• Nenhum resultado encontrado

2 O ANUNCIADO

2.1 ENSINO MÉDIO INTEGRADO E FORMAÇÃO OMNILATERAL –

DIMENSÕES ESTRUTURANTES DO CURRÍCULO

O Decreto nº 5.154/2004, art. 4º, § 1º, inc. I, prevê que uma das formas de “articulação entre a educação profissional técnica de nível médio e o Ensino Médio dar-se-á de forma: integrada [...]”. Ao refletirmos sobre essa forma de oferta, a compreendemos como formação integrada entre o ensino geral e a educação profissional ou técnica.

As DCNEPTNM anunciam que “a formação humana se expressa com base na integração de todas as dimensões da vida no processo educativo, visando à formação omnilateral dos sujeitos. Essas dimensões são o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura. [...]” (BRASIL, 2012, p. 228, grifo nosso). Dessa forma, é importante refletirmos sobre o que é, como se realiza ou como pode se realizar essa integração.

Podemos compreendê-la como possibilidade de superar a dualidade estrutural da educação brasileira em ofertar uma educação geral para a classe dominante e preparar para o trabalho a classe dominada. Com isso, institui-se uma crítica a um ensino reducionista que, no Brasil, desde muito foi marcado pelo dualismo, suprimindo o desenvolvimento de uma atividade em detrimento de outra.

Peixoto (2009), ao analisar a história e o desenvolvimento da educação profissional e tecnológica do Brasil, regressa a 1549 para afirmar que, no trabalho desenvolvido pelos jesuítas, nasce a instrução profissionalizante e, de certa forma, a dualidade educacional no Brasil.

A iniciação profissional destina-se aos escravos e o ensino da música aos filhos da elite da colônia. Aqueles recebiam as instruções com o objetivo de prepararem-se para as atividades agrícolas, principal fonte de exploração econômica do Brasil-Colônia e estes, as instruções avançadas em gramática visando à continuidade dos estudos em países Europeus. Considerando este período como o do nascimento da educação profissional, parece, também, que ele se deu sob o princípio dual da educação, distinguindo-se o ensino para classe rica, do ensino destinado à classe pobre (PEIXOTO, 2009, p. 31).

Com base nos estudos do autor, compreendemos que a história da educação brasileira, bem como a história da educação profissional, contadas a partir da presença dos jesuítas, revelam evidências da dualidade educacional no decorrer dos períodos históricos. Somente em 1932, com o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, que se expressa uma tentativa de quebra do dualismo existente. A partir desse período, houve avanços e retrocessos no âmbito das políticas públicas educacionais, ora caminhando para superação da dualidade, ora visando a sua manutenção.

Isso, porque as políticas educacionais brasileiras, na condição de políticas públicas de cunho social, têm se constituído em "políticas de governo” e não em “políticas de Estado”, provocando, assim, uma recorrente descontinuidade dos processos educativos. Essa dinâmica perversa da educação profissional brasileira só poderá ser rompida a partir da criação de uma política de Estado que esteja associada à qualidade e estabeleça uma possibilidade concreta de formação de cidadãos conscientes, críticos e responsáveis que além dessa formação tenha a possibilidade de contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país (PEIXOTO, 2009, pp. 79-80).

Nesse contexto, romper com a representação de que a educação profissional deve ser exclusiva para a classe subalterna e a educação geral para a elite, atuar na contramão da manutenção dessa dualidade, buscando a união da educação geral à

educação profissional, constitui-se objetivo primordial dos que defendem um ensino integrado como uma proposta democrática para a politecnia.

Partindo da superação dessa dualidade educacional, é possível superar a fragmentação do próprio ser humano, ou seja, “a ideia de formação integrada sugere superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar” (CIAVATTA, 2012, p. 85).

Para isso, também devemos superar a dicotomia teoria e prática que, ao subordinar um elemento a outro distancia os conhecimentos da sua aplicação. Isso implica pensar a organização do currículo, o que não significa apenas distribuir disciplinas técnicas e propedêuticas na mesma matriz curricular, mas organizá-las da perspectiva de unidades indissolúveis, as quais, com relação ao Ensino Médio integrado implicam

[...] que a educação geral se torne parte inseparável da educação profissional em todos os campos onde se dá a preparação para o trabalho: seja nos processos produtivos, seja nos processos educativos como a formação inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou superior. Significa que se busca enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual, de incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo, de formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos (FRIGOTTO et al., 2012, p. 17).

