• Nenhum resultado encontrado

Elementos para uma compreensão da cultura digitaL Leituras alternativas sobre remix e

“Os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos (…) O que não se diz é que o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade técnica é hoje a racionalidade da própria dominação.” Adorno (2009, p. 6) “A ordem global da informação constitui uma ‘cultura tecnológica’ em que os dualismos previamente existentes da tecnologia, de um lado, e da cultura, do outro, colapsam num plano imanente.” Lash (2002, p. x)

Tendo estabelecido as suas linhas mestras, prosseguiremos tentado complementar a moldura de Bourdieu colocando-a em diálogo com três linhas de pensamento complementares que nos permitem pensar o encontro da cultura com a digitalização, mormente na forma arquétipa que lhe é atribuída através das temáticas do remix e do open source. Respectivamente, Luc Boltanski (e colaboradores), Fredric Jameson e Scott Lash.

Os dois primeiros desenvolvem análises de vocação histórica (o segundo de cunho materialista o primeiro de cunho pragmático) que nos permitem indagar sobre a causalidade da cultura digital, evidenciado a sua interpenetração com a organização económica e a importância crescente do consumo como factor de individualização. O terceiro introduz uma nota de optimismo, entabula um diálogo com a tradição fenomenológica e chega a admitir que o individualismo expressivo em rede pode augurar formas de associação que impregnem a comunicação contemporânea de elementos pré-modernos, levando à consumação do ideal comunitário por outros meios.

Tanto Boltanski como Lash, revelam em acréscimo uma preocupação explicita de manter um diálogo com o autor francês, evidenciando o último uma preocupação adicional em incorporar o pensamento espacial de Lefebvre, particularmente útil para um trabalho sobre tecnologias locativas.

Através da conceptualização das modernas sociedades informacionistas como compostas por economias de signos de signos e espaço, Lash oferece-nos subsídios para articular a cultura digital em torno do triónimo estética, individualismo e espaço. Especificamente ela é portadora de uma noção da primeira como interactiva e do segundo como expressivo, tornado possível conciliar o espaço dos fluxos impostos pela superestrutura económica com os lugares como ponto de consumo, inscrição e experiência individual.

5.2.1 DO CONEXIONISMO COMO NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO.UMA REAPRECIAÇÃO

DA CULTURA DIGITAL NOS TERMOS DE BOLTANSKI

Se Economia e Cultura constituem domínios interactuantes que correm a par e passo e se, por um lado, os processos culturais tendem a reflectir e a acompanhar os paradigmas económicos, constituindo as formas de consciência social epifenómenos das relações materiais, porventura integrados nos aparatos de dominação (Gramsci, 1971; Horkheimer & Adorno, 2002; Ritzer, 2007b, p. 1307 e seg.s) e se, por outro, de forma não necessariamente contraditória, a cultura tende a exercer um efeito constitutivo seja sobre a acção individual, instituindo tanto comportamentos norteados menos pela

racionalidade instrumental (Weber, 2001) do que pelos significados atribuídos - ultima ratio cosmológicos (relativos à percepção da condição humana na escala do universo e no que se entende ser a ordem “natural” das coisas) -, como formas de solidariedade e associação (Durkheim, 2002), correspondidas a partir da gramática comum dos primeiros, então, pode-se dizer que a cultura remix contemporânea e o correspondente discurso sobre a digitalização contrabalançam a impotência crescente dos indivíduos em controlar e ser achados quanto os processos de produção sugerindo em contrapartida que o controlo e o exercício reflexivo sobre o consumo os emancipa, sendo possível estabelecer uma analogia entre as indiferenciações industrial (de facto, os processos de convergência tecnológica e de integração de protagonistas) e laboral, entre o lazer e o trabalho e entre a estética interactiva da cultura digital e a (des)organização (Lash & Urry, 1987) do capital organizado em fluxos globais.

