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PARTE III – Análise e discussão dos dados do estudo empírico

Capítulo 2 – Interpretação e discussão dos dados

2.1. Transição para o acolhimento familiar

2.1.2. Motivo da retirada

Dos relatos obtidos, foi possível perceber que os pais dos jovens – adultos que foram acolhidos na infância, eram pessoas que apresentavam, na sua maioria, problemas de adição, de saúde mental e sociais graves. Por este motivo foi necessária a intervenção de uma das entidades referidas na subcategoria anterior, por forma a retirar as crianças da situação de perigo (Lei nº147/99, de 1 de setembro).

Deste modo, procurámos categorizar as diferentes tipologias de maus-tratos que estiveram na origem da retirada às suas famílias de origem e perceber se os próprios estavam conhecedores destes motivos.

Pensando na definição de perigo que consta na legislação, uma criança encontra-se em perigo quando “está abandonada ou vive entregue a si própria” (artigo 3º., Lei nº147/99, de 1 de setembro), pelo que, quando uma criança fica órfã, está efetivamente em perigo necessitando de uma resposta por parte do Estado que assegure o seu bem-estar e os seus direitos, designadamente o direito à família. Foi o que aconteceu com Mike (10, (27)), que ficou órfão de pai e mãe aos 10 anos, pelo que o próprio reconhece que foi esta a situação que motivou o seu acolhimento: “os meus pais faleceram quando eu tinha 10 anos, o meu pai faleceu quando eu tinha 5 e a minha mãe faleceu quando eu tinha 10...e pronto, foi quase uma obrigatoriedade digamos assim”.

No decorrer das entrevistas realizadas, testemunhámos outras tipologias de maus-tratos, mais gravosas e claramente expressas na legislação em vigor, como o maltrato físico, a negligência e a exposição a modelos de comportamento desviantes.

O maltrato físico reporta-se a qualquer ação não acidental, isolada ou repetida, infligida por pais, cuidadores ou outros com responsabilidade face à criança ou jovem, a qual provoque (ou possa vir a provocar) dano físico (APAV, 2011). Os relatos deste tipo de maltrato não foram manifestamente expressos e quando surgiram foi no decorrer de uma conversa informal já depois da entrevista ser realizada. Dos jovens – adultos entrevistados, apenas Jonathan (6, (23)) sofreu de maus-tratos físicos por parte do pai, conforme o próprio e a sua irmã Emma (8, (26)) recordam: “as más memórias, piores, que eu tenho dessa minha infância é, por exemplo, a violência doméstica que sofri por parte do meu pai, por isso...” (Jonathan, 6 (23)); “eu era muito pequenina não é, mas pelo que percebia era porque...era por violência doméstica, por parte do meu pai, quer à minha mãe quer aos meus irmãos. Eu nunca sofri muito com isso nem com o meu pai nem depois com o meu padrasto. Eles é que sofreram mais, pronto os meus irmãos e a minha mãe” (Emma, 8 (26)).

A negligência foi, possivelmente, a forma de maltrato mais comum entre os entrevistados e coocorria com outras formas de maus-tratos. A negligência diz respeito às situações em que as necessidades básicas da criança e a sua segurança não são atendidas por quem cuida dela (pais ou outros responsáveis), embora não de uma forma manifestamente intencional de causar danos à criança (APAV, 2011) e pode manifestar-se a vários níveis:

Beta (16, (19)): […] a nossa mãe utilizava por exemplo o dinheiro da segurança social que vinha para nós, um exemplo só para perceberes o ambiente familiar, usava o dinheiro da segurança social e da pensão de alimentos para por extensões no cabelo que era tipo 200 euros e nós não tínhamos o que comer em casa, então havia muitas coisas que era assim...e eu não recebia educação básica, eu não cuidava da minha higiene porque também ninguém me obrigava a fazê-lo, eu não escovava o cabelo, passava muito tempo sem tomar banho e não escovava os dentes...era mesmo … não queria saber e então a vida era assim um bocado turbulenta […].

