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ENTENDENDO O CONFLITO NORMATIVO ENTRE TRA TADOS (E CONVENÇÕES) INTERNACIONAIS E O DIREITO

INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO ACESSO AOS CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS: POSSÍVEL COMPATIBILI-

4. ENTENDENDO O CONFLITO NORMATIVO ENTRE TRA TADOS (E CONVENÇÕES) INTERNACIONAIS E O DIREITO

BRASILEIRO

No que diz com a hipótese específica dos direitos humanos consagrados no plano do direito internacional, que, por via da abertura propiciada pelo art. 5.º, § 2.º, da nossa Carta, passam a integrar – na condição de direitos funda- mentais – o nosso catálogo (não importando aqui se de forma automática, ou não), a solução adotada pelo STF e seguida, ainda, por parte da doutrina e jurisprudência, não se revela constitucionalmente adequada13.

A Suprema Corte adotou entendimento no sentido de que os tratados e convenções sobre direitos humanos aprovados sem o procedimento do §3.º, do artigo 5.º da Constituição, ingressam no ordenamento pátrio com status de supralegalidade, conforme Recurso Extraordinário n.º 466.343-1/SP, cujo relator foi o Ministro Cezar Peluso:

Em conclusão, entendo que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Ameri-

13 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos huma-

cana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), ambos no anos de 1992, não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. o status normativo supralegal dos tratados de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infracons-

titucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posteriori ao ato de ratificação14.

Dispõe o item “e” do Preâmbulo da Convenção:

e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Ficou evidenciado que o conceito de pessoa com deficiência no âmbito internacional é aberto e em perene evolução. Já a regulamentação interna atual possui definição taxativa das deficiências, sem considerar as barreiras enfrenta- das por essas pessoas em vista do contexto social, econômico e cultural no qual estão inseridas. Portanto, se pode inferir que haveria uma possível antinomia entre a Convenção e a legislação interna.

As divergências a respeito de quais deficiências habilitariam o candidato a concorrer às vagas reservadas têm ecoado na jurisprudência. Sobre o tema o Superior Tribunal de Justiça editou dois enunciados consubstanciados nas súmulas 377 e 55215.

Recentemente o órgão especial do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que a surdez unilateral qualifica a pessoa como deficiente para fins de reserva de vagas, diversamente do posicionamento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça. Trata-se do Recurso Ordinário n.º TST-RO-54-83.2015.5.12.0000, cuja ementa é a seguinte:

14 Recurso Extraordinário n.º 466.343-1/SP. PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de

proteção dos direitos humanos: jurisprudência do STF, vol. 12, pp. 05-09, 2008. Disponí-

vel em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Arti- gos/00000034-001_FlaviaPioveasn.pdf>. Acessado em 13 de outubro de 2017.

15 A súmula 377 estabelece que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em

concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”, ao passo que a súmula 552 dispõe que “o portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos”.

RECURSO ORDINÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONCURSO PÚBLICO – PERDA AUDITIVA UNILATERAL – INCLUSÃO NA LISTA DE CANDIDATOS COM DEFICIÊNCIA – DIREITO LÍQUIDO E CERTO A jurisprudência desta Eg. Corte – interpretando de forma harmônica as disposições do Decreto n.º 3.298/99, em conjunto com as disposições legais e constitucionais pertinentes, bem como com o disposto na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – tem reconhecido o direito de os candidatos com perda auditiva unilateral concorrerem, em concurso público, às vagas destinadas às pessoas

com deficiência. Precedentes. Recurso Ordinário a que se dá provimento16.

Na superação das antinomias entre a Convenção e a legislação interna deverá ser verificado se esta é insuficiente para se alcançar a máxima efetivi- dade daquela. Se assim o for, deverá ser conferida interpretação que corrija a deficiência na regulamentação interna, aplicando-se o princípio da proporcio- nalidade, tendo como finalidade conferir a máxima efetividade à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. No que tange ao objeto deste estudo, quando determinada deficiência não estiver elencada na legislação interna para fins de habilitação no concurso para o benefício de reserva de vagas, deverá ser verificado se esta exclusão é ou não proporcional (proibição da proteção deficiente), bem como se atende aos valores e princí- pios da Convenção (princípio da máxima efetividade)17.

5. CONCLUSÕES

Esse descompasso entre a atual legislação interna e a Convenção leva alguns autores a afirmar que o Decreto n.º 3.298/1999 permanece vigente e válido, mas tão somente para promover a inclusão, ao passo que, naquilo que conflitar com a Convenção deverá ceder para que a definição mais ampla da norma internacional prevaleça.

Nesse sentido se manifesta Luiz Alberto David Araújo:

16 ARANHA, Maria Salete Fábio. “Paradigmas da relação da sociedade com as pessoas com

deficiência”. Revista do Ministério Público do Trabalho, vol 11, n.º 21, pp. 160-173, 2001, p. 167-168.