Neste caso, a cultura digital deve ser vista como algo de constitutivo, estabelecendo através da generalização da computação e da comunicação em rede uma lógica de imposição das categorias perceptivas tal que a principal oposição deixou de ser entre o que é legitimo e ilegítimo, passando a ser entre o que está dentro e o que está fora. Instituído o dever da inscrição individual, o problema da “diferenciação” deixou de ser qualitativo e passou a ser quantitativo. Num ecossistema que efectivamente promove a “indiferenciação”, seja das formas de expressão (dos formatos multimédia), hibridizadas sobre o denominador comum do código, em que o software e as interfaces gráficas instituem um ambiente equalizador (Berry, 2011; Manovich, 2013), seja dos domínios de vida, a distinção converteu-se numa questão de mobilidade, de velocidade e de agilidade na apropriação dos recursos disponíveis.

Assim, Boltanski e Chiapello (1999, 2007), partilhando o enfoque histórico de Jameson, porém, de forma menos ideologicamente comprometida, bem como elementos da sociologia de Bourdieu, do qual o primeiro foi colaborador (Bourdieu & Boltanski, 1990), porém de forma mais “pragmática” (Nachi, 2006), recusando ver nos indivíduos joguetes inevitáveis do habitus, optam por actualizar o trabalho clássico de Weber, identificando uma ruptura substantiva no ”Espírito do Capitalismo”87,

coincidente com a transição, mormente a partir da década de 60 do século passado, do regime de produção fordista, baseado na produção industrial massificada, para o pós-fordista, baseado nas crescentes incorporação do conhecimento e da informação e na correspondente soltura e circunstancialidade da relação entre indivíduos e organizações, em que a “Ética Protestante” foi em conformidade substituída pelas noções de “flexibilidade”, pelas “redes” e pela “conectividade” como espécie de “novel religião” e bússola moral.

No “Novo Espírito do Capitalismo”, o locus da produção passa a depender da organização em

87 Não muito longe, veja-se a leitura do "marxismo autónomo" de Maurizio Lazzarato (Lazzarato &

Jordan, 2012, 2014; Lazzarato, 1996, 2009; Lazzarato, Blondeau, Whiteford, et al., 2004; Lazzarato & Negri, 2001), promovendo neste caso uma recuperação da sociologia de Gabriel Tarde e das teses da biopolítica de Foucault, de forma a descrever o estádio actual como um de massificação da intelectualidade e de "capitalismo cognitivo" em que se imputa ao neoliberalismo ter reconstituído o social com base nos valores do mercado, emergindo as TIC como expressão de uma mutação fundamental na produção da riqueza e de um novo modo de exploração do “trabalho imaterial”, definido tanto pelo conteúdo informacional como pelo não reconhecimento enquanto tal (como trabalho, isto é) na medida em que assume a forma de opção cultural e estética, integrando a subjectividade no próprio processo de criação de valor.

redes cujos nodos surgem funcionalmente indiferenciados, subsumindo, pelo menos discursivamente, a importância das instituições como garantia das condições de vida em prol de um regime ad hoc em que o trabalho contraditoriamente depende tanto da especialização como da capacidade de reconversão da mão-de-obra e em que a “liberdade” de cada um em constituir o seu projecto de vida surge como forma de obrigação, perfilando-se a necessidade de fazer escolhas como vantagem e a disponibilidade da comunicação e das plataformas digitais como polivalência e possibilidade de comunicação a observar escrupulosamente. “Este estado do mundo social que podia, num primeiro tempo, ser considerado de forma puramente negativa”, por exemplo mediante a tese da “comunidade perdida” (cf., acima, p. 85), “ou ainda ser feito equivaler, sob um modo de interpretação pós-modernista, a um caos incapaz de dar lugar a qualquer interpretação de conjunto, encontrou finalmente um instrumento de representação na linguagem das redes” (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 466).

