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2 O ANUNCIADO

2.2 A GENEALOGIA DO CONCEITO DE CIDADANIA E A DEFESA POR SUA

Amparados pelos estudos de Carvalho (1998; 2010), Marshall (1967) e Ribeiro (2002) sobre o tema cidadania, buscamos desenvolver uma análise sobre a origem do conceito de cidadania, sobre o próprio conceito, sua relação com a educação e apontar nossa defesa em favor de sua inserção como dimensão estruturante fundamental do currículo integrado.

A origem da cidadania, segundo Ribeiro (2002), vincula-se à democracia. Trata-se de um conceito antigo que surgiu na Grécia, pela primeira vez em Atenas, no século V a.C., a qual experimentou o sistema de governo democrático. Contudo, para o mundo grego, a cidadania era exclusiva para os proprietários da terra.

[...] o ser cidadão define-se pela liberdade do indivíduo e pela igualdade entre os pares. O aumento da produção e circulação de riquezas propicia o surgimento da democracia, da cidadania e da filosofia, porém é preciso atentar para as bases em que se assentam essas formas de exercer o poder, de participar da liberdade e de produzir o conhecimento (RIBEIRO, 2002, p.

116).

Os gregos que enriqueceram como comerciantes não eram considerados iguais aos que possuíam a propriedade da terra e o conhecimento, sendo assim não possuíam os critérios para participar na vida política da sociedade. A partir da pressão dos comerciantes por participação na vida pública e nas decisões da comunidade instaura-se

[...] o debate entre filósofos e sofistas sobre a formação do político. Os sofistas são mestres de gramática e oratória que despertam a reação dos setores mais conservadores ao perceberem ameaçada a sua hegemonia. Os sofistas ensinam aos “novos” ricos, já que as portas da Academia lhes são fechadas, uma estratégia do discurso que os permita participar do debate público; filósofos reagem ao trabalho dos novos professores, que põem em questão seu próprio trabalho de formação do político grego. Esse confronto adquire importância para apreendermos as condições de produção da cidadania grega e o papel do conhecimento nesse processo. Com os sofistas, a educação passa a significar instrução teórica para a formação do político.

(RIBEIRO, 2002, p. 117).

É possível perceber uma sutil dualidade em campos da educação por meio da classe e função social à qual o indivíduo se insere. A base do conflito seria a luta por interesses e reconhecimento aos direitos políticos de membros das classes de comerciantes.

Para Ribeiro (2002), podemos perceber que a origem da cidadania é exclusiva, estabelecida através da divisão de classes. Configurava-se como uma prerrogativa dos homens livres do trabalho – proprietários de terras que nasceram afortunados.

Nesse sentido, a educação dos homens das classes dominantes visava a formar o político com a capacidade de governar a cidade e de se fazer obedecer pelas demais classes. As mulheres, os idosos, as crianças, os deficientes, os estrangeiros eram excluídos da natureza do ser cidadão, não poderiam, dessa forma, participar ativamente da vida pública.

Com a instituição do Estado moderno, a cidadania passa a ser pensada sob uma outra ótica. Inspirada nos ideais do Iluminismo e nos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade, a burguesia reivindicava seus direitos, questionando os governos absolutistas.

A questão da cidadania é enfocada sob um outro ângulo pelos filósofos que pensam a constituição do Estado moderno. A igualdade e a liberdade, como direitos reivindicados pela burguesia que disputa o espaço público com a nobreza e o clero, a centralização do poder e a soberania são as questões definidoras do Estado nacional, no qual está compreendida a cidadania moderna (RIBEIRO, 2002, p. 118).

Nesse período, “[...] desenvolve-se uma pedagogia política que põe em pauta a luta por uma escola pública, leiga, gratuita, de caráter científico [...] (RIBEIRO, 2002, p.

119). Contudo, a dualidade da educação, de uma escola para o povo e outra para

classe dirigente, destaca-se, também, no período do Iluminismo, baseada no princípio da liberdade individual. O próprio discurso em defesa pela escola livre, leiga, gratuita, para todos, é esvaziado, à medida em que a burguesia vai se consolidando como classe hegemônica.

