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4.2 Identidade Feminilidades e Masculinidades

4.2.2 Masculinidades – Homens no Plural

Parafraseando Beauvoir, em sua célebre frase, podemos dizer que Não se nasce homem, torna-se homem. Diante desta afirmação nos perguntamos: o que é necessário para tornar-se homem?

Na perspectiva de Badinter (1993), tornar-se homem na civilização ocidental, envolve fatores psicológicos, sociais e culturais, para além da genética. Tornar-se homem, nos remete à frase no imperativo tantas vezes dita aos meninos, adolescentes e até mesmo ao adulto masculino: “Seja homem!”, evidenciando que é necessário mais que órgãos sexuais masculinos para definir o macho humano.

Outra evidência desta tarefa a ser cumprida, segundo a autora é o desafio constante: “Prove que você é homem!”, evidenciando para si mesmo e aos outros homens que o cercam, a pouca confiança que têm em sua identidade sexual, que lhe exigem provas de sua virilidade (BADINTER, 1993, p. 4). Diferentemente do que ocorre com a mulher, para quem a feminilidade parece natural e a primeira menstruação faz da menina mulher para sempre, sem que haja necessidade de esforços e provações de sua identidade, já a masculinidade é algo a ser conquistado.

Acima de tudo, tornar-se homem, isto é, ser “um verdadeiro homem” implica num percurso a duras penas, pois a virilidade não é dada, deve ser construída, “fabricada” e o sucesso deste empreendimento, dada a pouca garantia, deve ser exaltado. Badinter nos lembra a frase citada por Bourdieu, quando este diz: “Para louvar um homem, basta dizer que ele é um homem” (1990 apud BADINTER, 1993, p. 4-5, grifo da autora).

A autora (BADINTER, 1993, p.37-9) nos lembra que do ponto de vista biológico, é da mulher que nasce uma mulher, cuja fórmula cromossômica é XX, sendo esta a base em todos os mamíferos, e que é orientada para produzir fêmeas. O homem, cuja fórmula cromossômica é XY, possui todos os genes presentes na fêmea e herda o cromossomo Y, e força a gônada embrionária indiferenciada a formar um testículo ao invés de um ovário. Diante disso, Badinter (1993, p. 189) argumenta que o sistema patriarcal, enquanto paliativo cultural, nasce quando os homens perceberam que estavam em desvantagem em relação às mulheres, pois nasciam de uma mulher e nunca poderiam anular os efeitos desta fusão original. E, em continuidade ao seu argumento, ressalta que embora os homens possam atenuar as dores da separação e adquirir a identidade masculina, sempre será mais difícil e demorado fazer um homem do que uma mulher.

Se este argumento é válido, é lícito supor que também para o homem é mais “difícil mudar” seu comportamento do que para as mulheres, como nos diz o professor Claudio “[...] algumas pessoas defendem que talvez para a mulher é algo mais natural, não sei, é difícil posicionar nesse sentido”, referindo-se à questão da imagem e do que é esperado para um e outro sexo/gênero (PROFESSOR CLAUDIO).

“Desde o surgimento do patriarcado, o homem sempre se definiu como ser humano privilegiado, dotado de alguma coisa a mais, ignorada pelas mulheres. Ele se julga mais forte, mais inteligente, [...]. E este mais justifica sua relação hierárquica com as mulheres [...]” (BADINTER, 1993, p. 6, grifos da autora).

Nessa perspectiva, no início do século XX, causava estranhamento um homem no magistério, principalmente no primário, dado que a profissão já era considerada feminina, como podemos constatar nas palavras de Lopes (2002, p. 324-5) sobre a concepção de educação de Afrânio Peixoto, médico, assim como um fragmento do discurso deste, que

[...] Separava a educação nacional em aspectos masculinos e femininos. Era a favor de um “taylorismo educativo” e considerava a pedagogia primária uma função feminina: ‘o brasileiro que se destina a professor primário é uma fração de homem, que precocemente capitulou diante da vida’, pois um verdadeiro homem não aceitaria um trabalho monótono; às mulheres esse tipo de trabalho seria muito conveniente e adequado. [...] ‘O professor primário é uma aberração’, [...] Diretor de instrução que fui, nunca considerei sem desdém, os raros rapazes que se matriculam nas escolas normais. São falidos, que antecipadamente capitularam diante da vida, num país em que as utilidades masculinas oferecem compensações másculas. As mulheres que aspiram ao magistério não, são o escol do sexo’ (1936: 98-99 apud LOPES).

