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PARTE I – Enquadramento teórico

Capítulo 3 – Acolhimento familiar: fundamentos, pressupostos e práticas

3.1. Enquadramento sociopolítico e legal

A história do acolhimento em familiar em Portugal evoluiu ao longo de quatro fases. A primeira, denominada de Origens, ocorre desde sempre até à década de 70 do séc. XX e pode dizer-se que era baseada em acordos entre famílias (Delgado, 2013). Na lei de proteção à infância de 1911 já se considerava que as crianças que se encontrassem em perigo deveriam ser colocadas naquilo a que a lei designava por “família adotiva” e que, na época, significava “família de acolhimento”, uma vez que a adoção não estava prevista no Código Civil então vigente. A medida com esta designação continuou a existir até 1967, altura em que se passou a designar por colocação em “família idónea”, como forma de a distinguir da adoção que entrara no nosso Código Civil nesse ano (Gersão, 2015).

Apesar de constar na Lei de Proteção à Infância desde a sua origem, a sua aplicação foi bastante reduzida e a medida foi encarada com algum ceticismo. Em contrapartida, podemos afirmar que a medida sempre existiu numa espécie de sistema paralelo, pois foram várias as situações no nosso país em que crianças foram colocadas à responsabilidade de terceiros sem laços biológicos, seja por questões de pobreza ou emigração, tal como foram muitas as famílias portuguesas que acolheram crianças estrangeiras em tempos de guerra. Todavia, todas estas situações aconteciam de um modo informal, sem a intervenção dos tribunais, sendo que esta “colocação familiar” era tida como um acordo entre famílias, enredada no espírito de solidariedade social (Gersão, 2015). É, por isso, necessário distinguir o acolhimento familiar privado – que resulta destes acordos entre famílias – do acolhimento familiar como medida de proteção de crianças em perigo, decretada no âmbito de um processo administrativo ou judicial (Delgado, 2010).

A segunda fase – Institucionalização – surge com o DL nº 288/79 de 13 de agosto, que considerava o acolhimento como uma medida decretada no âmbito de um processo administrativo ou judicial por iniciativa dos serviços de ação social do Estado ou por Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) (Delgado, 2013). O seu objetivo era a colocação temporária de crianças em famílias idóneas, quando a família natural não estava em condições de desempenhar o seu papel. Porém, esta colocação estava dependente do consentimento dos pais e não limitava, nem

impedia, o exercício das responsabilidades parentais. A medida estava, no entanto, circunscrita a crianças com menos de seis anos, salvo algumas situações excecionais que permitiam o acolhimento acima dessa idade. Este poderia ser um serviço remunerado ou gratuito e pretendia- se que a estadia fosse transitória, porque o objetivo era o regresso à família de origem (Gersão, 2015; Delgado, 2010).

Segue-se a fase da expansão, de 1992 até 2008, período em que a medida se consolida como opção. É com a entrada em vigor do DL nº 190/92 de 3 de setembro, que se estende o acolhimento familiar a crianças com menos de dezoito anos, passando então a olhar-se para a medida com um cariz mais profissional e, à partida, remunerado (Delgado, 2013). Como tal, o carácter informal que lhe estava associado perde-se e o enquadramento da medida passa a ser da responsabilidade das instituições de enquadramento, como os Centros distritais da Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia e, porventura, algumas IPSS, como vem a ser o caso da Mundos de Vida. Este decreto-lei estabelece, assim, o estatuto das famílias de acolhimento e revela a necessidade de existir uma equipa técnica que avalie quer as condições das famílias quer as situações que devem levar uma criança à situação de acolhimento familiar (Gersão, 2015). No período de vigência deste decreto-lei entra em vigor a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei nº 147/99, de 1 de setembro) que define no art.º46 o acolhimento familiar como:

a atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, visando a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral.

Perante esta definição, o objetivo do acolhimento familiar é o de proporcionar às crianças e jovens acolhidos um contexto familiar alternativo, no qual irá conviver com outos adultos e, possivelmente, com outras crianças que partilham modos de ser e de estar diferentes dos que até então tinha experimentado, o que representa um enorme desafio para todos os envolvidos. Inscrevem-se aqui outros objetivos, como afastá-las do perigo, proporcionar-lhes as condições de segurança, saúde, formação e educação necessárias ao seu desenvolvimento integral e a partilha de laços de afetividade, privacidade e intimidade. A nova família deve permitir, facilitar e incentivar ao desenvolvimento de novos vínculos, mas também a manutenção e o respeito por todo o património que a criança acolhida acarreta e pela sua identidade (Delgado 2010a). Garcia e Baena (2011, p.125) acrescentam outros contributos importantes, dizendo que é objetivo do acolhimento e destas famílias, responder “às necessidades vitais dos menores, facilitar-lhes a construção da

sua identidade pessoal, iniciá-los no exercício dos papéis sociais, na aceitação das normas e na assunção das responsabilidades pessoais e sociais”.

A fase em que nos encontramos diz respeito ao Retrocesso e instaura-se com o DL nº 11/2008 de 17 de janeiro que estabelece o novo regime de execução do acolhimento familiar, com regras próprias para a seleção, formação e acompanhamento das famílias de acolhimento (Delgado, 2013). Um dos seus critérios orientadores é o fortalecimento das relações da criança e do jovem com a família de origem, muito embora se venha a verificar que, frequentemente, a criança permanece na família de acolhimento sem possibilidade de regressar à sua família, contrariando o texto e a intenção do legislador. Se a medida é aplicada tendo por base a previsibilidade do regresso à família de origem, implica que se desenvolvam esforços no sentido de capacitar as famílias de origem para as suas funções. Quando isto não é possível, de acordo com o art.º3, prepara-se a criança ou o jovem para a autonomia de vida. Neste novo regime, o acolhimento passa a ser permitido, apenas, a famílias sem laços de parentesco, o que fez diminuir a expressão da medida no âmbito das medidas de colocação. O atual quadro normativo distingue acolhimento em lar familiar ou profissional, este último destinado a crianças e jovens com problemáticas e necessidades especiais (Gersão, 2015). No que se refere à duração do acolhimento não há qualquer referência. Como tal, se compararmos esta medida com a adoção, percebemos que o acolhimento familiar não oferece o mesmo grau de estabilidade para todos os envolvidos. Tal como daremos a conhecer em seguida, muitos dos acolhimentos têm um carácter prolongado e estendem-se até à independência dos jovens, pelo que a relação que se estabelece entre acolhedores e acolhidos se torna muito similar à de pais e filhos, embora não o sejam legalmente (Delgado, 2010b). Do presente diploma consta, ainda, que deverá existir uma retribuição uniforme pelo serviço de acolhimento, exceto nos casos de crianças com problemáticas e necessidades especiais (Gersão, 2015).

De tudo isto decorre que o limite entre o domínio privado e o domínio público no acolhimento familiar é ténue, porque a família é um espaço de intimidade, privacidade, no qual coexistem sentimentos antagónicos que passam pelo amor, a confiança, a cumplicidade, o ciúme, a posse, a intriga, ente outros. Apesar de se pretender que este seja um espaço de vida familiar “normalizado”, o mesmo está sujeito ao escrutínio público de uma forma mais intensa do que qualquer outra família, porque necessita de um acompanhamento e avaliação contínuos, de suporte financeiro, de técnicos especializados e depende da celebração de contratos

administrativos e judiciais que pretendem evitar os perigos que o próprio acolhimento pode conter (Delgado, 2010a).

3.2. Acolhimento Familiar – uma medida esquecida? Contornos desta realidade em