Nesse sentido, o Ensino Médio integrado constitui-se uma possibilidade de integração da formação geral à formação técnica, da convivência entre o Ensino Médio e técnico em um mesmo currículo, numa mesma instituição de ensino, conforme estabelece o Parecer CNE/CEB nº 39/2004:

Trata-se de um único curso, cumprindo duas finalidades complementares, de forma simultânea e integrada, nos termos do projeto pedagógico da escola que decidir oferecer essa forma de profissionalização a seus alunos, garantindo que todos os componentes curriculares referentes às duas finalidades complementares sejam oferecidos, simultaneamente, desde o início até a conclusão do curso (BRASIL, 2004, p. 404).

O Ensino Médio integrado, além de sua organização curricular contemplar disciplinas da base geral e da área técnica no mesmo currículo, legitima-se por meio da articulação entre as disciplinas em uma constante busca por elementos integradores.

Portanto, o Ensino Médio integrado

(...) não é apenas uma forma de oferta da educação profissional de nível médio, o ensino integrado é uma proposição pedagógica que se compromete com a utopia de uma formação inteira, que não se satisfaz com a socialização de fragmentos da cultura sistematizada e que compreende como direito de todos o acesso a um processo formativo, inclusive escolar, que promova o desenvolvimento de suas amplas faculdades físicas e intelectuais (ARAÚJO;

FRIGOTTO, 2018, p. 249).

Esse caminho aponta para uma formação que se pretende ampla, em todos os sentidos, comprometida com o desenvolvimento de um ser humano integral, o que se caracteriza como formação omnilateral. Segundo Ciavatta (2012, p. 86), essa formação omnilateral pode ser compreendida “por formar o ser humano na sua integralidade física, mental, cultural, política, científico-tecnológica”, o que permitirá ao jovem se aproximar da realização de uma leitura ampla da realidade em que vive.

Da mesma forma, as DCNEPTNM indicam para essa direção, ao orientar em uma formação humana integral, considerando as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura como dimensões estruturantes do currículo.

Especificamente em relação aos pressupostos e fundamentos para a oferta de um Ensino Médio de qualidade social, incluindo, também, a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, são apresentadas as dimensões da formação humana que devem ser consideradas de maneira integrada na organização curricular dos diversos cursos e programas educativos: trabalho, ciência, tecnologia e cultura (BRASIL, 2012, p. 215).

No currículo que integra as dimensões da formação humana, a dimensão do trabalho deve ser compreendida, conforme manifesta-se nas DCNEPTNM como “[...] processo histórico de produção científica e tecnológica, como conhecimentos desenvolvidos e apropriados socialmente para a transformação das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das potencialidades e dos sentidos humanos” (BRASIL, 2012, p. 16).

Nesse sentido, podemos compreendê-lo como atividade ontológica, ou seja,

“estruturante do ser social, como um valor extrínseco à vida humana e ao conhecimento, que ele proporciona na relação com a natureza e com os demais”. É possível compreendê-lo, também, como princípio educativo que “[...] na sua particularidade histórica, nas mediações específicas que lhe dão forma e sentido no

espaço, podemos apreendê-lo ou apreender o mundo do trabalho na sua historicidade [...]” (CIAVATTA, 2012, p. 92).

O trabalho como princípio educativo, portanto, refere-se a uma formação que se baseia no processo histórico e ontológico de produção da existência humana. Por ser o trabalho uma produção científica e tecnológica que foi desenvolvida ao longo da história pelo próprio homem, na mediação com seus pares e com a natureza, gerando transformação das condições de vida, deve ser comum a todos os seres humanos.

O trabalho como princípio educativo deriva do fato de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempéries e criar seus meios de vida. É fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência, e outras esferas da vida pelo trabalho, é comum a todos os seres humanos, evitando-se, dessa forma, criar indivíduos ou grupos que exploram e vivem do trabalho dos outros (FRIGOTTO, 2012, p. 60).