Posições nada dignificantes deste intelectual da década de 30, escolhido por Anísio Teixeira, para ser o primeiro reitor da recém criada Universidade do Distrito Federal, em 1935. Signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação, dentre outras posições de destaque, portanto, considerado como intelectual e um grande educador, e que desqualifica a docência para o sexo masculino. Entretanto, parece que essas colocações de Afrânio Peixoto ainda estão presentes no imaginário das pessoas com relação aos homens no magistério; mas na época atual, recaem, sobretudo, na Educação Infantil.

Contudo, dada a complexidade da sociedade atual e as transformações sociais presentes, principalmente nas últimas décadas, com a progressiva participação das mulheres – na vida social em geral e a redefinição de sua condição na relação com os homens, cujos efeitos a todos/as atingem –, faz com que os homens percam suas antigas referências e busquem definir outras, em que um novo homem está para ser (re)inventado.

No sistema patriarcal, o patriarca é aquele que encarna a lei, a autoridade, a rigidez, à distância, inclusive dos bebês, que se tornava propriedade exclusiva da mãe. Com o

desaparecimento progressivo do patriarcado tem surgido um “novo pai”, sobretudo em relação a sua prole, e mais que isso, ao dizer adeus a este sistema, “precisam reinventar o pai e a virilidade que vem dele” (BADINTER, 1993, p. 189).

Segundo Badinter (1993, p. 5), são da década de 70 os primeiros trabalhos científicos sobre a masculinidade, sendo os teóricos das ciências humanas nos Estados Unidos, os que inauguram o questionamento sobre o papel do homem ideal. Na década de 80, em um período carregado de angústia: o homem é um problema a ser resolvido. Tornam-se fatores de diferenciação masculina – a classe, idade, raça ou a preferência sexual e são os anglo- americanos que falam de masculinidades, ou seja, masculinidade no plural.

A causa para essa desestabilização do lugar do homem na sociedade deve-se ao feminismo ocidental dos anos 60, que põe fim às distinções entre mulheres e homens, pois estas ao redefinir suas condições: no trabalho, na família, etc., redefinem suas identidades, e, consequentemente, desestabilizam os homens, uma vez que a característica universal masculina: a superioridade do homem sobre a mulher evapora-se!

Na reportagem Lição de paternidade, parece acertado dizer que um novo pai nasce não só porque seu bebê nasceu, mas porque ele deu lugar para que um novo homem nascesse: “Paulo acompanhou as oito ultrassonografias da mulher [...]”; “[...] ele e Michelle, casados há sete anos, frequentaram o curso de gestante [...]”; “[...] Paulo corta o cordão umbilical do próprio filho [...]”; Paulo diz em alto e bom som: “[...] Meu filho nasceu e é lindo! [...]” e também “[...] Entrei aqui um e vou sair outro [...]”. Ainda com relação à reportagem, Telmo Rodrigues, obstetra há 21 anos, que fez o parto do bebê de Paulo, pontua sobre essa mudança dos homens, inclusive ressalta que passou a atender no consultório aos sábados, pois os pais trabalham e “[...] não abrem mão de acompanhar toda a gestação e de ver o crescimento do filho nas ultrassonografias” (BALMANT, 2009, p. 10-1).

Atualmente não falamos mais em masculinidade e feminilidade, mas sim em masculinidades e feminilidades, uma vez que o conceito de gênero, que embasa esta análise, procura se afastar de uma compreensão biológica, entendendo que as diferenças observadas entre meninos e meninas têm como origem as construções sociais de masculinidades e feminilidades, historicamente definidas (Scott, 1995), abordagem essa que questiona também uma visão bipolar dos sexos, isto é, não há uma masculinidade e uma feminilidade a priori, uma vez que não são blocos homogêneos internamente. Assim sendo, podemos dizer, acompanhando a reportagem do pai que participou do parto de seu filho, que há homens que não assistiriam ao parto de seu bebê.

A concepção dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um pólo que se contrapõe a outro (portanto uma idéia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se "enquadram" em uma dessas formas. Romper a dicotomia poderá abalar o enraizado caráter heterossexual que estaria, na visão de muitos/as, presente no conceito "gênero". Na verdade, penso que o conceito só poderá manter sua utilidade teórica na medida em que incorporar esses questionamentos. Mulheres e homens, que vivem feminilidades e masculinidades de formas diversas das hegemônicas e que, portanto, muitas vezes não são representados/as ou reconhecidos/as como "verdadeiras/ verdadeiros" mulheres e homens, fazem críticas a esta estrita e estreita concepção binária (LOURO, 2003, p. 34).