No “modelo da cidade por projectos” (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 175 e seg.s) que anima o “mundo conexionista” (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 481 e seg.s; 2007, p. 355 e seg.s) o oportunismo converte-se em disposição universal, passando a ser visto como uma qualidade pessoal e a mobilidade, indistintamente física e virtual, geográfica e de ideias, surge como “dever” em que para a elite tecnocrática dos “salvos” e dos grandes (grands) desponta como obrigação e condição para manter e adquirir estatuto mover-se incessantemente de forma a criar novos “laços” e a gerir o seu “capital de relações”, instituindo, en passant, numa ressurgência de Veblen, o turismo e o luxo ostentatório como marcadores (Boltanski & Esquerre, 2016), enquanto, em contrapartida os pequenos (petits) – ou os “perdedores da reflexividade”, consoante designados por Lash (2001, p. 159 e seg.s) – encontram na imobilidade, conquanto condição da afluência alheia , “a fonte da sua pobreza”.

Expresso em termos culturais como “estrutura de sentimento” 88 do tempo, o “espírito do

capitalismo” de Weber, actualizado por Boltanski, correspondente na formulação de Bourdieu à problemática da legitimação pela naturalização das relações de domínios através do consenso, correspondente por seu turno ao que Gramsci formula como “hegemonia”, corresponde, enfim, ao conjunto de normas, ideias e padrões de comportamento que justificam o compromisso com o seu modo de operação (Couldry, 2010b, p. 29) como sistema auto-organizado e auto-perpetuado (Fuchs, 2008, p. 23 e seg.s).

A sua contestação assumiu historicamente duas formas típicas em função do tipo de actores que as protagonizaram: a crítica social e a crítica artística (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 84 e seg.s). A primeira, marcada pelas aquilatações socialista e marxista, mas também católica, em sede da doutrina social da Igreja, insistindo sobretudo no egoísmo dos interesses particulares, na crescente desigualdade da distribuição dos rendimentos e na imoralidade da amoralidade do mercado. A segunda marcada pela

88 Expressão adaptada ao universo das práticas espaciais por Thrift (1996), por empréstimo do teórico da

cultura gaulês Williams (1965, p. 64) que por seu turno a define por relação à teoria social da literatura e à produção ficcional escrita como possibilidade de identificação em dada altura – mormente da evolução da sociedade inglesa entre o século XVIII e meados do século XX (Williams, 1958) - de uma certa constância estilística nos temas e no seu tratamento, operada tacitamente como “modo de definir as formas e as convenções (…) como elementos inalienáveis de um processo sócio material (…) que pode ser visto como articulação de estruturas de sentimento que como processos vividos são muito mais amplamente experimentados“ (Eldridge & Eldridge, 1994, p. 112; Schiller, 1996, p. 118)

cultura boémia dos bouldevards, originalmente identificada com Baudelaire, é sobretudo veículo de expressão de desencanto perante a inautenticidade da cultura burguesa, pela perda do sentido do grande e do belo decorrentes da estandardização e mercantilização generalizadas, opondo à imobilidade e à estabilidade acomodatícias e possidentes (logo, fixas) do “burguês” o desprendimento ocioso e nómada do artista-dandy e a mobilidade inquieta do flâneur89.

Desta feita, pode hoje reconhecer-se, a “hegemonia” do informacionalismo impôs-se como “estrutura de sentimento” e forma de discurso90 sobre a tecnologia cuja promessa da “revolução digital”

(Andrejevic, 2004, p. 23 e seg.s) foi fortemente marcada pelo domínio cultural da crítica artística91 e é

esta que continua a impregnar os discursos do remix e do open source; estes constituem afinal a incorporação no capitalismo da crítica do capitalismo, de uma forma que Gramsci (1971, p. 254 e seg.s) poderia possivelmente identificar como “hipocrisia do auto-criticismo”, integrada no sistema parlamentar através da pluralidade de partidos a quem é conferida inteira liberdade de contestar o sistema conquanto dentro dos limites das suas regras e que na lógica das redes encontraria lugar através do paralogismo da liberdade de comunicar, se expressar e partilhar, conquanto dentro dos limites do respeito pelo direitos de propriedade, mormente intelectual.

