direito da criança a este atendimento (artigo 54, inciso IV), portanto é um direito constitucional da criança desde o seu nascimento.

À luz do exposto, fica evidente que a Educação Infantil (creches e pré-escola), embora tenha mais de um século de história como cuidado e educação extradomiciliar, somente nos últimos anos foi reconhecida como direito da criança, das famílias, como dever do Estado e como primeira etapa da Educação Básica9, conforme consta da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN 9394/ 96), que tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança, em seus aspectos: físico, psicológico, intelectual e social, numa ação complementar entre família, escola e sociedade.

Essa nova reforma na educação brasileira trouxe diversas mudanças às leis anteriores, seja com relação à expansão de vagas, qualificação e formação dos/das profissionais da Educação Básica; assim como educação obrigatória – com oferta na rede pública para estudantes de seis aos 14 anos de idade; Educação de Jovens e Adultos; ampliação de recursos federaispara atender toda a Educação Básica, beneficiando da Creche ao Ensino Médio; e também às relativas à Educação Especial e à avaliação, com a criação de um sistema que avalia a aprendizagem (do alunado), as escolas e as redes públicas.

Foi pioneiro o artigo 62 da Lei nº 9.394/ 96 ao instituir a necessidade de formação para o/a profissional da Educação Infantil, que deve ser “em nível superior, admitindo-se, como formação mínima, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal".

Outros documentos foram publicados pelo MEC, tais como: Subsídios para Credenciamento e o Funcionamento das Instituições de Educação Infantil (1988); Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1988) e, em 1999, foi publicado as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Esses documentos são, hoje, os principais instrumentos para elaboração e avaliação das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil do país.

Entretanto, a ambiguidade referente ao/a profissional da Educação Infantil se faz presente, evidenciando fragilidades e tensões no processo de integração e regulamentação das creches e pré-escolas no âmbito do cenário educacional brasileiro.

Neste contexto, faz sentido o que nos diz Nosella, referindo-se ao complexo movimento político-cultural e pedagógico, desde a década de 60, e os efeitos produzidos a partir daí sobre as novas formas de pensar e viver a cultura, a educação, a escola, a família, e consequentemente, a criança, “a educação infantil passou a descobrir e marcar a diferença do ‘planeta infância’, definindo e defendendo radicalmente seus direitos” (NOSELLA, 2002, p. 161). Como enfatiza Kramer (2008, p. 56) acerca desses direitos, a educação da criança pequena é “direito social”, assim como o direito à saúde e à assistência, no combate às desigualdades e é “direito humano”, na medida em que assegura uma vida digna a todas as crianças e, principalmente, àquelas expostas a contextos de violenta socialização urbana.

Com a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, de acordo com a Lei 11.114 de 16/ 05/ 200510, é de responsabilidade da Educação Infantil a faixa etária de 0 a 05 anos. E, é com esse tempo de vida das crianças, ou melhor, com esta temporalidade específica do desenvolvimento humano e as consequentes particularidades da primeira infância, marcada por desejos, interesses, vicissitudes, necessidades e direitos humanos, que os professores homens deste estudo trabalham cotidianamente e também estão descobrindo e se descobrindo.

Nesta perspectiva, nos cabe indagar ao modo de Kramer (1999) em seu texto O papel social da educação infantil:

De que modo as pessoas percebem as crianças? Qual é o papel social da infância na sociedade moderna? Que valor é atribuído à criança por pessoas de diferentes classes e grupos sociais? O que significa ser criança em diferentes culturas? Como trabalhar com crianças pequenas, considerando seu contexto de origem, seu desenvolvimento e os conhecimentos, direito social de todos? Como assegurar que, diante da diversidade das populações infantis e das contradições da sociedade contemporânea, a educação cumpra seu papel social? (KRAMER, 1999, p. 3).

E continua,

[...] Este texto não responde a essas questões, mas se sente comprometido com elas e com uma sociedade fundada no reconhecimento do outro, nas diferenças (de cultura, etnia, religião, gênero, classe, idade) e na superação da desigualdade (KRAMER, 1999, p. 3).

A autora nos convida a olhar para a criança, na sua complexidade de sujeito enquanto sujeito de um determinado tempo de vida, sujeito de cultura e história marcado por suas singularidades e diferenças, muitas vezes associadas a desigualdades. Nesse sentido, a educação tem como desafio ser um espaço de formação plena, integral do sujeito na sua temporalidade presente, e não de um projeto, de um vir a ser, que precisamos forma(ta)r para o futuro – seja para o Ensino Fundamental ou para o mundo do trabalho. Ele é um sujeito hoje!

