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O dimensionamento do todo e de suas partes: a estatística como contagem

Apêndice 3 – Extensão do modelo atualizado, com a inclusão de indicadores

2 A FALA DOS DADOS

2.2 Estatística: a ciência do Estado

2.2.1 O dimensionamento do todo e de suas partes: a estatística como contagem

Etimologicamente, a palavra ―estatística‖ se originou do latim statisticum (PIEDNOIR; DUTARTE, 2001). Embora o termo tenha sido cunhado no final do século XVII, remetendo diretamente à noção de Estado, a atividade de coleta e sistematização de dados referentes à população e às riquezas pertencentes a um domínio geográfico, submetido a alguma estrutura de poder, é muito anterior. Com efeito, Piednoir et al. (2001) menciona que o primeiro censo conhecido data de 3.000 anos antes de Cristo, realizado pela civilização

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suméria com listas de nomes de indivíduos e bens, gravados em placas de argila. Levantamentos semelhantes teriam sido também realizados na China e no Egito séculos antes da era cristã. Por sinal, um dos registros mais antigos de coleta de dados sobre uma população se encontra no Antigo Testamento:

O Senhor falou a Moisés na Tenda do Encontro, no deserto do Sinai, no primeiro dia do segundo mês do segundo ano, depois que os israelitas saíram do Egito. Ele disse: ―Façam um recenseamento de toda a comunidade de Israel, pelos seus clãs e famílias, alistando todos os homens, um a um pelo nome. Você e Aarão contarão todos os homens que possam servir no exército, de vinte anos para cima, organizados segundo suas divisões‖ (NÚMEROS, 1:1-3)

O recenseamento do povo hebreu, ordenado pelo próprio Deus, tinha um objetivo muito claro: a formação de um contingente militar capaz de lhe assegurar um mecanismo de defesa eficiente contra seus inimigos. Embora não houvesse formalmente uma organização que caracterizasse como Estado o conjunto de tribos que tomaram parte no episódio conhecido como Êxodo, o relato bíblico esclarece o quanto seus líderes se utilizaram do conhecimento sobre o tamanho e composição dessa população para tomar as decisões necessárias para a sua sobrevivência, durante sua longa jornada através da península do Sinai.

O recenseamento periódico era, também, uma prática do Império Romano (PIEDNOIR; DUTARTE, 2001) que cumpria duas outras finalidades (além, naturalmente, do conhecimento do tamanho da população e da riqueza contida nos domínios do Império): a classificação dos cidadãos, que seria utilizada como base para políticas oficiais de distribuição de vantagens, e a cobrança de tributos, reafirmação visível da extensão e do poder do Império.

Era imenso o prestígio dos funcionários encarregados dessa atividade: em seus Cinco

Livros da República, Jean Bodin menciona que os censores tinham o status de magistrados,

formavam uma elite com poder suficiente para destituir senadores, podiam controlar a população ao realizar o levantamento de suas atividades (com o fim específico de expulsar elementos ―indesejáveis‖) e fiscalizavam a lisura dos funcionários do império encarregados da arrecadação e distribuição de impostos (BODIN, 1997, p. 262). Bodin foi, provavelmente, o primeiro pensador a vincular formalmente a sedimentação do poder do soberano e o processo de administração do Estado com o conhecimento estatístico das características dos seus domínios.

Na sua aula no Collège de France em 25 de janeiro de 1978, Michel Foucault apresentou o conceito de população como um componente essencial para o entendimento de novos mecanismos relacionados ao poder na modernidade. O surgimento desse conceito no século XVIII não se deu por acaso, pois se inseriu em uma complexa dinâmica que envolvia a produção e a circulação de riquezas, com consequências sobre o uso econômico da mão-de-

obra. Uma busca pela racionalização dos recursos disponíveis para a maximização das possibilidades de ganho:

(...) para os mercantilistas do século XVII, a população já não aparece simplesmente como urna característica positiva que pode figurar nos emblemas do poder do soberano, mas aparece no interior de urna dinâmica, ou melhor, não no interior, mas no princípio mesmo de uma dinâmica - da dinâmica do poder do Estado e do soberano. A população (...) é um elemento fundamental na dinâmica do poder dos Estados porque garante, no interior do próprio Estado, toda uma concorrência entre a mão-de-obra possível, o que, obviamente, assegura salários baixos. Baixo salário quer dizer preço baixo das mercadorias produzidas e possibilidade de exportação, donde nova garantia do poder, novo princípio para o próprio poder do Estado. (...) Ora, acredito que, com os fisiocratas – de uma maneira geral, com os economistas do século XVIII, a população vai parar de aparecer como urna coleção de súditos de direito, como urna coleção de vontades submetidas que devem obedecer a vontade do soberano por intermédio de regulamentos, leis, decretos, etc. Ela vai ser considerada um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural. (FOUCAULT, 2008, p. 90-93)

