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Encruzilhada: consciência histórica e lugares de me mórias

No documento Centro Universitário UniProjeção (páginas 74-80)

ENCRUZILHADA: CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E LUGARES DE MEMÓRIAS

4. A Encruzilhada: história, memória e lugares de memó rias

4.3 Encruzilhada: consciência histórica e lugares de me mórias

Retomando nosso diálogo com orixá Exu, no início deste artigo apresentamos o mito que revela sua importância para os cultos afro- -brasileiros, onde sua interpretação remete ao “aprendizado iniciático nos cultos aos orixás deve ser lento e baseado na observação” (PRAN- DI, 2001, p. 529). Agora, encaminhando-nos para o desfecho de nossas reflexões, cabe ressaltar outro breve mito de Exu que dialoga bem com a nossa metáfora da encruzilhada.

Dois camponeses amigos puseram-se bem cedo a trabalhar em suas roças,/mas ambos esqueceram de louvar Exu./Exu, que sempre lhes havia proporcionado chuva e boas colheitas!/Exu ficou furioso./Usan- do um gorro (boné) pontudo, de um lado branco e de outro vermelho,/ Exu caminhou na divisa das roças./Tendo um à sua direita e outro à sua esquerda, passou entre os dois amigos e os cumprimentou enfatica- mente./Os amigos entreolharam-se desconfiados./Quem é o estrangei- ro de barrete branco, perguntou um./Quem é o estrangeiro de barrete vermelho, questionou o outro./A partir daí, ambos começaram uma discussão acerca da cor do gorro de Exu./Discutiram e terminaram brigando a golpes de enxada./Mataram-se mutuamente!/Exu estava vingado. (PRANDI, 2001, p. 49).

Este mito, muito recorrente nos terreiros e na bibliografia dos can- domblés no Brasil, além de apresentar o caráter vingativo e possessivo de Exu, mostra também que esta divindade utiliza de outra lógica para mostrar as limitações humanas. Nos terreiros costuma-se dizer que Exu

provoca o caos porque é nele que o ser humano se revela por inteiro. Ou seja, seguindo esta sabedoria de terreiro, e buscando compreender Exu com olhos despidos de preconceitos, o mito está falando da bana- lização da vida, ao qual os personagens envolvidos defendiam, à sua maneira, a sua interpretação sobre o episódio, mas a morte foi conse- quência do caráter dos envolvidos que, armados com suas ferramentas de trabalho, acabaram com as próprias vidas. Em última análise, po- demos dizer que o mito também está falando de subjetividade, ao qual cada um defende à sua verdade sobre o fato. E a encruzilhada também apresenta diversas possibilidades de interpretação, pois ela é encontro, ponto-de-vista, aproximações e distanciamentos. Nesta perspectiva, a encruzilhada que nos encontramos é o encontro entre memória, lugar de memória e consciência histórica.

Partindo de nosso referencial teórico e metodológico da pesquisa, compreendemos os terreiros de matriz africanas como “lugares de me- mória” e de preservação da cultura africana na diáspora. Sendo assim, entendemos que as formas como estes cultos se organizaram no Brasil no contexto da escravidão transatlântica, bem como a formação dos primeiros terreiros de candomblé que, como vimos, buscaram reatar laços nostálgicos com o continente de origem, reunindo diversos cultos individuais em um único espaço físico, são formas de resistência negra diante a tentativa do sistema escravocrata de apagar suas memórias. Nesta direção, os vestígios, rastros da experiência de africanos e afro- descendentes estão presentes em toda estrutura das religiões afro-bra- sileiras, que se materializam nos terreiros que, por sua vez, são lugares de memórias porque permitem operações mnemônicas. Tais operações – ou “vontade de memória” – ocorrem por meio da oralidade e do com- plexo sistema de códigos da cosmovisão afro-brasileira. Os terreiros são lugares de memórias porque congregam, em seu espaço físico ou ideológico (Raul Lody), reminiscências do passado africano e afro-bra- sileiro em seus três níveis, como sugeriu Pierre Nora (1992): material, simbólico e funcional.

Sendo o terreiro uma associação litúrgica organizada, que preser- va a história e a memória da cultura africana e afro-brasileira (Egbé), que pressupõe que os praticantes desses cultos apreendem a percepção

e a significação do tempo a partir da perspectiva dessas culturas. Pois, como vimos com Juana Elbein dos Santos (1986, p. 32-33), os terrei- ros assumem o caráter de comunidade (Egbé), quando ultrapassam os limites materiais (espaço físico) e se projetam na sociedade civil, quan- do os pressupostos civilizatórios africanos e afro-brasileiros circulam entre a Egbé e a sociedade global, em um movimento dialético de ser e se compreender no tempo e no espaço. Essa compreensão é aquilo que liga os praticantes desses cultos e que lhes dão identidade.

Nesta direção, sendo a consciência histórica algo intrinsicamente huma- no, como propõe Jörn Rüsen (2001), podemos considerar que os e as prati- cantes dos cultos afro-brasileiros, possuem formas específicas de ser, pensar e agir no mundo, conforme sua cosmovisão, que lhes permitem compreender-se e orientar-se no tempo. Assim, vivendo em grupo, essa historicidade (cons- ciência histórica), torna-se a própria condição da existência desse grupo, uma identidade coletiva pensada (ou melhor, norteada) por uma consciência histó- rica específica para garantir a continuidade do próprio grupo (CERRI, 2001, p. 102). Essa consciência é formada dentro do lugar de memória – o terreiro – que se estende para o cotidiano dos adeptos dessas religiões.

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PARTE 2 - ENSINO DE HISTÓRIA: PROPOSTAS E ALTER-

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