10 Esta lei altera os artigos 6o, 30, 32 e 87 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, com o objetivo de tornar

Contudo, na Educação Infantil, o corpo é presença constante, até porque a criança na interação com o outro responde com este corpo, expondo suas alegrias, tristezas, descontentamentos, desconfortos, fome etc. Por outro lado, é fortemente marcado pelo cuidado que deve ser dado a este corpo, principalmente quanto à saúde, higiene e alimentação. E, ainda hoje, século XXI, estas são funções marcadamente femininas e, quanto menor a criança, mais frequentemente é papel da mulher assumi-las como “naturalmente” de sua competência.

Porém, a concepção de Educação Infantil vai além deste fazer, faz-se necessário romper com a visão maturacionista e adultocêntrica ainda tão presente em concepções e práticas pedagógicas e considerá-la, como de fato o é, elemento fundamental na formação humana da criança e, esta enquanto sujeito desse processo, que precisa de cuidados sim, posto que cuidar significa educá-las e, para tanto, homens e mulheres podem e devem fazê-lo.

Assim, a educação em sua integralidade, considera o cuidado como algo indissociável ao processo educativo. Educar e cuidar são ações indissociáveis, e desde a década de 90,finalidade precípua da Educação Infantil. Porém, esse é um debate que embora superado nos meios acadêmicos, persiste, e está presente, quer para os profissionais que trabalham com a Educação Infantil (equipe escolar), quer para a comunidade em geral, visto as peculiaridades da Educação Infantil; sobretudo nos diferentes momentos da rotina na creche, uma vez que, na maioria das vezes, essa questão está presente em relação à situação de dependência das crianças por sua pouca idade e, que de fato, são esses cuidados básicos que garantem sua sobrevivência.

Diante disso, podemos dizer que há sem dúvida nenhuma, atividades específicas de cuidado na Educação Infantil, mas em qualquer nível de ensino, no processo de educação, cuidamos sempre do Outro, ou deveríamos cuidar, pois educar engloba cuidar, como afirma Kramer (2008) e nos remete a pensar se esta separação, essa visão discriminatória, não tem a ver com o fato de termos sido uma sociedade que teve escravos – expressão máxima da desigualdade, e, portanto, “[...] poderia imaginar que as tarefas ligadas ao corpo e a atividades básicas para a conservação da vida – alimentação, higiene – seriam feitas por pessoas diferentes daquela que lidam com a cognição!” (KRAMER, 2008, p. 78).

Essa oposição binária pode ser vivenciada no concreto entre duas pessoas, como sugere a autora, mas também uma mesma pessoa realizando ambas as tarefas. Como se ao realizar as atividades básicas de cuidado não implicasse educar e fosse algo de menos valia.

Por outro lado, quando um professor homem e uma professora mulher estão numa mesma classe de creche, é lícito supor que esta situação se repete: as “mulheres cuidam” e os

“homens educam”, numa clara divisão sexual do trabalho, que vai ao encontro de outra ideia que está presente na Educação Infantil, pois de acordo com Sayão:

[...] São evidentes os preconceitos e estigmas originários de idéias que veem a profissão como eminentemente feminina porque lida diretamente com os cuidados corporais de meninos e meninas. Dado que, historicamente, e como uma continuação da maternidade, os cuidados com o corpo foram atributos das mulheres, a proximidade entre um homem lidando com o corpo de meninos e/ou meninas de pouca idade provoca conflitos, dúvidas e questionamentos, estigmas e preconceitos. [...] No entanto, além de nossas crenças mais comuns e, muitas vezes pré- concebidas, o que sabemos sobre como atuam professores em creches? (SAYÃO, 2005, p. 16).

De fato, não sabemos muito como os professores atuam em creches, mas o que sabemos corrobora com algumas das ideias e situações apontadas acima: divisão de trabalho entre professores homens e professoras mulheres; a crença na sexualidade “exarcebada” do homem em relação à “assexualidade” da mulher; entre outras que abordaremos de forma mais aprofundada, quando da análise das narrativas dos professores homens deste estudo.

Se considerarmos em termos de tempo na história, é há pouco mais de algumas décadas que a Educação Infantil vem assumindo um outro status; uma vez que somente nos últimos anos, é vista como um direito da criança e também, espaço importante de socialização, de ampliação de conhecimentos e uma necessidade da sociedade contemporânea.

Sabemos, entretanto, que ainda há diferentes tipos de atendimento na Educação Infantil: conveniado, municipal, estadual ou particular, com fins lucrativos, cooperativos, comunitários, filantrópicos, confessionais, no centro da cidade, na periferia, na capital, no interior, na zona urbana ou rural. Modalidades diversas não só no tipo de atendimento, mas também nas condições físicas, funcionamento, recursos humanos e pedagógicos etc. e que resultam numa pluralidade de realidades.

Nesse contexto, consequentemente, os/as profissionais – homens e mulheres que a compõem, passam a “construir” uma outra identidade.

Essas considerações acerca da Educação Infantil e as mudanças que ocorreram nesta etapa da Educação nos levam ao próximo capítulo que trata das identidades.

4 IDENTIDADES