A cultura digital dos “novos média” (Creeber & Martin, 2009) integra a “imaginação cibernética” (Robins & Webster, 1999, p. 109 e seg.s) do “novo espirito do capitalismo”. Ela constitui e é constituída pelo discurso do sublime tecnológico (Mosco, 2004; Nye, 1994), em que, acolhendo criticamente as teses pós-industriais, pós-modernas e pós-humanistas, mais do que uma discussão entre determinismo e construtivismo, é legitimo admitir que a tecnologia deve ser compreendida como discurso, não inócuo e mera forma de “interacção”, mas sim como elocução que adquire carácter comprometido e integrante da própria realidade que pretende descrever (Fisher, 2010, p. 29 e seg.s).

Nesta última medida, coincidindo com o nosso ponto de vista sobre o valor da importância de estabelecer ligações do individualismo em rede na versão de Rheingold como emulando algo das “leis do karma” (cf. acima, p.89), Boltanski e Chiapello (1999, p. 304 e seg.s) analisam ainda como a formulação do novo espirito de mercado incorpora sincreticamente muitos temas das rebeliões culturais e politicas das décadas de sessenta e setenta92.

89 Para duas excelentes apreciações do advento e desenvolvimento da figura do “flâneur” na literatura

vejam-se em particular os capítulos de Esther Leslie (Flâneurs in Paris and Berlin) no volume editado por Koshar (2002, pp. 61-77) e de Eeva Jokinen e Soile Veijola (The dissoriented tourist) no volume editado por Rojek e Urry (1997). Para uma actualização do tema no quadro do advento das tecnologias de comunicação móveis, enquadrado nas scapes de Arjun Appadurai, veja-se igualmente, sob supervisão deste, a tese de Arora (2014, p. 113 e seg.s)

90 Psicanaliticamente como “complexo discursivo” estruturado na ordem simbólica e estruturante da

subjectividade dos que o articulam (Malone & Friedlander, 2000, p. 339).

91 Analogamente, Fisher (2010) enumera o significado sociopolítico do “espírito das redes” como lógica

cultural, discurso legitimador e resposta à crítica humanista da sociedade fordista. Especificamente ela valoriza a possibilidade da autenticidade e da capacidade expressiva individuais, perdidas na organização da produção industrial massificada.

92 Talqualmente, Barbrook e Cameron (1995) interpretaram a então nascente “bolha da Internet” como

“ideologia californiana”, mistura entre a “ressaca” do espírito errante e experimentalista hippie e o empreendedorismo yuppie neoliberal. Entre radicalismo individual e comunidade digital, contra rebelião cultural e conformismo corporativo, numa espécie de ressurreição do individualismo romântico (cf. acima, p.93) sob inspiração mcluhanita. Veia interpretativa mais recentemente actualizada por Silverman (2015, p. 12 e seg.s).

Marcando a transformação de uma fase em que a crítica social da organização capitalista enfatizava a necessidade de promover a emancipação social (aliviando a exploração), para outra consonante com o “espirito das redes”, desindustrializada e baseada nos serviços, na qual o discurso legitimador surgiu enformado pela crítica artística dos think thanks quanto à sua capacidade em fomentar a emancipação individual mediante o acesso à informação, o “individualismo utilitário” da primeira foi se não suplantado ao menos acrescido pelo “individualismo expressivo” da segunda, o qual, segundo já estabelecido no pensamento moral e político do liberalismo consoante Tocqueville (Ossewaarde, 2004, p. 39), “reclama que a vida bem vivida não depende das preferências individuais”, vistas como sendo todas elas legítimas, “mas do desejo e liberdade de auto-expressão. O individualismo expressivo enaltece um ideal cultural. Ele procura criar uma sociedade que não está submissa a uma autoridade moral, mas uma que cede o lugar à renovação e reforma culturais – uma sociedade em que o indivíduo se sente à vontade com a sua identidade” (Ossewaarde, 2004, pp. 39-40), enfatizando a exploração desta última como exercido de auto-interpretação (Brinkmann, 2008) e de autodescoberta em que se coloca a busca da autenticidade acima de tudo. Em que, no acolhimento de Lifton (1993) quanto a um “Self Proteuco”93 o desenvolvimento de uma personalidade fluída e multifacetada é contemporaneamente

encarado como característica positiva, associando como requisito da própria de saúde mental o envolvimento na “exploração e experimentação pessoal contínuas”, condições de sobrevivência numa sociedade cultural e espacialmente relativística, disposta a abdicar os modelos e tradições do passado.

