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“Porque (na lógica produtivista) o trabalho era encarado como necessidade humana fundamental e o centro da existência social, a comunicação, o jogo (play) e a socialidade foram marginalizados, assim exacerbando o sentido individual de desenraizamento. O lazer converteu-se num reino de liberdade artificial (…) crescentemente dominado pelo mundo de sonho da publicidade” Rojek (1995, p. 184)

A globalização trouxe mudanças aos ambientes sociais chamando entre outros a atenção para as imbricações entre trabalho, lazer, estrutura social e percepção da qualidade de vida (Haworth & Veal, 2004). O homem contemporâneo vive assim um paradoxo singular: a crescente inclusão da tecnologia e da automação tanto no local de trabalho como no seio do próprio lar geraram, mais do que em qualquer outra altura da história, no regime “pós-fordista” (Jessop, 2002, p. 96 e seg.s; Jessop & Sum, 2006, p. 58 e seg.s; Webster, 2002, p. 75 e seg.s), ganhos de produtividade e eficiência, devendo em tese libertar tempo e permitir deslocar o foco da existência da produção e do trabalho para o lazer e o consumo. Não obstante, o que uma mão deu a outra tirou. A aceleração tecnológica fez-se acompanhar da aceleração do ritmo de vida (Wajcman, 2008) e da própria mudança social, impondo a necessidade de produção activa e reflexiva do sentido do lugar e a defesa do posto laboral (Edwards & Wajcman, 2005, pp. 19- 41). Consequentemente, ainda que a evolução, seja do transporte, seja da comunicação, tenham permitido aumentar velocidades e encurtar distâncias relativas o resultado foi o sequestro mais do que proporcional do tempo liberto, consumido no multitasking da comunicação ubíqua e na concentricidade de papéis por ela imposta ao mesmo tempo que nas plataformas sociais, sob o pretexto da agremiação da inteligência colectiva (Romaní & Kuklinski, 2007), emergiram formas inauditas de capitalização do trabalho-lazer (Miah, 2011) em que o limite entre ambos se tornou difuso. Acossado por um regime de conectividade permanente, num tempo sem tempo, simultâneo e atemporal, comprimido e negado (Castells, 2010, p. 460 e seg.s), o indivíduo tenta ainda assim recuperá-lo e ao seu equilíbrio, fá-lo de forma criativa, reclamando, entre outros, através da prática lúdica que os jogos locativos particularmente admitem, formas de socialidade e sociabilidade em que o lazer surge intercalado com o trabalho e o espaço se procura na sua forma natural, se estica e desmultiplica, edificando múltiplas camadas interpretativas de que o geocaching constitui exemplo eloquente de prática lúdica “em busca” (Proust, 1992) e de “emboscada” - seja “em movimento” e na procura ela própria dissimulada do “escondido” - do espaço-tempo perdidos.

Correndo paralela às análises de tempo e espaço empreendidas pelos estudos da comunicação e da tecnologia, a Sociologia do Lazer (Critcher, Bramham, & Tomlinson, 1995) e da Recreação,

consoante sufixada na margem oeste do Atlântico Norte, comunga a marca de água da oposição entre por um lado a perspectiva inspirada no materialismo histórico que tende a ver neles um escape, uma “libertação” e a busca de um “estado natural que é negado” por imposição do “roubo” da jornada de trabalho e por outro da ética de trabalho do calvinismo que de acordo com Weber via no ócio a renúncia à salvação, ao mesmo tempo que na economia política clássica David Ricardo, Jeremy Bentham e Stuart Mill apresentavam o trabalho pago como o principal instrumento através do qual os indivíduos se podiam desenvolver como pessoas morais e agentes económicos através do contributo para a riqueza e bem estar-comuns (Rojek, 2005, 2010).