A educação é pressuposto para o alcance da cidadania burguesa, que se assenta sobre os princípios de liberdade e igualdade. Em base a estes princípios, a sociedade deveria oferecer, principalmente através da educação básica, condições igualitárias para que os indivíduos tivessem acesso ao exercício de uma cidadania ativa. Contraditando com este discurso, o Estado burguês cria artifícios que inviabilizam a universalização de uma educação pública articulada aos interesses dos segmentos sociais e culturais tradicionalmente excluídos do conceito e das práticas que implicam a cidadania (RIBEIRO, 2002, p. 122).

Subjacente à pretendida condição de liberdade, igualdade e de um horizonte democrático, a classe trabalhadora não o pode ser, na sua materialidade, por ser reinvindicação de uma classe específica, a burguesia. O poder político reconfigura-se com a finalidade de justificar o ingresso da burguesia nas instâncias legislativa, executiva e judiciária, mantendo excluída desse poder político a maioria da população.

No Estado social, em que o Estado é responsável pela promoção social e econômica, Ribeiro (2002) afirma que a cidadania esteve associada aos direitos sociais, principalmente os de proteção ao trabalho. Contudo, com a hegemonia do pensamento neoliberal, o qual retira a participação do Estado da economia, as bases do Estado social são fragilizadas, principalmente as relações concernentes ao trabalho. A cidadania representa uma resistência nesse contexto, em que a responsabilidade em relação aos direitos sociais é transferida do Estado para o indivíduo, já os bens sociais, como a educação e a saúde, são transformados em direitos individuais.

A educação, garantida à população como um dever do Estado, reforça, pois, o sentido da cidadania.

A educação é reconhecida, pela maior parte dos autores que tratam da cidadania, como um direito essencial enquanto propiciador das condições necessárias à inclusão no espaço público, ou seja, no campo da participação política. O direito ao acesso à educação para todos os cidadãos traduz a afirmação de um bem comum à comunidade política e ao compartilhamento, por parte de seus membros, do conhecimento como um valor. Porém, a inexistência da possibilidade de realização do direito à educação, ou a insuficiência de condições para o seu exercício, implica também que a

igualdade de direitos e deveres de cidadania está anulada ou prejudicada.

Homens e mulheres não nascem com o conhecimento das leis, dos direitos e dos deveres da cidadania, o que pressupõe um longo processo de socialização e de escolarização. Se esse processo não se efetiva, automaticamente, está sendo negado um dos direitos essenciais da cidadania. Portanto, a educação pública é um dever básico do Estado para com os seus concidadãos (RIBEIRO, 2002, p. 124).

Ao analisarmos o contexto da cidadania no Brasil, a partir dos estudos de Carvalho (2010), ressaltamos o esforço para construir a democracia, após o fim do período da ditadura militar. Nesse contexto, ressaltamos a evidência que assumiu a palavra cidadania, como marca desse esforço. A cidadania, literalmente, “caiu na boca do povo. Não se diz mais “o povo quer isto ou aquilo”, diz-se “a cidadania quer. Cidadania virou gente. No auge do entusiasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Constituição Cidadã” (CARVALHO, 2010, p. 7).

Para o autor, alguns direitos, como liberdade e participação política foram garantidos.

A manifestação do pensamento, da ação política e sindical é livre. O direito à participação e o direito ao voto foram bem difundidos na sociedade brasileira.

Contudo, em outras áreas, não caminhamos tão positivamente. Carvalho (2010, p. 8) cita problemas que ainda são centrais na nossa sociedade, tais como violência social, analfabetismo, má qualidade da educação, serviços de saúde de baixa qualidade e as desigualdades sociais e econômicas. Por outro lado, mecanismos e agentes do sistema democrático se desgastam diante dos cidadãos.

Esse cenário aponta para a relevância de uma reflexão sobre a complexidade do conceito de cidadania, seus significados e perspectivas, sua relação com a educação e os caminhos que tem percorrido.

Para Marshall (1967), a cidadania expressa um sentido direto de participação social em uma comunidade, baseada em uma lealdade à sua cultura, patrimônio comum. A cidadania, pois, “compreende a lealdade de homens livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum. Seu desenvolvimento é estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo dos mesmos, uma vez adquiridos” (MARSHALL, 1967, p. 84).

Ou seja, a cidadania se relaciona com a efetiva participação dos indivíduos na sociedade de que fazem parte, com o sentimento de pertencer à sociedade e de poder exercer amplamente seus direitos. Carvalho (2010) chama a atenção para a complexidade da cidadania.

[...] O exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e voto, não gera automaticamente, o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar presentes sem as outras. [...] tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos (CARVALHO, 2010, pp. 8-9).