Ou seja, o trabalho não deve ser reduzido à condição de emprego ou atividade laboral, mas como produção de todas as dimensões da vida humana. Assim, compreendemos o trabalho como dimensão estruturante do ser social, razão pela qual, no processo de formação, não basta aludir conhecimentos necessários aos processos de produção, mas possibilitar a compreensão da realidade, para que, conscientes das relações sociais de produção, evitemos formar seres humanos que desejam viver da exploração do trabalho dos outros.

Como tal, o trabalho também se caracteriza “[...] como um princípio de cidadania, no sentido de participação legítima nos benefícios da riqueza social que se distingue das formas históricas e alienantes, de exploração do trabalhador, presentes na produção capitalista” (CIAVATTA, 2012, p. 92). Esse é o sentido do trabalho que deve permear o Ensino Médio integrado comprometido com a formação omnilateral que, junto à ciência, à tecnologia e à cultura formam a dimensão estruturante do currículo da EPTNM, no qual

O homem reproduz toda a natureza, porém de modo transformador, o que tanto lhe atesta quanto lhe confere liberdade e universalidade. Desta forma, produz conhecimentos que, sistematizados sob o crivo social e por um processo histórico, constitui a ciência. [...] conhecimentos assim produzidos e legitimados socialmente ao longo da história são resultados de um processo empreendido pela humanidade na busca da compreensão e transformação dos fenômenos naturais e sociais. Nesse sentido, a ciência conforma

conceitos e métodos cuja objetividade permite a transmissão para diferentes gerações, ao mesmo tempo em que podem ser questionados e superados historicamente, no movimento permanente de construção de novos conhecimentos. A extensão das capacidades humanas, mediante apropriação de conhecimentos como força produtiva, sintetiza o conceito de tecnologia aqui expresso. Pode ser conceituada como transformação da ciência em força produtiva ou mediação do conhecimento científico e a produção, marcada desde sua origem pelas relações sociais que a levaram a ser produzida. [...] Entende-se cultura como o resultado do esforço coletivo tendo em vista conservar a vida humana e consolidar uma organização produtiva da sociedade, do qual resulta a produção de expressões materiais, símbolos, representações e significados que correspondem a valores éticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade (BRASIL, 2012, pp. 14-15)

Desse modo, para concretização de uma formação omnilateral, em que as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura estejam articuladas na organização do currículo, o que é fundamental para a oferta de um ensino de qualidade, para os fins dessa pesquisa, importa compreender como essas categorias permeiam a formação dos alunos do Ensino Médio integrado, as quais, na perspectiva da formação omnilateral, devem propiciar aos alunos:

1 – Formação baseada no trabalho enquanto processo histórico e ontológico da existência humana, devendo ser comum a todos os seres humanos. Reconhecimento do trabalho como princípio de cidadania, cuja participação nos benefícios da riqueza social deve ser comum a todos. Dessa forma, uma formação distinta de formas históricas e alienantes de exploração do trabalhador, evitando-se formar seres humanos que desejam viver da exploração dos trabalhos dos outros;

2 – Acesso ao conhecimento científico-tecnológico, de maneira que os alunos sejam capazes de dominar as técnicas de produção, compreendendo a relação entre o conhecimento e a técnica, o que significa apontar como a ciência é materializada no processo de produção;

3 – Promoção e reflexão crítica sobre os diversos aspectos da cultura, manifestada através das expressões materiais, dos símbolos, das representações, dos significados e modos de vida da sociedade, propiciando ao estudante uma formação humana;

4 – Reflexões sobre o respeito à diversidade cultural e à dignidade do ser humano, propiciando que essas discussões estejam presentes nos percursos formativos dos alunos.

Nessa confluência, da formação omnilateral em consonância com as dimensões que estruturam o currículo da EPTNM, a cidadania não proclamada diretamente nas DCNEPTNM como dimensão, mas anunciada como objetivo educacional, independentemente do nível ou modalidade de ensino, é trazida, neste trabalho, como dimensão estruturante do currículo.

A cidadania, nesse sentido, deve ser compreendida como a efetiva participação dos indivíduos na sociedade de que fazem parte e relacionada com o sentimento de pertencimento à sociedade, com vistas ao exercício efetivo e amplo de seus direitos.

A formação cidadã é uma forma de transformar a realidade em que vivemos, contribuindo para construção de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.