Com base em pressupostos diferentes ambas as ópticas convergem numa ideia que se tornou comum106: a de que os instantes de “lazer” são instantes de “excepção” numa rotina marcada pelo

trabalho (Scranton, 2007) e pelo tédio, mesmo quando a veia protestante se refina e, na tradição do pensamento social norte-americano a conquista do tempo livre é encarado como sinal de progresso e civilização e uma aquisição positiva da evolução tecnológica que progressivamente permeou tanto as vias e meios de comunicação (pense-se por ex. no significado que o Ford modelo T teve na vida das famílias) como a própria gestão dos lares, com muitas tarefas rotineiras a serem mecanizadas (Nye, 1994; Pronovost, 2000, p. 356 e seg.s).

Enquanto o trabalho é uma necessidade, o lazer é visto como domínio de liberdade, de acção voluntária e da busca do prazer tidos por indispensáveis à constituição de um modus vivendi satisfatório e à possibilidade do indivíduo realizar o seu pleno potencial criativo.

O “lazer” reporta-se assim às actividades “licitas”, não coagidas, livremente-escolhidas, levadas a cabo durante o tempo dito “livre”, remanescente ao de labuta e às obrigações profissionais e domésticas; ao domínio de acção em que os indivíduos crêem que estão a agir no exercício do seu livre- arbítrio, fazendo algo por cuja escolha acreditam ser os únicos responsáveis. A “recreação”, por seu turno, conota a porção explícita desse lazer que serve para “reparar” a fadiga induzida pelo trabalho, algo que o senso comum captura na expressão “recarregar baterias”. Paralelamente, a “brincadeira” ou “jogo” (play) constitui uma versão ainda mais circunscrita, no domínio daquilo que se faz por lazer ou recreação e sem qualquer tipo de utilidade prática - por exemplo, jogar petanca por oposição a ocupar- se como hobby com a carpintaria ou o tricot (Bryant & Peck, 2007, pp. 197-204, Vol. II).

As actividades de trabalho e lazer são correlacionáveis ora enquanto extensão residual uma da outra (esferas não inteiramente autónomas, em que tendencialmente o regime de escolha do lúdico é tributário do laboral, constituindo sua variável dependente), ora como estando em oposição (domínios contraditórios, em que o lúdico se constitui como fuga deliberadamente distinta do laboral, enfatizando a liberdade de escolha dos actores), ora como tendo uma relação de neutralidade (dimensões sem qualquer correlação, nem de extensão nem de negação).

106 Ainda que não necessariamente verdadeira. Consoante demonstrado por Haworth e Veal (2004, p. 15

e seg.s) uma negligência da história e de trabalhos pioneiros como o de Huizinga (cf. adiante, p. 131 e seg.s) levaram a que a tradição nos estudos do lazer, em particular britânica, a partir da década de 70, tenda a perspectivá- lo como produto da industrialização quando a existência de actividades de lazer é tão antiga quanto a humanidade (discussão de resto análoga à artificialidade da clivagem produção–consumo que subsequentemente postula a conflação de ambos e o “prosumo” em rede como “novidade”, cf. nota 254, p. XLIV).

A sociologia do lazer é indissociável da sociologia do consumo, seja porque o segundo constitui actualmente o mais poderoso elo entre os reinos económico e sociocultural, seja porque ele pode constituir uma forma do primeiro seja, enfim, porque ambas as práticas vieram a ser percebidas como estratégias de aparente emancipação e realização da condição individual.

Neste quadro, a introdução na vida contemporânea das tecnologias, mormente de produção, de transporte e finalmente de comunicação ubíqua, é relevante na medida em que estas permitiram paliar a tensão entre o instinto e a escassez, a busca da satisfação e a limitação dos meios para o obter (Cross & Proctor, 2014). Paliam-no na medida em que respectivamente libertam tempo e permitem a acumulação doméstica de excedentes107; porque facilitam a mobilidade e a fruição de espaços distintos aos da rotina

através do turismo massificado (Urry, 2003b) e finalmente porque acrescem as necessidades de uma aura conceptual infinitamente desmultiplicável no espaço virtual, convertendo este no locus onde por excelência “o consumo liga o valor de troca e a satisfação do desejo e da necessidade material à produção de significado, à identidade e a um sentido de lugar e pertença social” (Dunn, 2008, p. 3).