Este autor apresenta um elenco de conceitos que devem ser trazidos nesse ponto, quais sejam, direitos civis, que podem ser compreendidos como o direito à vida, à liberdade e à propriedade e igualdade de tratamento perante a lei. Esses direitos se baseiam em uma justiça acessível a todos. Os direitos civis, entre os quais, a educação, garantem as relações entre as pessoas e a existência da própria sociedade.

Sobre os direitos políticos:

[...] Estes se referem à participação do cidadão no governo da sociedade.

Seu exercício é limitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado.

Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Se pode haver direitos civis sem direitos políticos, o contrário não é viável. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente, mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos (CARVALHO, 2010, pp. 9-10).

Carvalho (1998), baseado nos estudos históricos de Marshall (1967), sobre os direitos civis, políticos e sociais, nos indica que, nos países em que a democracia foi construída, como a Inglaterra, por exemplo, esses direitos surgiram sequencialmente.

A partir da posse dos direitos civis foram reivindicados os políticos. Uma vez conquistados e, por terem sido, por meio da participação no poder, vieram os direitos sociais. O fato é que os três direitos, combinados, nesta sequência e considerando que “[...] o exercício de um deles levava à conquista do outro, parece-me ter constituído um precioso elemento para explicar a solidez do sentimento democrático

e a maior completude da cidadania nos países do ocidente europeu e nos Estados Unidos” (CARVALHO, 1998, p. 35). Nesses países, a construção da cidadania foi própria da população e vivenciada lentamente por ela e, por ser uma experiência vivida, tornou-se um valor coletivo.

No Brasil, o surgimento dos direitos seguiu a ordem inversa, diferenciando-se da Europa e dos Estados Unidos. A Constituição Brasileira de 1824 realizou o registro tanto dos direitos civis quanto dos direitos políticos baseados nas principais Cartas constitucionais liberais europeias daquele contexto. Ou seja, sugiram em uma transição pacífica, sem luta. Um exemplo foi a pressão popular pelo direito de voto que, no Brasil, foi quase inexistente. Sua expansão decorreu das reformas constitucionais de 1934 e 1988, sem que a elas estivessem atreladas grandes pressões da população. Carvalho (1998, p. 35) destaca que o único movimento que demandou participação eleitoral nos 170 anos de vida independente do Brasil foi o das Diretas, comandado pela classe média urbana do final da década de 80.

O fato de a existência dos direitos políticos sem o prévio desenvolvimento dos direitos civis torna falho o exercício da cidadania política. Isso, porque as pessoas não desenvolveram noções de civismo. Serve de exemplo o direito ao voto, que passa a ser objeto de penhor, de retribuição de favores, uma mercadoria a ser vendida, em vez de participação no poder, por meio da representação.

Dessa forma, fica claro que não basta anunciar os direitos nas legislações brasileiras para que eles sejam concretizados e experienciados pela população. Nesse sentido, com base nos estudos de Ribeiro (2002, p. 115), identificamos a relação da educação com a cidadania, a qual aponta para a construção de uma cidadania ativa, como

“aquela em que os cidadãos efetivamente participam das decisões políticas que os afetam”. A autora ressalta que muitos filósofos que discutem sobre a constituição do Estado-nação, ao qual se vincula a noção moderna de cidadania, reconhecem que “a educação é um bem que deve estar acessível a todos os indivíduos, de modo a tornar possíveis as condições para o exercício de uma efetiva cidadania” (RIBEIRO, 2002, p. 115).

O fato é que a educação é apontada, quase que por unanimidade, como acesso para se constituir a cidadania. Parece ser consenso, também, de que a sua conquista implica conhecer os direitos e os deveres por meio da educação escolar básica.

Contudo, Ribeiro (2002) tensiona a questão envolvendo a cidadania e a escola, uma vez que a educação escolar tem sido responsável pela conquista da igualdade de direitos, ou seja, a cidadania.

[...] Qual a possibilidade de alcance de uma cidadania concreta para índios, agricultores, desempregados, adultos analfabetos que justifique ser ela encarada como finalidade última da educação escolar para essas pessoas?

