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Sugerimos anteriormente que uma metáfora do ambiente social engendrado pelas tecnologias da comunicação em rede como “sociedade dos espelhos” é particularmente persuasiva. Passámos igualmente em revista a forma pela qual Henri Lefebvre dá conta de como as representações do espaço são manipuláveis e abstractizáveis pelas elites tecnocráticas de acordo com o fito da manutenção das relações de poder que as sustentam e como Foucault adopta a metáfora do espelho para descrever a alteridade da heterotopia, à semelhança do ciberespaço, como um “outro espaço” (p. 27 e seg.s) intermédio. Um espaço entre espaços. Seguidamente vamos ver como ambas as perspectivas se conjugam e revelam úteis para a interpretação do particular fenómeno constituído pelos mapas enquanto mediadores por excelência de (e intermediários para) o mundo, como forma de contextualizar e enquadrar a nossa percepção da realidade. Sobre o que não por acaso Arthur Klinghoffer designa analogamente como o “espelho do cartógrafo”.

Trata-se de admitir que os sistemas de informação geográfica “reflectem percepções do espaço que são socialmente condicionadas e basicamente mentais. Eles constituem mediadores entre o mundo interno da pessoa e o mundo físico, construindo-o” (Klinghoffer, 2006, p. 7).

Ao desenhar um mapa o cartógrafo sobrepõe nele a sua própria visão do mundo, a projecção

cultura árabe conheceu igual fulgor, mesmo quando na Europa a Idade Média reverteu as suas preocupações para as da cosmologia e das representações mitificadas da ordem natural do mundo segundo a bíblia, da mesma forma que o sistema viário romano e os marcos miliários que dele ainda hoje nos restam como marca de água despareceram sobre uma acção feudal de horizonte eminentemente regional. Neste sentido veja-se por exemplo Wilford (2013).

(sistema de coordenadas) porque opta obedece a uma inscrição de categorias em função da projecção psicológica e das inclinações políticas e culturais de que está ele próprio inscrito. Na novela histórica sobre um dos mais célebres cartógrafos da renascença, Fra Mauro, o autor sintetiza-o colocando na sua boca a frase: “Contemplando o mapa, começo a ver uma imagem de mim próprio” (Cowan, 1996, pp. 144-145) – consulte-se a citação no contexto consoante reproduzida na abertura do capítulo.

Numa altura em que se sugere que a “cartografia morreu” (Wood, Fels, & Krygier, 2010, p. p.111 e seg.s) e em que, mediante a georreferenciação da informação nas plataformas sociais, subsequentemente aproveitada e convertida em mapas através do esforço proactivo nos sistemas de informação geográfica colaborativos, com o advento da webgeoespacial (Scharl & Tochtermann, 2007), potencialmente todos nos tornámos cartógrafos (Haklay, Singleton, & Parker, 2008), esta frase permanece mais actual do que nunca.

O trabalho dos mapas consiste em materializar as palavras e em ligar as coisas no espaço, convertendo as forças da energia social simultaneamente em espaço social, em ordem social e em conhecimento. Tal como nas representações por detrás dos sucessivos tratados entre Portugal e Espanha ao tempo do início da expansão ultramarina – por exemplo Tordesilhas – a função dos mapas não é necessariamente a representação fidedigna do mundo como existe, mas sim em apresentar uma proposição de como se deseja que o mundo seja - no caso de Tordesilhas a inexistência por aparente desconhecimento da porção norte do continente americano era indiferente à demarcação da respectiva esfera de influência

De facto, na sua acepção ancestral, como representação estática e bidimensional do mundo, os mapas desde há muito são reconhecidos pela geografia crítica como potencialmente “mentirosos” (Monmonier, 1991) e parte do afã do “capitalismo imprenso” (Anderson, 1991) que ajudou à produção dos modernos estados-nação, dentro da revolução industrial e da organização política demo-liberal, como “comunidades imaginadas” e efectivos regimes coloniais - colocando o engendramento de um espaço nacional poético (Smith, 1991, p. 14), “a terra ancestral porque lutaram os nossos antepassados”, entre outros, a par da unificação linguística e da emergência de uma forma burocrática de organização do estado e repartição da sua administração.