Consumo e lazer arvoram uma cultura que tem por meta o gozo (Bramham & Wagg, 2011; Cross, 1993, 2008; Cross & Walton, 2005). “O consumismo sucedeu onde outras ideologias falharam porque ele incorporou em termos concretos os pontos cardeais das ideias políticas do século (XX) – liberdade e democracia” e como tal “os bens de consumo permitiram (…) a libertação das antigas e relativamente seguras comunidades e a entrada no individualismo expressivo de uma sociedade de massas dinâmica” (Cross, 2000, p. 2).

Eles constituem, por conseguinte, o operador entre as concepções clássicas de comunidade e o individualismo em rede (sobre estes veja-se a discussão acima, p.84 e seg.s) em cujo contexto mais do que a liberdade abstracta de participar num espaço cívico e comum de discussão livre (a esfera pública) vingou o acento tónico na possibilidade da expressão individual e mais importante na realização pessoal através da afiliação simbólicas aos bens e ao lazer como instrumentos de prazer e alvos de exercício de escolha.

6.1.1 LAZER, CONSUMO, CONTEXTO E POSICIONAMENTO

Consistentemente com as linhas mestras com que este trabalho se cose, a conceptualização dos sentidos de distinção e de gosto que encontramos em Bourdieu como norteando as práticas (cf. acima, p. 98 e seg.s), mormente de consumo cultural, através da oposição entre o que é apercebido como “raro” e aquilo que é tido por “vulgar” encontra mais recentemente eco e reformulação na proposta de Chris

107 Beck (2000) apresenta neste particular como contraponto uma visão crítica e provocatória, tornada

particularmente aguda de 2008 a esta parte, mediante a consciência premente da insustentabilidade do modelo económico do consumo assente no crédito, em que pretende ver no exemplo do Brasil o futuro da Europa. Especificamente, aduz que o modelo que levou ao advento das sociedades do lazer e ao estado-social no velho continente está em risco de desaparecimento mediante a crescente precarização e insegurança no trabalho. Entre outros, o aumento do desemprego e a redução dos mecanismos de redistribuição da riqueza, mormente com a diminuição dos tempos (protelando a aposentação para mais tarde) e dos valores das subvenções atribuídas na reforma, por excelência “o tempo de lazer”, fazem com que o número daqueles com emprego garantido para a vida – e efectivas condições de “acumulação” de meios para experimentar o “lazer” – diminua e em alternativa surja uma sociedade flutuante maioritariamente marcada por ocupações ad hoc, tal como na tipologia da economia sul-americana semidesenvolvida e plena de contrastes.

Rojek quanto às preocupações que devem nortear uma sociologia do lazer em termos da sociedade do consumo, como oposição entre o que é “perene” e o que é “escasso”, ligando-se o campo do lúdico, à semelhança de Adorno108 às condições de desregulação do mercado neoliberal em relação com a função

dos bens, como parte de uma “dialéctica do posicionamento”, de tal modo que, tal Veblen (2007) e Fred Hirsch (1977, p. 27 e seg.s), se aduz que “não importa que sistema de gestão da escassez é adoptado os indivíduos e os grupos procurarão a distinção e usarão as suas escolhas de lazer para significar honra, privilégio e patente” (Rojek, 2010, p. 16), existido um mercado perpétuo para os bens posicionais.