17 CARVALHO RAMOS, André de. “Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de

convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos”. Revista da Faculdade

... a legislação interna deve ser aplicada quando for favorável à pessoa com defi- ciência. Se a pessoa estiver encaixada no conceito, por exemplo, do decreto regu- lamentar que disciplinava a matéria até então, pode pedir o seu enquadramento, porque o decreto poderia servir de instrumento para a Administração Pública. Mas o decreto não pode ter o condão de redefinir o que a Convenção definiu. Se ela não fixou causas, não pode o decreto fazê-lo. Imaginemos alguém que seja pes- soa com deficiência, mas não se encaixe nas causas mencionadas (que são exausti- vas) do decreto regulamentar que vem sendo aplicado. Ora, o conceito maior da Convenção deve prevalecer. O decreto continua no sistema apenas e tão somente para permitir que a Administração Pública reconheça, com mais facilidade, que é pessoa com deficiência. No entanto, se o conceito do decreto for restritivo e excluir determinada situação do conceito da Convenção, é evidente que deve este ser aplicado. (...) O decreto é válido na medida em que não serve de instrumento de restrição. Havendo clareza na definição, inegável que o decreto pode servir de base para as decisões da administração. A Administração Pública necessita (e esta seria a função do decreto regulamentar) de instrumento minucioso para a aplicação, com índices que permitam ao perito pela inclusão ou não da pessoa. São diversos aspectos, quer para a participação em concursos públicos ou rece- bimento do benefício assistencial, e tais direitos podem ser definidos por decreto regulamentar. No entanto, o decreto traz conceitos que são corretos e não per- mitem discussão. Nesse caso, o decreto se aplica. Havendo qualquer dúvida que leve à exclusão do indivíduo no conceito em que iria beneficiá-lo (por exemplo, pleito de vaga reservada, artigo 37, inciso VIII), o intérprete deve buscar a sua conceituação na Convenção. Assim, o decreto continua a ser utilizado, desde que não cause prejuízo para a pessoa com deficiência. Os motivos, certamente, não serão apenas aqueles elencados no decreto. Podem existir situações não contidas no decreto e que estão perfeitamente contemplados pelo conceito da Convenção. Por isso, a Administração Pública deve estar atenta para aplicar o decreto como

instrumento de inclusão, não de exclusão18.

Conclui-se que os tratados de direitos humanos impactam diretamente o ordenamento jurídico pátrio, uma vez que, sejam equivalentes às emendas constitucionais, sejam supralegais, estão acima da legislação infraconstitucio- nal, servindo, doravante, de parâmetro de verificação de compatibilidade das leis, utilizando-se de mecanismo denominado controle de convencionalidade,

18 ARAUJO, Luiz Alberto David. “A proteção constitucional das pessoas portadoras de defi-

ciência”. Série Legislação em direitos humanos. Pessoas portadora de deficiência. Corde, 2003, pp. 38-40.

ressaltando, ainda, o necessário e imprescindível diálogo das fontes, conforme será detalhado19.

Buscar a harmonização da legislação interna com a Convenção é de salutar importância, uma vez que se considerasse revogadas as disposições do Decreto n.º 3.298/1999 a Administração Pública estaria sem respaldo regulatório, o que comprometeria a segurança das relações jurídico-administrativas. Portanto, enquanto não surja nova regulamentação com base nas diretrizes fixadas no Estatuto da Pessoa com Deficiência, devem prevalecer as definições do Decreto n.º 3.298/1999 naquilo que não restringir ou conflitar com a Convenção.

Deve-se aplicar o diálogo das fontes20, tema que será detalhado linhas

abaixo. Com efeito, a Convenção traz cláusula de diálogo (Artigo 4, item 4), assim como o Estatuto (artigo 121, parágrafo único).

Assim, deverá ser aplicada a norma mais favorável à pessoa com deficiên- cia, privilegiando o diálogo entre os diversos instrumentos normativos. Não se permite, peremptoriamente, que se condicione a interpretação da Convenção com base na lei e muito menos em decreto regulamentar, o que representaria desvirtuamento da finalidade da proteção.

Sem embargo, é importante frisar que a intervenção judicial deverá ser cautelosa e se embasar em prova pericial realizada nos moldes do Estatuto da Pessoa com Deficiência, ou seja, que busque aferir a deficiência por critério biopsicossocial e seja realizada sempre que possível por equipe multiprofissio- nal e interdisciplinar, de forma a conferir racionalidade à intervenção judicial. Dessa forma, evita-se que a intervenção judicial ao invés de atender a igual- dade material, promova mais desigualdade, quando se permitir o benefício de reserva de vagas a quem não se enquadra como pessoa com deficiência ou deixe de conferi-lo ao candidato que efetivamente necessita.

19 DHANDA, Amita. “Construindo um novo léxico dos direitos humanos: Convenção sobre

os direitos das pessoas com deficiências”. Sur, Rev. int. direitos humanos, v. 8, n. 5, pp. 49- 52, 2008.

5. REFERÊNCIAS

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AMORIM, Celso. “O Brasil e os direitos humanos: em busca de uma agenda positiva”. Política Externa, vol. 18, n.º 2, p. 67-75, 2009.

ARANHA, Maria Salete Fábio. “Paradigmas da relação da sociedade com as pessoas com deficiência”. Revista do Ministério Público do Trabalho, vol. 11, n.º 21, p. 160-173, 2001.

ARAUJO, Luiz Alberto David. “A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência”. In: Série Legislação em Direitos Humanos – Pessoas portadora de defi-

ciência. Corde, 2003.

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COMPARATO, FABI0 KONDER. A Afirmação Histórica Dos Direitos Humanos. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de Coimbra.

CARVALHO RAMOS, André de. “Supremo Tribunal Federal brasileiro e o con- trole de convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos”. Revista

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DHANDA, Amita. “Construindo um novo léxico dos direitos humanos: Con- venção sobre os direitos das pessoas com deficiências”. In: Sur, Rev. int. direitos huma-

nos, vol. 8, n.º 5, pp. 49-52, 2008.

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PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: juris-

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TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos

IGUALDADE DE ACESSO À SAÚDE. DIREITOS REPRODUTIVOS

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