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PARTE III – Análise e discussão dos dados do estudo empírico

Capítulo 2 – Interpretação e discussão dos dados

2.1. Transição para o acolhimento familiar

2.1.7. Impacto da transição

Na subcategoria que aqui discutimos, procurámos compreender de que modo o acolhimento familiar influenciou algumas dimensões importantes da vida da criança ou jovem, como a escola, a saúde e as relações sociais.

No que respeita à dimensão escolar, quisemos perceber se o acolhimento familiar implicou mudanças de escola e na condição de aluno dos participantes, ou seja, debruçou-se sobre os relatos dos sujeitos acerca do seu desempenho, rendimento e comportamento no decorrer desta transição.

De um modo geral, o acolhimento familiar não implicou uma mudança de escola, contrariamente ao que aconteceu em Timóteo e Alheiro (2013). Alguns dos excertos apresentados demonstram esta situação:

Anna (6, (24)): eu estava a fazer a pré-escola e depois a pré-escola também acabava, entretanto, e eu comecei logo a escola...

Beta (16, (19)): não, não tive de mudar de escola porque, lá está, eu já tinha alguma independência em termos de movimentação...foi do 10º para o 11º ano, portanto já havia alguma independência para além de que...a minha atual irmã (risos), a filha mais nova da família, estuda na mesma escola onde eu estudava, estudávamos as duas na mesma escola já...nós já éramos colegas de escola antes de tudo acontecer.

Contrastando com os relatos anteriores, em duas situações foi necessário mudar de escola as crianças acolhidas, porque “nós morávamos aqui no Porto, nas Fontainhas e fomos acolhidos em Melres. Portanto era impossível eu manter a mesma escola e penso até que por questões de segurança eles não o fariam, não é?” (Emma (8, (26)). A questão da permanência na mesma escola é extremamente importante, pois está relacionada com o sucesso da reintegração no seio familiar de origem e contraria a tendência de insucesso escolar. Do mesmo modo, os autores defendem que a mudança de escola implicaria uma nova quebra nas relações significativas para a criança num período em que a própria também tem de se ambientar a um novo contexto familiar e, portanto, seriam duas transições muito difíceis (Delgado, s/d).

No que diz respeito à sua condição de aluno ao longo do percurso escolar, alguns sujeitos afirmaram que se consideravam bons alunos, referindo terem boas notas, como é o caso de Emma (8, (26)) que recorda que “eu sei que nunca fui, a nível de notas, nunca fui má aluna”. Beta (16, (19)), no mesmo sentido, destaca a sua motivação “na escola eu sempre me senti muito motivada”, o que poderá significar uma influência positiva do acolhimento neste sentido.

Neste contexto, as dificuldades mais frequentemente mencionadas dizem respeito ao comportamento, vejamos:

Emma (8, (26)): era má aluna sim, no comportamento...(risos). O comportamento não era... Mike (10, (27)): bem...o comportamento é um comportamento de revolução não é, tu estás revoltado porque toda a gente tem algo que tu não tens, portanto tu és uma pessoa revoltada...ah...e tudo aquilo que te seja dito ou feito em direção à família tu tens tendência a.…a tendência é sempre a responder de uma forma agressiva e revoltada...

Esta dificuldade relacionada com o comportamento escolar das crianças acolhidas foi verificada noutros estudos, particularmente no estudo realizado por Connelly, Mckay e O’Hagan (2003, p.23, citado por Delgado, s/d, p.2651), no qual se contatou que as crianças acolhidas tinham 13 vezes mais probabilidades de serem excluídas que os outros alunos, sendo uma das razões apresentadas “a tendência crescente para a prática de comportamentos inaceitáveis para os padrões escolares.

