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Apêndice 3 – Extensão do modelo atualizado, com a inclusão de indicadores

3 AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA EM EDUCAÇÃO

3.2 Efeitos das avaliações em larga escala na gestão escolar

Como vimos na seção anterior, as avaliações em larga escala são instrumentos

objetivos de aquisição de informações, que permitem identificar e classificar estatisticamente

as unidades investigadas com base nos resultados finais do processo. Essas características nos permitem identificar, do ponto de vista operacional, três grandes componentes das avaliações: a metodologia de coleta, a abrangência e a comparabilidade dos resultados.

O primeiro componente envolve a elaboração dos instrumentos para a coleta de informação e segue parâmetros determinados pela psicometria, ciência que possui, em seu arcabouço, técnicas desenvolvidas com essa finalidade. Como exemplo, podemos citar a Teoria da Resposta ao Item, utilizada no SAEB e no PISA. Como as avaliações em larga escala são, em geral, de natureza quantitativa, os seus métodos e procedimentos estão revestidos pela sacralidade do discurso estatístico, o que lhes confere credibilidade e aceitação por parte de avaliadores e avaliados32.

O segundo componente pertence exclusivamente à estatística, que possui as ferramentas apropriadas para efetuar o planejamento amostral e o controle das margens de erro do estudo, assegurando, desta forma, a validade dos seus resultados para todo o universo investigado. Também este elemento goza de ampla credibilidade e aceitação por parte de avaliadores e avaliados, por pertencer ao domínio da matemática e, assim, gozar da sacralidade do discurso estatístico.

32 O leitor encontrará uma descrição breve e precisa dos diferentes métodos utilizados pela psicometria em

O terceiro componente é consequência dos dois anteriores: uma vez que os dados foram coletados, são produzidos os indicadores, que serão submetidos às análises e critérios decisórios. Cabe aqui, portanto, um parêntesis sobre o que seriam esses ―indicadores‖ sob o ponto de vista da administração e do planejamento.

Brasil (2009b) define os indicadores como grandezas matemáticas que

(...) possuem, minimamente, duas funções básicas: a primeira é descrever por meio da geração de informações o estado real dos acontecimentos e o seu comportamento; a segunda é de caráter valorativo que consiste em analisar as informações presentes com base nas anteriores de forma a realizar proposições valorativas. (BRASIL, 2009b, p. 12)

Brasil (2012) estabelece de uma forma mais explícita, em sua introdução, a função dos indicadores como elementos auxiliares para alteração da realidade:

a medição sistemática de aspectos da realidade que se deseja alterar é fundamental para uma adequada gestão, e os indicadores são uma ferramenta que podem contribuir para a realização de monitoramento e avaliação eficazes. (BRASIL, 2012, p. 14)

O papel dos indicadores, assim definido, conecta-se diretamente com a relação de poder entre avaliador e avaliado, pontuada por Rothen (2018): os indicadores constituem um espelho da própria realidade, passível de ser medida, analisada e modificada pelo processo de avaliação.

No entanto, a descrição do ―real‖ é limitada por recursos de ordem metodológica, dada a impossibilidade da onisciência humana. Segundo Luckesi (2011)

(...) a realidade que conhecemos não é toda a realidade, mas aquela ―vista por nós‖, a que cabe em nossas lentes. A realidade, objeto de investigação, é a parte do todo que conseguimos apreender com os recursos metodológicos dos quais nos servimos. É a faceta que conseguimos abarcar, a qual, não obstante a sua parcialidade, mostra- se válida para nos oferecer base para nossa ação. (LUCKESI, 2011, p. 155)

Mas não apenas os recursos metodológicos impõem limites à leitura da realidade: esta também é mediada pela interpretação humana a partir de parâmetros sociais, políticos, filosóficos, ideológicos ou comerciais. São as relações de poder, em suas diversas dimensões, que interferem na forma como é feita a leitura da realidade, ao produzirem indicadores que se conectam a essas dimensões. Nesse sentido, os indicadores tornam-se representações com

significado social. Por exemplo, Jannuzzi e Patarra (2006) definem os indicadores, de forma

mais apropriada, como medidas utilizadas para tangibilizar conceitos sociais abstratos:

Um indicador é uma medida em geral quantitativa dotada de significado social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou programático (para formulação de políticas). É um recurso metodológico, empiricamente referido, que informa algo sobre um aspecto da realidade social ou sobre mudanças que estão se processando na mesma. (JANNUZZI; PATARRA, 2006, p. 143)

Diferenciar estas definições é da maior importância para a compreensão do impacto dos resultados das avaliações pois, com a sua divulgação, encerra-se a parte operacional do processo e inicia-se a parte política, que, em teoria, utilizará os resultados das avaliações como base para decisões e mudanças. A interpretação dos indicadores, como o ―real‖ ao invés de representações sociais produzidas através de metodologias, coloca os indivíduos e organizações avaliadas diretamente na mira do resultado das avaliações, dado o vínculo que, como vimos, possuem com o conceito de accountability. Essa interpretação ―dura‖ dos resultados confere às avaliações um óbvio papel punitivo que amplifica a relação de poder entre avaliador e avaliado. A questão que se coloca, então é: de que forma poderíamos transformar as avaliações em larga escala em contribuições positivas para o processo de ensino e aprendizagem ao invés de instrumentos de responsabilização e punição?

De início, é necessário situar as avaliações, dentro do processo pedagógico, e não apenas como um instrumento administrativo gerencial. Sant‘Anna (2014), por exemplo, define a avaliação educacional como

Um processo pelo qual se procura identificar, aferir, investigar e analisar as modificações do comportamento e rendimento do aluno, do educador, do sistema, confirmando se a construção do conhecimento se processou, seja este teórico (mental) ou prático. (SANT'ANNA, 2014, p. 31)

A importância da avaliação educacional, para a autora, assenta-se em uma noção de que a aprendizagem é o resultado da interação da tríade aluno-educador-sistema de ensino, que são submetidos à avaliação. O resultado da avaliação deve refletir, assim, o desempenho desses atores no processo de aprendizagem:

―Avaliar é conscientizar a ação educativa‖. As definições levam-nos a concluir da importância da avaliação no sistema escolar, pois é através da mesma que o professor e escola verificarão se os objetivos do ensino e do sistema foram alcançados (SANT'ANNA, 2014, p. 31)

Luckesi (2011) subordina a importância das avaliações33 à existência de um projeto com resultados claros, o que no campo da educação se traduz no Projeto Político-Pedagógico. A educação tem como finalidade subsidiar o desenvolvimento do ser humano, que se configura por definições filosóficas, políticas, pedagógicas e didáticas. Isso quer dizer que, para atuar com avaliação de acompanhamento de aprendizagem em educação, temos a necessidade de um projeto que delimite o que desejamos com a nossa ação e consequentemente nos oriente em sua consecução. Hoje (...) tal compreensão significa estabelecer um Projeto Político-Pedagógico que guie a ação no cotidiano escolar. (LUCKESI, 2011, p. 22)

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Não distinguimos, aqui, as avaliações de conhecimentos praticadas cotidianamente em sala de aula para aferir os conhecimentos dos alunos das avaliações em larga escala dos sistemas educacionais, entendendo que ambas deveriam cumprir as mesmas finalidades do ponto de vista pedagógico.

Ou seja, a avaliação só fará sentido quando estiver conectada a um projeto de aprendizagem bem definido quanto às suas finalidades. Esse projeto deve estar presente, em toda sua plenitude, na prática docente, visto que é a atividade docente o meio para a sua consecução prática:

Importa observar que a avaliação operacional (...) não constrói o projeto político- pedagógico, mas o pressupõe e o serve. Porém o educador, como gestor da sala de aula, que opera com a avaliação da aprendizagem, é quem precisa fazer previamente a escolha e ter a posse das finalidades filosóficas, políticas e pedagógicas que darão rumo à ação. (LUCKESI, 2011, p. 23)

Luckesi também define a avaliação como um importante componente do ato pedagógico, atribuindo às avaliações o papel de ferramentas diagnósticas, orientadoras de ação e intervenção:

(a avaliação) subsidia o investimento na busca da realização dos objetivos estabelecidos, à medida que consiste em um modo de investigar para intervir, tendo em vista os melhores resultados (...) A avaliação operacional é um recurso subsidiário de nossa ação na busca dos melhores resultados possíveis. (...) Nossa meta é formar o educando como sujeito e como cidadão, ciente de si, do outro, do meio ambiente e do sagrado. Investir nessa meta será o nosso cotidiano e a avaliação será nossa aliada nessa jornada, mostrando-nos os resultados do que fizemos e o que falta fazer para que cheguemos aonde estabelecemos chegar. A avaliação retrata a qualidade dos resultados que estão sendo obtidos e cabe ao gestor (...), com base nessa constatação, decidir e investir na busca daquilo que foi almejado. (LUCKESI, 2011, p. 58)

Portanto, as avaliações cumprem uma importante função pedagógica: a de criar conhecimento, que será aplicado no aprimoramento da prática educativa:

A avaliação em si é dinâmica e construtiva, e seu objetivo, no caso da prática educativa, é dar suporte ao educador (...) para que aja da forma o mais adequada possível, tendo em vista a efetiva aprendizagem por parte do educando. A ação pedagógica produtiva assenta-se sobre o conhecimento da realidade da aprendizagem do educando, conhecimento esse que subsidia decisões, seja para considerar que a aprendizagem já está satisfatória, seja para reorienta-la, se necessário, para a obtenção de um melhor desempenho. (LUCKESI, 2011, p. 176)

Estas concepções contrastam com a definição de avaliação sob o ponto de vista gerencial, uma vez que relegam o accountability a um plano secundário ante a compreensão dos processos e seus resultados. Essa discrepância se dá, possivelmente, em função da confusão entre dois conceitos no campo da educação: avaliação e exame:

Existe, de fato, uma parecença entre esses dois atos, a um olhar superficial, parecem ser equivalentes, o que traz como consequência praticar exames e denominá-los de avaliação. Esses atos verdadeiramente têm em comum apenas o primeiro passo, que é a exigência da descritiva da realidade do desempenho do educando; no mais, são essencialmente distintos. (LUCKESI, 2011, p. 180)

Em contraste com as avaliações, que segundo as definições de Sant‘Anna e Luckesi operam essencialmente como instrumentos de diagnóstico sistêmico do ensino e aprendizagem, o exame representa a materialização das relações de poder em sala de aula e na

própria instituição escolar. Michel Foucault, por exemplo, dedica um extenso capítulo de sua obra ―Vigiar e Punir‖ (FOUCAULT, 2012) à questão do exame, que é por ele tratada como um autêntico ritual de demonstração de poder:

1. Por ser uma manifestação do poder disciplinar, o exame dá visibilidade ao examinado. O poder disciplinar se manifesta por meio da organização daqueles que são a ele submetidos, e o exame opera como um instrumento desta organização, revelando os objetos sobre os quais opera o poder. Não há como fugir ou se ocultar do exame, pois o indivíduo que necessita se institucionalizar para ter direitos terá de se submeter a ele. (FOUCAULT, 2012, p. 211)

2. O exame documenta as individualidades em dossiês e arquivos, institucionalizando-os e submetendo-os, desta forma, ao poder disciplinar, que adquire a possibilidade de classificá-los segundo seus próprios critérios (o códigos CID para enfermidades é um bom exemplo desse tipo de classificação), bem como quantificá-los e possibilitar a formulação de decisões a seu respeito. (FOUCAULT, 2012)

3. A documentação gerada pelos exames, ao dar visibilidade aos indivíduos e institucionalizando-os, transforma-os em ―casos‖ que podem ser minuciosamente descritos, compõem um conjunto que possui medidas, como normas e desvios (portanto, podem ser comparado com outros indivíduos) e são objetos de decisões, tomadas individualmente ou em conjunto, uma vez que a documentação obtida pelos exames permite a quantificação de caracteristicas. Por assim dizer, o exame tira o indivíduo do anonimato, não para preservação ou reverência à sua memória, mas sim para colocá-lo à disposição do poder

O exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores permanentes: sustenta-o segundo um ritual de poder constantemente renovado. O exame permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, levantar um campo de conhecimentos sobre seus alunos. (...) o exame é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre. (FOUCAULT, 2012, p. 155)

Foucault observa que, na modernidade, ―a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino.‖ (FOUCAULT, 2012, p. 155)

Luckesi (2011) aponta nove diferenças entre os atos de examinar e de avaliar, que resumiremos nos tópicos a seguir:

1. Funções do exame e da avaliação: Segundo Luckesi (2011), os exames são