As características da informação geográfica disponibilizada pelas redes telemáticas exponenciaram o potencial dos mapas para servir de espelhos do mundo que mais do que o representar o reflectem e moldam (Turow & Tsui, 2008, p. 191 e seg.s). Estas características incluem:

• a crescente incorporação, dir-se-ia mesmo o primado, da informação geográfica, com a possibilidade de gerar mapas em função de interesses mais do que propriamente da topografia; • o carácter perpetuamente mutável e em tempo real desta informação – constantemente passível

de revisão e novas adições voluntariosamente levadas a cabo pelos utilizadores, ora comentando e modificando a informação já existente ora adicionando nova;

• finalmente, incluem também a possibilidade de hiperligar a informação, tornando-a mais densa com a possibilidade de remissão para desenvolvimentos quase infinitos.

Se os portulanos de outrora, sobretudo orientados para a navegação marítima, se caracterizavam pela inclusão avulsa de monstros míticos, como decoração que traduzia os receios e as vulgatas da superstição quanto a dadas zonas perigosas ou meramente mal conhecidas, os mapas digitais

actualmente gerados a pedido, muitas vezes a partir da informação introduzida pelos próprios utilizadores, estão eles próprios enxameados de motivos de evitação.

Plataformas como o TripAdvisor ou o FourSquare agregam sentimentos e opiniões dos indivíduos que normalmente os expressam em torno dos pólos extremos: “gostei muito, recomendo e vale a pena visitar” e “não gostei, não recomendo e não volto” (como se verá de uma forma geral sem efectivo conhecimento representativo, cf. abaixo, p.293).

Tipicamente os mapas mentem pelo critério do que neles se inclui e exclui atendendo a que por definição constituem uma simplificação gráfica da realidade. A escolha dos símbolos usados para representar dadas características, a forma como os limites – e quais se opta por incluir - são desenhados, o tipo de projecção usada42, a dimensão da escala e assim sucessivamente constituem opções

determinantes da “mentira” que o mapa conta, sendo necessário ter presente que “um único mapa não constitui mais do que um de um indefinidamente grande número de mapas que podem ser produzidos para a mesma situação que se pretende representar a partir dos mesmos dados” (Monmonier, 1991, p. 2)

Para cada plataforma que permite a adição de informação geográfica, para cada interface de introdução da mesma, a “mentira” é de antemão urdida na forma das opções de programação feitas, das categorias pré-determinadas em que cabe ao utilizador enquadrar o que introduz bem como no modo como essa informação é graficamente traduzida e pelos critérios porque é passível de ser pesquisada.

Os sistemas de informação geográfica (GIS) não são, portanto, neutros. Tal como a tecnologia em geral não o é (Postman, 1985). Eles imprimem direcção à forma como a produção e a reprodução do espaço se fazem.

Como mediadores e efectivos instrumentos de comunicação as tecnologias da georreferência incorporam forte capacidade de gerar novas realidades, descoladas meramente da geografia. Tornam possíveis mapas conceptuais onde o espaço físico é secundário, traduzindo crescente soltura dele.

Enquanto os mapas tradicionais se dedicavam a representar fronteiras e repartições administrativas, decalcando a lógica de um mundo burocratizado, a representação da realidade através dos sistemas de informação geográfica digitais dedica-se a unir os utilizadores em mundos de comunhão de interesses sobre e para além dos limites administrativos.

Mais, os mapas deixaram de pretender ser representações estáticas, raster, passando a ter preferencialmente forma vectorial e a permitir a composição em múltiplas camadas escolhidas a dedo pelo próprio utilizador que assim compõe os seus mapas pessoais.43

42 Atendendo à diversidade de projecções por onde se pode optar e ao facto de nenhuma delas na realidade

traduzir a 100% a tridimensionalidade do mundo. Em geopolítica, por exemplo, foi a dada altura notória a opção de Nicolas Spykman por uma mapa azimutal equidistante centrado nos pólos de forma a demonstrar, em plena guerra fria, a importância geoestratégica fundamental destes, salientando a proximidade dos potenciais alvos, dada a possibilidade seja de sobrevoar com aviões seja de passar sobre as calotes polares com submarinos, e de como as zonas boreais constituem atalhos historicamente negligenciados no posicionamento dos dispositivos armados e mesmo no transcurso dos misseis transcontinentais.