O capitalismo crítico do capitalismo gerou assim o “capitalismo reflexivo”, virtual e global (Thrift, 2005, p. 75 e seg.s) em que pela sua natureza os mercados criam inevitavelmente hierarquias de sucesso, dependentes da capacidade de cada um em retirar partido do “novo sistema operativo social” das redes (Rainie & Wellman, 2012), em que a ética hacker surge como permitindo conciliar a necessidade de racionalização da produção com as reivindicações emancipatórias dos trabalhadores ao mesmo tempo que o remix como convergência cultural, fruto da convergência técnica, constitui uma forma de indiferenciação e contraparte, operando no plano do consumo e da reapropriação.

Nos termos de Boltanski, a evolução da denúncia das consequências daninhas da plutocracia para o corpo social para um modo de crítica estética, preferencialmente focada na superação dos limites e no empoderamento do indivíduo, tem como efeito adverso o renegamento para segundo plano e o quase esquecimento da crítica social das primeiras94.

O individualismo expressivo, estético e reflexivo é ainda indissociável da cultura do consumismo que o integra como parte da nova lógica de produção de valor, acrescendo o preço dos objectos em função da sua carga simbólica (Boltanski & Esquerre, 2016). De facto, ao longo do século XX, a disponibilidade crescente dos bens conferiu às pessoas um sentido de liberdade e os meios através

93 Isto é, assumindo a qualidade do personagem mítico Proteus, Deus dos corpos de água. Portanto,

igualmente em consonância com os tipos de “vida em fragmentos”, de existência rizomática e identidade palimpséstica atribuídas por Bauman à “modernidade líquida” (Bauman, 1995, 2000; Blackshaw, 2005, p. 91 e seg.s). Aplicando-o aos Média Móveis, veja-se ainda Aguado e Martinez (2010).

94 Identicamente, Fisher (2010, p. 223) observa que a crítica social e a crítica humanista instituem dois

tipos de cultura política com espaços de acção e crítica tendencialmente contraditórios: a busca da igualdade e solidariedade sociais e a busca da individualidade, pronunciando-se em favor da primeira na medida da sua formulação sugerir transformações de impacto universal, enquanto a segunda tende a ser efectivamente apolítica.

dos quais estabelecerem as suas identidades, levando a que a liberdade de expressão tenha deixado de ser sinónimo de obrigação cívica e da possibilidade de participar na discussão na esfera pública. Hoje, ela equivale sobretudo à possibilidade de se comunicar e de se realizar através do prazer que a aquisição, posse, usufruto e exibição dos bens confere.

Consequentemente, “o consumismo não tem qualquer interesse em ligar o passado ao presente ou ao futuro (…) pelo menos além da nostalgia e da fantasia” (Cross, 2000, p. 3), dos remakes e das "reedições limitadas" das indústrias culturais ou quando é levado a formas compensatórias de coleccionismo (Boltanski & Esquerre, 2014) em que o passado é introduzido como forma de tornar seguro o investimento e o valor dos bens ou ainda quando conduz à edificação de parques temáticos como lugares-mitos para consumo turístico (Bryman, 2004a; Lash & Urry, 1994, p. 180). Tal é igualmente a linha interpretativa assumido por Jameson.