Indo mais a fundo, pergunto: Que limites a cidadania, enquanto uma categoria histórico-filosófica, apresenta em relação à sua aplicação às camadas populares, que são transpostos para a educação? E, se há limites, quais as potencialidades vivas de conquista de uma cidadania ativa, que ainda permitem afirmá-la como perspectiva da escolarização das camadas populares? Esse é um problema para os movimentos sociais populares, os quais precisam ter claras as suas reivindicações para, a partir delas, formular suas estratégias de luta (RIBEIRO, 2002, p. 116).

A autora problematiza as questões envolvendo o binômio cidadania e educação, indo na contramão da histórica, e não questionada, relação existente entre elas. Muito se discute que é por meio da educação que a cidadania é constituída, que é por intermédio do conhecimento dos direitos e deveres que a pessoa se reconhece como cidadão e reconhece o outro. Acreditamos nessa perspectiva envolvendo a relação da educação com a cidadania, mas reconhecemos os seus limites. As questões levantadas pela autora são pertinentes, uma vez que a própria educação, reconhecida como um direito social fundamental, garantida por lei, às vezes, não se efetiva por questões de desigualdades sociais e de exclusão social.

Essa problemática atinge as camadas populares, uma vez que, no Brasil, a desigualdade socioeconômica é extrema e obriga as pessoas carentes economicamente a buscarem por empregos em turnos diversos de trabalho para complementar a renda familiar ou a autossustentação, deixando, por vezes, de frequentar a escola. Carvalho (2010) destaca a cidadania, em negativo, para se referir a esta grande parcela da população à qual é negado o desenvolvimento das potencialidades participativas, sendo a privação do acesso à educação o maior dano à formação da consciência cívica. Diante dessa realidade, o alcance da cidadania para essas pessoas parece muito distante.

Consideramos o Ensino Médio integrado, ofertado pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, como possibilidade viva e potencializadora da cidadania ativa para as classes populares, uma vez que, a partir do fortalecimento de políticas voltadas para a democratização dessa forma de oferta, por meio da implantação de ações afirmativas – cotas (raciais e socioeconômicas), lhes é permitido o ingresso. As políticas de assistência estudantil (que oferece diversos auxílios para atendimento de estudantes em vulnerabilidade social) garantem-lhes a permanência e a conclusão de um ensino de qualidade referenciada. Contudo, não deixamos de reconhecer os limites dessa oferta, haja vista que a forma de acesso ocorre através de processo seletivo, portanto, eliminatória e classificatória, não havendo vagas para todos.

Sabemos dos limites impostos pela realidade social brasileira, historicamente marcada por desigualdades socioeconômicas que reverberaram na escola. Mas, o Ensino Médio integrado é

[...] um passo, sem dúvida, crucial para ter uma base efetiva para almejar universalizar o Ensino Médioe oferecer educação técnico-profissional dentro dos pressupostos da escola unitária àqueles que devem buscar os meios de vida num mundo moldado pelos ditames da ciência e tecnologia [...]

(FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 20).

Portanto, trata-se de uma possibilidade de caminho em direção ao que se pretende como uma formação educacional de qualidade, pública, gratuita e igualitária.

Na perspectiva de construir uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna, o processo de “travessia”, conforme destaca Moura, Lima e Filho (2015, p. 1072) pode levar a acreditar em uma compreensão [...] “etapista da história. Não é essa a concepção que aqui defendemos. Compreendemo-la como constituinte de um movimento de continuidade e ruptura a partir do qual o novo engendra-se no velho”.

Ou seja, apesar da construção dessa sociedade representar uma utopia e a realidade social, de desigualdades e de injustiças, da atualidade se materializar distante dessa perspectiva, é possível caminhar e ir avançando na direção contrária.

Dessa forma, a defesa pela inclusão da cidadania como dimensão do currículo, sem, com isso, atribuir à educação o papel principal de conquista para cidadania, foi

pensada, sob a ótica do compromisso ético-político do Ensino Médio integrado com a formação omnilateral e com a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. Considerando que não nascemos conhecendo as leis, os direitos e os deveres que são estabelecidos, é necessário um processo de escolarização que socialize esse saber. Se tal processo não se efetiva, o resultado é a negação à sociedade de um dos direitos essenciais da cidadania, a própria educação.

Como ainda não é possível concretizar uma formação omnilateral plena e efetiva para todos, para aqueles que têm a possibilidade de acesso ao Ensino Médio integrado devemos garantir um processo formativo capaz de elevar-lhes o nível de educação.

Defendemos esse processo formativo, na perspectiva da formação omnilateral, por meio das dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia, da cultura e da cidadania no currículo.