43 A informação apresentada no formato raster é basicamente bidimensional. Trata-se de um formato de

imagem em forma de mapa de pixéis, descrevendo as propriedades, mormente através da cor e da legendagem, de um dado espaço, mimetizando um mapa impresso. A informação vectorial, em contrapartida, descreve as formas geométricas – polígonos, curvas, texto etc… - em função de vectores matemáticos e informação descritiva que

Como instrumentos de descoberta e de consulta, muitas vezes in loco, eles propõem e tendencialmente “impõem” tão ou mais quanto apoiam a escolha de rumos e destinos.

Em entrevista, um dos responsáveis pelo Google Maps no Reino Unido reconhecida não há muito, candidamente, algo de semelhante: “a boa cartografia tem que ver com o que não se mostra, não com aquilo que se mostra” (Ousborne, 2014) para seguidamente admitir que a geografia está nos genes do Google na medida em que a localização se tornou fundamental para inúmeras funções, incluindo a pesquisa e as compras.

Como corporação rentável, o investimento anual de cerca de um milhar de milhões de dólares da Alphabet Inc. na melhoria dos seus mapas vem, no entanto com a natural expectativa do seu retorno através dos serviços prestados e estes incluem a deliberada monetarização da possibilidade de destacar dados produtos e serviços enfatizando os locais onde eles se vendem e prestam respectivamente através da publicidade.

O admirável mundo novo prometido pelos Google Maps vem pois com um catch: é um mundo orientado para o lucro e distorcido em função da necessidade de o gerar, priorizando a proposição da “descoberta” por critérios de puro investimento publicitário.

“O mercado para lhe dizer onde está e onde deve ir tornou-se feérico”, sintetizava Serge Wrocklawski numa entrada icónica do seu blogue que deu brado e foi inclusive subsequentemente escolhida para publicação no The Guardian (Wroclawski, 2014). O autoproclamado “hacker ético” escrevia no contexto da defesa da necessidade do OpenStreetMaps. No confronto com o Google Maps, a plataforma de informação geográfica criada sobre o mesmo tipo de governação da Wikipédia, exclusivamente pela edição directa dos seus utilizadores, parece-lhe fundamental justamente pelo regime de escolha que permite.

Ao contrário do Google Maps e similares, em que as escolhas escapam ao controlo do utilizador, o OpenStreetMaps não só é editável pelos utilizadores como “transparente” na medida em que lhe permite descarregar os dados na forma bruta e manipulá-los e à forma como são apresentados a seu bel- prazer segundo “estilos” personalizáveis.

Importante para contrariar a “verdade” imposta por uma solução monopolista cujo móbil não é a mera produção de informação, recolhendo igualmente dados sobre as deslocações dos utilizadores tendo em vista correlacionar estas com as pesquisas feitas de forma a presumivelmente fornecer anúncios mais adequados.

Tal não invalida que a generalidade dos utilizadores abdique de tal exercício de produção. De facto, no questionário por nós aplicados a uma amostra de utilizadores frequentes de tecnologias de

cumpre depois ao software interpretar e renderizar. A destrinça encontra eco nas especificações WMS e WFS, respectivamente, que sustentam a webgeoespacial em termos de partilha de informação. Uma camada WMS é uma imagem gerada a pedido enquanto no WFS a informação é fornecida de modo a ser renderizada pelo cliente de forma dinâmica, abrindo maior facilidade em particular no que diz respeito à aplicação de metatags (texto descritivo), filtragem de dados e composição da imagem em sua função. O potencial recombinatório do WFS é por conseguinte muito maior, como maior é a possibilidade de cópia. Talvez por isso no portal do governo

português consagrado ao acesso público à informação georreferenciada <

http://www.igeo.pt/DadosAbertos/Listagem.aspx>, as camadas WFS, conquanto anunciadas, de facto raramente se encontram funcionais.

localização apenas 10,2% declara alguma regularidade em “Reportar erros, efectuar correcções ou adicionar elementos novos a um mapa”, com 61,5% a admitir que nunca o faz (ver abaixo, Quadro G.8, p.LXXIX).