Ao falar dessa ―naturalidade‖, Foucault referiu-se a que toda população tem características que não podem ser ditadas pelo poder do soberano ou pela legalidade, mas que poderiam perfeitamente ser administradas por ele como um conjunto. A metódica identificação de padrões e regularidades nos fenômenos naturais, na morbidade e nas dinâmicas que envolvem relações de produção e de consumo, trouxe a possibilidade de se ter

um governo daquilo que se encaixa na maior parte dessas ocorrências. Nascia nesse momento

a noção de distribuição desses fenômenos, a partir da constatação de que há uma

configuração esperada que se constituirá na maioria dos casos (com algumas variações) e que

será objeto de generalizações, para os efeitos práticos da administração, e de uma minoria, que se constituirá nas exceções. Desse momento em diante, o problema se resume a decidir o que fazer com a maioria, que compõe a ―configuração geral‖, e com a minoria que nela não se encaixa perfeitamente.

Estamos falando de normas e desvios.

Ao se admitir que um sistema ou método de administração busque a identificação de padrões e configurações esperadas, que serão privilegiadas pelos processos decisórios, assume-se imediata e consequentemente a possibilidade de que o marginal, ao não se enquadrar na decisão geral, esteja sujeito a perdas. No início da sua aula do dia 11 de janeiro de 1979, Foucault exemplificou muito bem este aspecto ao comentar que (referindo-se à escolha entre sistemas penais mais rigorosos e mecanismos de vigilância continuada):

(...) há momentos, regiões, sistemas penais tais que essa taxa media (de criminalidade) vai aumentar ou diminuir. As crises, a fome, as guerras, as punições rigorosas ou, ao contrário, as punições brandas vão modificar essas proporções? Outras perguntas mais: essa criminalidade, ou seja, o roubo portanto, ou, centro do roubo, este ou aquele tipo de roubo, quanto custa à sociedade, que prejuízos produz, que perdas, etc.? Mais outras perguntas: a repressão a esses roubos custa quanto? É

mais oneroso ter uma repressão severa e rigorosa, urna repressão fraca, uma repressão de tipo exemplar e descontínua ou, ao contrário, uma repressão continua? Qual é o custo comparado do roubo e da sua repressão? O que é melhor, relaxar um pouco com o roubo ou relaxar um pouco a repressão? Mais outras perguntas: se o culpado é encontrado, vale a pena puni-lo? Quanto custaria puni-lo? O que se deveria fazer para puni-lo e, punindo-o, reeducá-lo? Ele é efetivamente reeducável? Ele representa, independentemente do ato que cometeu, um perigo permanente, de sorte que, reeducado ou não, reincidiria, etc.? De maneira geral, a questão que se coloca será a de saber como, no fundo, manter um tipo de criminalidade, ou seja, o roubo, dentro de limites que sejam social e economicamente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser considerada, digamos, ótima para um funcionamento social dado. (FOUCAULT, 2008, p. 9)

Dessa forma, o papel institucional da estatística na modernidade foi precisamente demarcado, consistindo de todo um esforço realizado pelo Estado para produzir informações sobre as populações contidas em seus domínios, com a realização de censos e levantamentos de dados, tanto de organismos oficiais nacionais e supranacionais, como também de câmaras setoriais, associações e órgãos controladores de setores econômicos, para subsidiar o planejamento e controle do Estado pelo poder soberano em bases totalmente racionais. Esse foi o papel que a estatística essencialmente teve até meados do século XVIII. O passo seguinte seria definir como, do ponto de vista prático, poderiam ser criadas as técnicas e mecanismos que permitissem medir as grandezas envolvidas na decisão de onde se encontra o ―ponto ótimo‖ mencionado por Foucault.

As ferramentas analíticas que permitiriam responder a essa questão já eram bem conhecidas pelos matemáticos desde o século XVII – o cálculo integral e diferencial e a análise combinatória. A associação de ambas levou a um desenvolvimento que revolucionaria a estatística e, por conseguinte, a forma de se pensar nos números originários das populações: a teoria da probabilidade.