Consistentemente, também, com a discussão dos campos sociais como palco de violência simbólica em Bourdieu, Rojek (2005, p. 24 e seg.s), numa colação explicita ao realismo político que nos não é estranha, invoca a filosofia política e o pessimismo antropológico de Thomas Hobbes (1996)109,

para estabelecer como ponto de partida dos estudos de lazer a condição individual como fruto de duas tendências opostas: uma centrada no voluntarismo e na agência dos actores, outra no determinismo das estruturas e no comportamento por compulsão. Assim, na sua sugestão, as actividades de lazer devem ser examinadas, como as demais, enquanto “relações de poder em termos da motivação dos actores, a localização das estratégias de comportamento e o contexto de acção.”

Para o que nos interessa, em particular, entrecruzando tecnologias de comunicação e localização e espaço, Rojek (2005, p. 27) sugere a introdução de uma distinção metodológica entre “localização” e “contexto” no estudo das práticas de lazer, em termos tais que a primeira se refere “às circunstâncias imediatas de causalidade que resulta da opção por uma acção de lazer” e o segundo ao enquadramento no qual a primeira está situada. A utilidade reside na heurística resultante, chamando a atenção para a necessidade de balancear e reconhecer a interdependência entre ambos e o risco seja de exagerar a importância dos mecanismos de diferenciação (seja, de não conceber que a prossecução das actividades de lazer possa ser extirpável da preocupação com o estatuto) seja consequentemente negligenciando que as questões de interesse também possam ser equacionadas em termos da prossecução do que os actores possam ter em comum (seja, a possibilidade da cooperação). Um terceiro risco seria o de privilegiar excessivamente as questões de localização em relação às do contexto. Este, porém, revela-se mais diagnóstico do que prognóstico, atendendo a que uma das características dos novos ambientes da

108 Para o qual (Adorno, 2009, p. 62 e seg.s) a moderna cultura do “tempo livre” desvirtuaria a função

do ócio e tenderia – por exemplo através da promoção do do it yourself , de que cadeias como a popular loja de móveis IKEA são expoentes - a emular a ética do trabalho, assumindo formas que têm como função estruturar as práticas de consumo; em que ter hobbies passou a ser uma expectativa social e mediante tal associação uma não- liberdade; e em que o carácter fetichista da mercadoria tende a ser incorporado no próprio corpo, consoante por exemplo a forma lapidar “trabalhar para o bronzeado” mas também em certas formas de fitness. Nesta visão, “o tédio existe em função da vida sob coacção do trabalho e sob rigorosa divisão do trabalho”, sendo, por conseguinte, o “tempo-livre” o seu reverso/corolário concomitante e necessário, remetendo-se, como motivo a necessitar de investigação, para o que sucede com este último em condições de aumento da mecanização da produtividade, porém sob relações produção em que as pessoas nascem inseridas e lhes prescrevem as regras de existência.

109 Para quem, escrevendo originalmente em 1660, a condição humana está marcada pela luta tácita dos

indivíduos entre si por uma posição vantajosa – segundo a fórmula homo homini lupus (o homem é o lobo do homem) -, pela competitividade, pela penúria e pela desigualdade em que consequentemente a solidariedade emerge não como estado natural – consoante Aristóteles ou Rousseau, com o seu mito do bom selvagem – mas como confeito e produto de regras cuja função é assegurar o mal menor e a possibilidade do convívio sem violência.

computação em rede ser precisamente a passibilidade de diversificação dos contextos virtualizados, alterando e porventura condicionando a causalidade da experiência das localizações.

Finalmente, outro factor crítico para que nos é chamada a atenção reporta-se à importância dos “grupos de pares” (Rojek, 2005, p. 31), como grupos de formação de opinião tendencialmente heteronómicos, passíveis de induzir um condicionamento inconsciente da liberdade de escolha (análogo ao efeito do habitus de classe em Bourdieu), determinando-a e fazendo que as preferências relativamente à ocupação do tempo-livre sejam menos “livres” do que realmente parecem, conformadas com os valores e crenças dos grupos de pertença, notavelmente, no que concerne aquilo de que nos ocupamos, através da sua constituição no contexto das plataformas sociais móveis e locativas.