Jonathan (6, (23)): sim, por exemplo...os motivos que levaram ao facto de eu e as minhas irmãs sermos postas em famílias de acolhimento devia-se, principalmente, à violência doméstica praticada pelo meu pai e também à negligência familiar por parte da minha mãe, a nível de cuidados de higiene, alimentação e isso tudo, pronto.

O facto de percebermos que a negligência é uma forma de maltrato recorrente é preocupante, na medida em que a literatura demonstra que esta modalidade de maltrato se traduz em maiores índices de psicopatologia, num desenvolvimento de vínculos inseguros com os cuidadores e as crianças negligenciadas revelam défices na distinção das emoções (Azevedo & Maia, 2006).

A exposição a modelos de comportamento desviantes prende-se com condutas do adulto que potenciam na criança padrões de condutas antissociais ou desviantes bem como perturbações do desenvolvimento (desorganização afetiva e/ou cognitiva), embora não de uma forma manifestamente intencional (APAV, 2011) e onde se podem incluir modos de vida dos adultos que põe em perigo o bem-estar das crianças e jovens. Verificámos que, no caso dos participantes do estudo, estes diziam respeito a situações de alcoolismo, prostituição e toxicodependência “porque andava na droga e álcool e prostituição e no meio da rua...dormia onde calhava e onde ficava...foi por isso que fui retirada” (Anna, 6 (24)). Verificámos, também, a existência de situações de violência doméstica como descreve Beta (16, (19)):

quando as discussões muito graves que havia em casa aconteciam, chegavam a agressões físicas e eram entre a minha mãe e uma das minhas irmãs […] a discussão começou por um comando de televisão entre a minha irmã do meio e a minha mãe e elas de repente já estavam aos insultos tipo "dá-me cá isso, dá-me cá" e de repente estavam uma em cima da outra com tesouras percebes?”.

O confronto com este tipo de situações deixava-os, enquanto crianças, mais vulneráveis e incapazes de agir, como podemos observar: “eu era a mais pequena, não sabia o que fazer, saia daquela divisão, metia os fones nos ouvidos aos berros a saber que as pessoas estavam noutro sítio a passarem-se”.

As razões elencadas para o acolhimento familiar são concordantes com as observadas por Delgado e Carvalho (2013), de onde sobressaem a negligência (84,8%) e os maus-tratos físicos (14,9%).

Conforme pudemos perceber, os fatores de risco que estiveram na origem das diferentes retiradas dizem respeito a características da família de origem, o que nos levou a questionar sobre

o tipo de apoio que estas poderão ter recebido antes da retirada ocorrer e durante o período em que as crianças estiveram acolhidas. Percebemos que os apoios prestados, numa fase anterior ao acolhimento, ou não existiam, “porque eu sei que ninguém tinha feito nada” ou eram apoios monetários, o “dinheiro da Segurança Social” e de caráter pontual. Quando a transição ocorre, e pelo desejo de alguns pais em voltar a ter os filhos consigo, percebemos que os apoios prestados eram de natureza médica com vista ao tratamento das situações aditivas, tal como Anna (6, (24)) elucida: “…ela como me queria ter, queria ter-me de volta, fizeram o primeiro internamento, a primeira desintoxicação…tentaram fazer”. Porém, a perceção que os jovens – adultos têm é de que estes foram ineficazes, “porque as coisas nunca…nunca foram a 100%”. Uma vez que a viabilidade da medida de acolhimento familiar passa, também, pela reestruturação da família de origem, era necessária uma maior mobilização por parte da equipa de acolhimento e da sua rede, disponibilizando outro tipo de apoios, entre os quais destacámos o apoio social que nestas famílias é tido como “um dos fatores de proteção que podem contribuir para neutralizar o efeito de risco” (López, 2010, p.147).