Acompanhando o argumento da autora acima citada, Badinter (1993, p. 10) faz referência a Michael Kimmel, uma vez que “A explicação sociológica para tal cegueira está no fato de que nossos privilégios são com frequência invisíveis para nós”, ao referir-se, por exemplo, à tradicional invisibilidade do gênero masculino, o que contribui para sua identificação com o humano.

Portanto, atualmente, “[...] o homem não é mais o Homem” (BADINTER, 1993, p. 10), ele existe em relação à mulher. A masculinidade, atributo do homem, é um conceito relacional e só pode ser definido com relação à feminilidade da mulher.

Percebemos, que o papel vivido pelos homens, muita vezes, ainda o aprisionam numa determinada representação, que os impossibilitam de viver e demonstrar seus sentimentos, devido a um pré-julgamento da sociedade, estabelecendo o que é próprio para o sexo masculino (e, consequentemente, para o feminino), impossibilitando-os muitas vezes de manifestarem de forma explícita seus sentimentos.

O professor Claudio exemplifica:

[...] Acho que é uma questão [...] social, é cobrado do homem que seja firme, assim, tenha aquela rigidez. Um homem não chora etc., também tem muito disso, né? Acho que essa questão de demonstrar afeto também, às vezes, [...] é encarado na sociedade como uma certa fraqueza. Eu acho que é isso, coisas que são inseridas como forma de você viver sua vida [...] (PROFESSOR CLAUDIO).

Nessa direção, Butler afirma (2003, p. 163) que “o sexo passa a ser visto muito mais como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos do que como um dado corporal sobre o qual se impõe artificialmente a construção de gênero”.

A masculinidade, como observa Badinter, se ensina e se constrói, portanto ela é passível de mudança. Para ilustrar o seu argumento, diz: “No século XVIII, um homem digno deste nome podia chorar em público e ter vertigens; no final do século XIX, não o pode mais, sob pena de comprometer sua dignidade masculina” (BADINTER, 1993, p. 29).

As noções de masculinidade e feminilidade estão arraigadas à cultura, assim sendo nos cabe perguntar: como essas foram e estão sendo construídas e de que forma afetam na

formação e atuação de professores e professoras, e consequentemente no alunado das instituições escolares?

Uma dessas noções ainda muito presente, principalmente na Educação Infantil, foco deste estudo, diz respeito à creche, onde há pouquíssimos homens, uma vez que é um lugar quase que exclusivo da mulher, devido à crença no “instinto materno” e, portanto, esta está mais apta nesse cuidado, dado estar determinada biologicamente.

As chamadas interpretações biológicas são, antes de serem biológicas, interpretações, isto é, elas não são mais do que a imposição de uma matriz de significação sobre uma matéria que, sem elas, não tem qualquer significado. Todos os essencialismos são, assim, culturais. Todos os essencialismos nascem do movimento de fixação que caracteriza o processo de produção da identidade e da diferença (SILVA, 2006, p. 86).

Ainda com relação ao amor e instinto materno, Badinter ressalta:

[...] O amor materno é infinitamente complexo e imperfeito. [...] Longe de ser um instinto, ele é condicionado por tantos fatores independentes da ‘boa natureza’ ou da ‘boa vontade’ da mãe [...]. Ele depende não só da história pessoal de cada mulher (pode-se ser uma mãe má ou medíocre de geração a geração), da convivência da gravidez, de seu desejo de ter a criança, de sua relação com o pai, mas também de outros fatores, sociais, culturais, profissionais etc. (BADINTER, 1993, p. 67).

Deste modo, não é possível falarmos em instinto ao nos referirmos à maternidade e ao cuidado com os bebês, pois quando as circunstâncias o exigem, os homens são tão capazes desse cuidado, quanto às mulheres, inclusive tão competentes, afetuosos e sensíveis como elas quando mobilizam sua feminilidade.