Dessa forma

[...] a educação baseada na formação cidadã possui um papel essencial neste cenário: busca a conscientização da pessoa enquanto sujeito de direito, apoiada nos conhecimentos da ação em favor dos direitos humanos, onde se aprenda a respeitar o ser humano em sua totalidade, em sua liberdade e em sua dignidade, evitando problemas culturais de discriminação, de racismo, de preconceitos, de intolerância e de violência social (SILVA; TAVARES, 2011, p. 5).

Com base nos estudos das autoras, defendemos a formação para cidadania cuja essência consista em priorizar a prática da tolerância, da paz e do respeito ao ser humano. Compreendemos que as mudanças sociais são processos que se interligam com a necessidade de conscientizar cada indivíduo a reconhecer o outro enquanto sujeito de direito, o qual deve ser respeitado.

A formação cidadã é fundamental para o processo de redução das desigualdades sociais, discriminações e preconceitos de diferentes ordens. Trata-se de uma cidadania ativa, organizada de forma individual, na sua prática, e coletiva, na sua afirmação. Ou seja, é necessário conhecer os direitos, valores e atitudes para respeitá-los e vivenciá-los. Neste processo de formação da cidadania ativa

[...] a democracia supõe o respeito às decisões da maioria, desde que elas não violem aos direitos humanos historicamente conquistados. Por isso, é o regime que dispõe das melhores condições para o exercício da cidadania ativa, o respeito e a materialidade dos direitos humanos e da justiça social.

[...] Os direitos humanos, por sua vez, são aqueles direitos que garantem a dignidade da pessoa, independentemente de sua condição de classe social, de raça, de etnia, de gênero, de opção política, ideológica e religiosa, e de orientação sexual (SILVA; TAVARES, 2011, p. 3).

Dessa forma, a formação para cidadania é um processo permanente, e necessário, numa sociedade democrática. E a escola é um dos espaços educativos que deve propiciar essa formação, por meio da qual é possível criar uma nova cultura de reconhecimento de que todos os seres humanos são igualmente dignos de respeito, independentemente da situação social, econômica e cultural em que vivem.

Isto posto, na direção de um Ensino Médio integrado como proposta democrática de educação, pensada sob a ótica de uma escola unitária, concebe o processo de trabalho como princípio educativo, visando a superar a dualidade de uma escola clássica, defendemos uma escola que objetiva, além do ler, escrever, contar e desenvolver o conhecimento do direito e dos deveres, a noção de Estado e sociedade e de concepções de mundo.

A proposta de escola unitária de Gramsci, aponta para uma escola comum a todos, única, ou seja, não organizada de acordo com as classes sociais a que as pessoas pertencem, mas em escolas que preparem, de maneira igual, todas as pessoas, dando-lhes as mesmas oportunidades (BEZERRA, 2013). Podemos, a partir dessas considerações, caminhar para uma confluência das discussões que estamos desenvolvendo, tomando-a como uma das dimensões fundamentais do currículo, a cidadania. Sabemos que, no sentido oposto desse ideal, vivemos uma realidade na sociedade brasileira historicamente marcada por desigualdades socioeconômicas, que reverberam na escola, onde o próprio direito à educação, direito social básico, por vezes, é violado.

Ressaltamos mais uma vez, porém, que o Ensino Médio integrado é uma “proposta de “travessia” na direção formativa pretendida. Trata-se de uma possibilidade de caminho em direção a uma sociedade justa, em que a formação educacional de qualidade, pública e igualitária seja efetiva para todos.

Assim, o trabalho, a ciência, a tecnologia, a cultura e a cidadania deverão permear o currículo de um ensino comprometido com a formação omnilateral, uma vez que essa articulação indissociável se configura como instrumento capaz de propiciar ao estudante uma formação humana na sua integridade – considerando os aspectos da intelectualidade, do científico-tecnológico, da profissionalização, da cultura, do social, do político, do econômico, das questões ambientais e da cidadania, possibilitando-lhe, ao finalizar o Ensino Médio integrado, ingressar no mundo do trabalho e/ou no nível superior de ensino, consciente do mundo em que vive, atuando como cidadão, vivendo no mundo de forma mais justa.

2.2 A GENEALOGIA DO CONCEITO DE CIDADANIA E A DEFESA POR SUA