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PARTE III – Análise e discussão dos dados do estudo empírico

Capítulo 2 – Interpretação e discussão dos dados

2.2. Relação com a família de acolhimento

2.2.1. Relação com o casal acolhedor

Interessou-nos, particularmente, a descrição e avaliação das relações entre a criança ou jovem acolhido e o casal acolhedor, uma vez que é reconhecida a importância da relação e dos laços familiares que se constroem no seio destas famílias, principalmente porque esta é “uma oportunidade de acesso a modos relacionais eventualmente distintos dos vividos no seio da família biológica” (Martins, 2005, p.64).

Considerámos que um dos aspetos mais pertinentes para perceber a relação desenvolvida pelos participantes e a respetiva família, passa pelas formas de tratamento. Verificámos, nos casos em que o acolhimento se prolongou no tempo, que os jovens – adultos acabaram por nomear as figuras acolhedoras como “pai, mãe, tio/a”, salientando a proximidade que caracteriza estas relações e o papel que estas pessoas assumiram nas suas vidas.

Anna (6, (24)): eu comecei por lhes chamar Rosa e Zé, depois, mais tarde, tios e depois eu lembro-me que já estava...nunca mais me hei-de esquecer. Eu estava numa aula de ballet, portanto já estava na escola, já devia ter para aí 7 anos e eu chamei-lhe mãe...a ela. Primeiro a ela, depois a ele. E foi um processo muito gradual, muito devagar, muito...com tempo.

Desta forma, a família de acolhimento deve proporcionar à criança acolhida o suporte, a proteção e a participação necessárias para o seu desenvolvimento e bem-estar. Ainda que nem sempre de uma forma explícita, os participantes reconheceram que as famílias de acolhimento se preocupavam com as suas necessidades, o que é um aspeto fundamental na perspetiva de Sinclair et al. (2004). Esta preocupação pelas suas necessidades foi visível relativamente ao acompanhamento em relação aos trabalhos de casa e ao sucesso escolar, porque “quando eles se começaram a perceber que eu era macaca e que fugia das coisas da escola, a minha mãe andava muito em volta de mim, "já fizeste os trabalhos de casa?" e dizia "vais sentar-te aqui na mesa enquanto a mãe faz o comer" (Anna (6, (24)). A mesma preocupação emergia nos após os contactos com a família de origem onde “quando eu voltava ficavam sempre «então estás bem? está tudo bem? como é que correu?»” (Beta (16, (19)), o que é representativo do interesse dos acolhedores com o bem-estar das crianças e jovens que acolher.

Os aspetos relacionais mais conturbados surgiram, nos casos em que o acolhimento se iniciou na infância e prosseguiu até à autonomia de vida (exs., Anna (6, (24)) e Mike (10, (27)), na fase da adolescência, porque “depois há aquela revolta que a gente tem com os pais e que acontece aí aos 16/17 anos” (Anna (6, (24)). Os conflitos prenderam-se, essencialmente, com o

percurso académico dos acolhidos, com a partilha de responsabilidades e com a aceitação das regras definidas pelo casal.

Um outro aspeto fundamental na relação das crianças e dos jovens acolhidos com os seus acolhedores prende-se com a aceitação e um tratamento igual, tanto para filhos biológicos como para as crianças, conforme referem Baker, Wilson e Gibbs (2005, p.158) salientando que “a justiça e aceitação fazem a criança sentir que pertence à família, que têm, pelo menos por enquanto, uma família substituta”. A maioria dos entrevistados reconheceu que os seus acolhedores assumiam as funções parentais de forma indiferenciada e sentiam-se como os filhos do casal, como sublinha Mike (10, (27)): “tudo o que eles tiveram eu tive, exatamente igual. A minha tia ofereceu a carta de condução aos 18 anos a todos...tive tudo igual, exatamente igual àquilo que os filhos dela também tiveram”.

Debruçando-nos, agora, sobre os motivos que levaram à cessação da medida de acolhimento familiar, poderemos compreender de que forma os mesmos refletem a relação atual entre os envolvidos. Para Emma (8, (26)) e Jonathan (6, (23)), o acolhimento cessou, porque regressaram à família de origem, ainda que por pouco tempo, seguindo-se a colocação de ambos em acolhimento residencial. Nas restantes situações, o acolhimento manteve-se até à autonomia de vida de Anna (6, (24)) e Mike (10, (27)) e, ainda se mantém, para Beta (16, (19)).

A importância do contacto após o termo da medida é contemplada no artigo 34º do Decreto-Lei nº 11/2008, desde que haja concordância da equipa técnica e da família de origem. A manutenção dos contactos com a família de acolhimento não deverá cessar com o fim da colocação, devido aos laços que se estabeleceram durante o acolhimento entre todos os intervenientes (acolhedores e acolhidos). Para as famílias que acolhem é importante conhecer os percursos destas crianças e também o é para as crianças, porque podem manter o contacto com pessoas que tiveram uma forte influência nas suas vidas e que, de alguma forma, podem “ter contribuído para a descoberta de um novo desejo de viver” (Delgado, 2003, p. 25). No entanto, no presente estudo percebemos que, quando o acolhimento cessou na infância, os contactos não se mantiveram depois de a medida cessar. A este propósito Emma (8, (26)) recordou o que se passou consigo e com o seu irmão:

Depois de sairmos de lá...eu pelo menos tentei manter algum contacto, de vez em quando ligava, cheguei a encontrar o meu padrinho...pronto, na rua, porque ele trabalha nos saneamentos, então algumas vezes encontrei-o, mas não...como é que eu hei-de explicar? eu sentia que...sei lá, não era bem-vinda a minha chamada, pronto. E acabei por desistir...

Este desfecho poderá estar relacionado com o facto de a relação estabelecida durante o período de acolhimento ser pautada por alguns conflitos e por alguns episódios de violência dirigidos a Jonathan (6, (23)): “essa senhora obrigava-me a comer a sopa, por exemplo puxava- me o cabelo cá atrás para eu abrir a boca e enfiava-me a colher pela boca abaixo, por exemplo. Sei lá...”. Emma (8, (26)) parece olhar para estes factos com alguma tristeza expressando que “poderia haver uma relação, não é? porque eles até são meus padrinhos do batismo... e da comunhão...mas não ficou relação nenhuma”.

Remetendo-nos aos restantes participantes, cujo acolhimento se prolongou no tempo, a relação com a família acolhedora tornou-se, em tudo, semelhante à relação que se desenvolve entre pais e filhos apesar de os olharem “um bocadinho de lado ao início” (Anna (6, (24)). No presente, verificámos que os contactos são regulares e “é um contacto mãe e filha, pai e filha. Acho que não há diferenças, eu pelo menos não sinto” (Anna (6, (24)). Do mesmo modo, embora viva “cada um na sua casa […] encontramo-nos todos os dias, praticamente todos os dias” (Mike (10, (27)).

Face aos dados apresentados, podemos afirmar que, quanto mais tempo se prolonga o acolhimento, mais a relação entre os envolvidos se assemelha à de pais e filhos e, em contrapartida, assiste-se a um afastamento face à família de origem, como discutiremos mais à frente (cf. relação com a família de origem).