Segundo Badinter, “Quanto mais o pai se deixa tomar por sua feminidade, mais ele manifestará intimidade com seu bebê e melhor pai será [...]” (BADINTER, 1993, p. 179), uma vez que ele sabe jogar com a bissexualidade. Diante disso, é possível afirmar que há múltiplas formas de se viver as masculinidades e as feminilidades, embora possa haver umas mais valorizadas que outras, dependendo do contexto sociocultural. Com relação a esse aspecto, citamos como exemplo um dos professores que trabalhava como Guarda Municipal e, concomitante, como educador de crianças e adolescentes (PROFESSOR ANDRÉ).

No livro XY - sobre a identidade masculina, Badinter (1993, p. 178-180) argumenta, baseada em diversos estudos, que os pais também maternam, portanto, a maternagem não tem sexo e se aprende fazendo. Nessas pesquisas, referidas pela autora, foram observadas algumas diferenças entre a forma de maternagem do pai e da mãe com o bebê, tais como: o pai tende a brincar mais do que a mãe, e suas brincadeiras são mais vigorosas, estimulantes e perturbadoras para o bebê; os jogos utilizados na relação com o bebê são os tácteis e de movimento que procuravam excitar o bebê, já a mãe utilizava-se de jogos visuais, que estimulavam a criança a fixar a atenção; o pai tende a tocar e segurar o bebê mais do que a

mãe, e, sobretudo, a partir de um ano da criança, o pai se comporta de maneira distinta com o menino e a menina, diferente da mãe que trata os dois de modo igual.

Nesse aspecto, parece que as conclusões observadas do ponto de vista da produção acadêmica, coadunam com a observação de uma mulher, Agente de Desenvolvimento Infantil (ADI), relatada pelo professor André, com quem ele disse ter trabalhado por um período na Educação Infantil. Segundo o professor André, a ADI disse: ‘Eu trabalhei com todos os homens da rede (com ênfase) [...], e com todos os homens [...], parece que as crianças criam um vínculo mais próximo, é estranho isso, mas eu acho que é porque vocês além de educadores, vocês são meio brincalhões, vocês são um pouco mais lúdicos’, e conclui, “ela usou um termo assim, e eu sou um pouco palhaço com criança” (PROFESSOR ANDRÉ).

Noutra pesquisa, ainda segundo Badinter (1993), o pai passa mais tempo brincando com o menino, e encorajando-o em atividades viris – independência, curiosidade e atividades físicas –, já com a menina é mais carinhoso e estimula nesta características femininas, como: passividade, tranquilidade e doçura. E, por último, aponta que os pais tocam mais os órgãos genitais do filho menino e menos da filha menina.

A masculinidade de ontem nada tem a ver com a masculinidade de hoje: múltipla, diversa, sutil e ligada ao feminino, tendo como consequência a intervenção do pai desde o nascimento com sua prole. Para Badinter, “A nova masculinidade se parecerá pouco com a antiga, mas nem por isso deixará de existir, com sua força e sua fragilidade” (BADINTER, 1993, p. 97).

Foi o que disse Cuschnir, psiquiatra e psicoterapeuta do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, na reportagem sobre Paulo e seu bebê Lorenzo, referindo-se a este como um novo modelo de pai, e o quanto o homem tem a ganhar com esta mudança, e essa ampliação de suas funções: “O pai de antigamente era pequeno, tinha funções restritivas. O de agora é mais completo, cresceu emocionalmente” (apud BALMANT, 2009, p. 11).

Se o pai de agora é mais completo, é correto dizer que o homem é mais completo, diríamos “humanamente”, não porque o homem de antes não sentia: amor, dor, fraqueza, tristeza, medo, carinho, mas porque lhe era interditado demonstrá-lo. Quantas vezes já não ouvimos nossos pais ou avós dizer: “Homem não chora”; e inclusive, a ideia que circulava era do Homem com H (de preferência maiúsculo), que não é terno e carinhoso com sua prole, até porque os pais de antigamente pouco ou quase nunca se aproximavam dos bebês. Era a imagem do Homem único, universal, a regra, a norma, o modelo a ser seguido e reverenciado.

Essa mudança dos homens de hoje – “homens no plural” – refletem as masculinidades e feminilidades que também estão presentes na construção da identidade de professores, e consequentemente, das professoras na profissão docente.

Do livro científico de Bosi (1994), Memória e sociedade: lembranças de velhos, todavia repleto de emoção e poesia, destacamos essa frase: “A imagem social já fixada pode ser minada pela escavação de uma experiência pessoal mais rica e profunda” (BOSI, 1994, p. 426), que retrata, com melhores palavras que as nossas, a possibilidade deste “novo homem” existir.