Atingindo a cifra icónica de um milhar de milhões de instalações44 (Toombs, 2014), o Google

Maps tornou-se assim em Junho de 2014, a par do Google Mail, que tinha atingido idêntico número um mês antes, num instrumento capaz de alimentar e disponibilizar uma gigantesca base de dados comercial sobre os hábitos dos utilizadores.

Trata-se de um crescimento exponencial desde o seu lançamento, em 2009. No final da primeira metade da sua vida, os três anos até 2011, a aplicação averbou 50 milhões de instalações. Nos três anos subsequentes, até 2014, o número multiplicou-se por 20. Em 2017, mantém-se a quinta aplicação mais utilizada em smartphones.

A escala de adopção não traduz, no entanto, que o mundo e os detentores de telefones móveis tenham subitamente desperto para a importância e utilidade da informação geográfica. As ferramentas destas foram-lhe em larga medida postas, para não dizer impostas, no bolso através da pré-instalação em todos os dispositivos Android. Da mesma maneira que o Microsoft a seu tempo impôs o navegador Internet Explorer através da disponibilização padrão no sistema operativo Windows.

Ao contrário do Internet Explorer, no entanto, os Google Maps não são um mero instrumento de acesso. Enquanto o navegador da Microsoft em si só adquiria sentido através da abertura de páginas e conteúdos disponibilizados por outrem, independentemente dele, os Google Maps, mesmo quando usados em dadas formas de mash-up, propõem sempre, na base, a sua representação do mundo sobre a qual o utilizador não tem mais controlo do que escolher entre algumas camadas (se quer um mapa com estradas ou com fotografia aérea…). Toda a demais personalizações surge imposta sobre este padrão.

A representação geoespacial, por conseguinte, é naturalmente um instrumento de poder face ao qual os sistemas participativos de produção geográfica, com o OpenStreetMaps (OSM), constituem contrapoderes ou se se quiser “contra-mapas”.

Wood, Fels & Krygier (2010, p. 156 e seg.s) manifesta-se não obstante céptico quanto aos sistemas de informação geográfica participativos, esgrimindo para tal dois argumentos principais: o primeiro deriva da sua condição de decano que assistiu a discussões semelhantes ao longo dos anos e em particular nas décadas de sessenta e setenta quanto à necessidade de soltar a produção geográfica da cartografia como instrumento do estado que acabaram por se revelar improfícuas; o segundo prende-se com o reconhecimento de que a maioria dos sistemas de GIS participativos na realidade parecem contentar-se em fornecer sítios onde as pessoas podem consultar a informação, o que em si é pequena coisa no conspecto global das tarefas a que os sistemas de GIS são chamados; notando ainda que no OpenStreetMaps como na Wikipédia boa parte da informação introduzida é na verdade informação reintroduzida a partir das fontes públicas que a produziram tendo em vista o controlo administrativo.

Se o argumento relativo à ideia de que os sistemas de GIS participativos “parecem contentes em

44 É importante notar que por “instalações” entende-se o número de contas na Google Play Store que

nalguma altura descarregaram a aplicação. Não se trata de um sinónimo de “número de utilizadores” porquanto alguns destes podem ter mais de uma conta enquanto outros podem na prática instalar sem chegar a usar.

fornecer sítios onde as pessoas podem fazer consultas” parece manifestamente desprovido de fundamento quando somos confrontados com iniciativas tais o OSGEO45 que de facto disponibilizam

em regime de open source uma ampla ecologia de ferramentas para produção e processamento de informação geográfica, o argumento quanto ao facto de a produção original ser limitada pode ter algum fundamento.

Basta que nos debrucemos sobre as estatísticas dos OSM46 para ver que o número de

intervenientes é limitado e basta que se consultem os dados publicamente disponibilizados para Portugal para reconhecer que abstraindo alguns troços e zonas fruto do esforço militante, o grosso da informação deriva de fontes públicas.

A verdade é que a produção da informação geográfica é onerosa e a sua recolha sistemática dificilmente compaginável com os regimes de voluntariado.