5.2.2 DO REMIX COMO INDIVIDUALISMO EXPRESSIVO E PASTICHE. UMA REAPRECIAÇÃO DA CULTURA DIGITAL NOS TERMOS DE JAMESON E LASH

Se, consoante se viu, na sugestão de Bourdieu, a vida social é caracterizada pela luta simbólica dentro e entre campos sociais, então a produção e o consumo culturais são as áreas através das quais o poder preferencialmente se exprime e exerce e o campo da comunicação e dos média aquele que no seio do mundo conexionista, do informacionalismo e das TIC, admitindo a sua personalização e formas de narrowcasting (Castells, 2009, p. 60), surge dotado de um meta-poder integrador (Couldry, 2000b), mediando entre estrutura e agência, entre cultura global e experiência local e entre a Política como politics e “dimensão de antagonismo constitutiva das sociedades humanas” (Thumim, 2012, p. 4) e a micropolítica como policies pessoais, mormente, nas contemporâneas redes sociais, mediante formas “tácticas” (Certeau, 1984) de associação e de auto-apresentação, que a ela se tentam ajustar. Para melhor o compreender, colmatando e estendendo os ângulos de Bourdieu e de Boltanski, dois autores parecem candidatos óbvios: Fredric Jameson (1984, 1988, 1990, 1991) e Scott Lash (1990, 2001, 2002, 2006). O primeiro, raciocinando sobretudo na óptica da produção e no quadro do debate da pós-modernidade como evolução histórica do capitalismo, correspondendo a primeira à fase “tardia” do segundo95, admite

que as formas culturais mudaram e se tornaram na actualidade no “modo dominante”, tendo-se, porém, mantido em regime de continuidade a lógica económica subjacente, colocando o ónus na estrutura e estabelecendo uma ponte para a bem estabelecida tradição da crítica cultural marxista. O segundo,

95 Especificamente Jameson (2002) recorre, como traço metodológico próprio (Irr & Buchanan, 2006, p.

27 e seg.s), à análise histórica e à própria etimologia da “modernidade” (op. cit., p. 17 e seg.s) como “momento presente” para sugerir que o “modernismo” constitui em si um conceito ideológico (idem, p.138 e seg.s), existente apenas como categoria narrativa reiterada relativamente à qual inventaria ao menos quatorze propostas e autores passíveis de instituição de um critério de definição e demarcação (idem, p.32), concluindo subsequentemente que a forma presente, etiquetada como “modernismo tardio”, remonta ao período pós-II Guerra Mundial e ao clima da Guerra Fria, constituindo uma “invenção norte-americana “(ibidem, p.165), sob determinantes geoestratégicos e geoeconómicos que deram azo a formas culturais marcadas pela imitação e pela auto referencialidade (ibidem, p.200). Neste último caso, o remix consoante praticado em massa poderia ainda ser interpretado menos como uma expressão estética per si do que como a expressão da possibilidade de reflectir sobre a estética de forma prática, “substituindo os absolutos do modernismo pelas de longe mais modestas e compreensíveis autonomias estéticas do modernismo tardio” (ibidem, p. 209, negrito nosso).

situando-se no plano do consumo e da acção agêntica (ou agentiva), estabelecendo uma ponte para a perspectiva anglo-saxónica da modernidade reflexiva,96 associa cultura e constituição individual

mediante reflexividade estética, sugerindo o advento de um modo mimético de individualismo e comunicação expressivos que teria entre outros como pressuposto o contrabalanço do retrocesso das estruturas tradicionais em formas informativas e comunicativas e como corolário a reversão do modelo cognitivo do conhecimento, passando a admitir-se a leitura do universal a partir do particular e a recorrência de formas comunitárias de neotribalismo que, nos capítulos finais, confluindo ainda com a interpretação de Maffesoli (1996), haveremos de ilustrar como razoavelmente correspondentes à forma de comunhão peripatética experimentada pelo geocaching.

Em Jameson, à semelhança de Adorno (2009, p. 5), para o qual “a cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança”, a possibilidade da produção cultural massificada e o prosumo surgem eminentemente como forma tendencialmente anódina de pastiche em que, tal como em Bourdieu, se admite que eles servem a reprodução das relações domínio mas em que, porém, contrariamente a este,