No mesmo sentido, o relato de Anna (6, (24)) que, a seguir apresentamos, evidencia algumas dificuldades em adaptar-se ao contexto de sala de aulas e às regras definidas pela professora, mas mostrou como a ida para a escola foi positiva para si, porque constituiu uma oportunidade de construir novas relações, das quais tanto precisava, por estar habituada a conviver com muitas crianças na instituição:

eu estava ansiosa, porque sabia que ia ter muitos meninos e por acaso lembro-me que a minha mãe me disse "pronto, agora vais ficar aqui e tal, é a tua escola" e eu "'tá tá, xau!". Os outros ficavam à porta agarrados à mãe, porquê? Porque eu estava completamente familiarizada quando havia muitas crianças, então aquilo era "fixe", aquilo era bom. E entrei...para já achei estranho o pessoal estar todo a chorar no primeiro dia, mas eu também não era aquela menina de estar sentada e andava sempre ali de volta...mas foi bom. E eu tinha saudades disso.

As dificuldades de aprendizagem e os problemas comportamentais, que caracterizaram o percurso de alguns destes jovens – adultos, manifestaram-se no espaço escolar como resultado dos efeitos de longa duração das experiências de negligência vivenciadas no seu contexto familiar de origem (Berridge, 2001).

Voltando-nos para o impacto da transição ao nível da saúde, procurámos analisar qual o impacto do acolhimento familiar na saúde física e psicológica das crianças e jovens acolhidos. Tendo em conta as partilhas realizadas, parece-nos que esta é a dimensão onde são mais visíveis os benefícios do acolhimento familiar. Debrucemo-nos sobre o discurso de Beta (16, (19)), onde revela que o acolhimento lhe permitiu comer melhor e de forma mais saudável, com impacto na sua condição física e na autoestima:

foi muito benéfico para a minha saúde principalmente em termos de alimentação. Ou seja, eu mudei bastante a minha alimentação, comecei a comer mais e emagreci muito, ou seja, eu havia dias na minha casa da família biológica em que eu comia, como não havia mais nada, eu comia 10 pães num dia era isto que eu comia, pão com pão. Ou seja, eu era gordinha, mas nãotinha nutrientes suficientes então comecei a sentir uma diferença muito grande alimentar. Física notei imenso porque comecei a ter muito mais cuidado comigo, o meu cabelo ficou mais forte. Senti coisas mesmo simples não é mas que eu senti uma diferença enorme. Para além de que comecei a aprender gestão e consegui começar eu a pagar o meu aparelho, pus aparelho, fiquei com os dentes direitos que para mim também era psicologicamente era uma coisa muito importante...

Ainda no que se refere a esta dimensão, outros jovens – adultos mostraram que o facto de estarem acolhidos lhes permitiu obter determinado tipo de cuidados de saúde que, possivelmente, não teriam se estivessem com as suas famílias, devido às situações de grande vulnerabilidade em que se encontravam e pelo desconhecimento de certas situações: “ah...tenho dúvidas. Tenho dúvidas, não sei...acho que ela não dava muita importância a esse assunto. Se calhar até desconhecia o facto de haver tratamento ou ter direito a esse tratamento...não sei” (Emma (8, (26)). Desta forma, durante o período de acolhimento, foi possível que alguns dos jovens pudessem usar óculos e, inclusivamente, num dos casos, conseguiu corrigir-se um problema de estrabismo, depois de algumas intervenções cirúrgicas:

Emma (8, (26)): o meu irmão teve, teve um problema nos olhos...quer dizer, teve? tinha...era estrábico, não é? e foram-lhe feitos os tratamentos na altura em que estávamos acolhidos. Fez cerca de três/quatro operações se não me engano[...] aliás, ele começou a usar óculos nessa altura”.

Do ponto de vista das relações sociais, procurámos relacionar a transição para o acolhimento familiar com um alargamento das relações sociais e com uma nova forma de estar perante os outros e esta constatação foi evidente no discurso de Beta (16, (19)) que revela que:

socialmente comecei-me a tornar também uma pessoa um pouco diferente porque...eu antes de estar, antes de viver com esta família, tinha uma necessidade muito grande de me mostrar na escola, de ser muito...uma carência de atenção muito grande que deixei de ter quando comecei a ter uma base mais estável e assim e então toda a minha personalidade mudou.