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RESTRIÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS POR OMISSÃO NORMATIVA

Pobreza e Exclusão Social

RENDA BÁSICA DE CIDADANIA: A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA LEI N.º 10.835/2004 SOB A PERSPECTIVA DO CONTROLE DE

3. RESTRIÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS POR OMISSÃO NORMATIVA

A omissão do Poder Executivo em regulamentar a Lei n.º 10.835/2004, em termos jurídicos, não é outra coisa senão uma restrição externa ao direito à RBC. Mas o fato de ser uma restrição, sozinho, não torna a conduta do Estado inconstitucional. Isto porque nem mesmo um direito fundamental é absoluto. Sob a perspectiva da chamada teoria externa das restrições aos direitos fundamentais, a restrição pode ser ato individual ou geral que incide sobre o bem de proteção do direito fundamental. Desta forma, há uma separação clara entre conteúdo e limites do direito fundamental. A restrição seria uma ação estatal que afeta o bem protegido pelo direito fundamental, cujos limite e extensão foram apurados por meio da interpretação jurídica da norma jus- fundamental.87

Assim, uma eventual regulamentação da lei, que estabeleça os critérios da gradual implementação, por si só, será um limite ao bem de proteção do direito, de modo que, em tese, há tantos possíveis limites quanto o número de possíveis condutas do Poder Executivo quando da regulamentação.

Recapitulando alguns elementos deste trabalho, até aqui foram expostas, pelo menos, três considerações relevantes. A primeira é que há no ordenamento jurídico brasileiro vigente um direito à RBC. A segunda, que este direito possui seu conteúdo moldado pela Constituição e pela Lei n.º 10.835/2014. A ter- ceira, que o bem protegido por este conteúdo pode sofrer limitações externas a partir da conduta do Poder Executivo.

Nesse ponto, faz-se necessário enfrentar uma questão crucial para compre- ender as considerações a que este trabalho se propõe: a abrangência da liber- dade de conduta do Poder Executivo, ativa ou omissiva, no que diz respeito à regulamentação da RBC.

De início, cabe destacar que esta liberdade de conduta do Poder Executivo não é plena. Isto porque, conforme exposto, os limites são externos, e não internos ao direito fundamental. Ao Poder Executivo não caberá definir o conteúdo do direito, mas apenas colocar os limites que o conteúdo já definido pela Constituição e pela Lei aceitem.

87 NOVAIS, Jorge Reis, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela

Assim, os limites, a partir das justificativas apresentadas para eles, devem ter sua legitimidade controlada, inclusive pelo Poder Judiciário, se deman- dado, a partir dos parâmetros legais e constitucionais que delimitam o conte- údo o direito.

Agora, uma vez que os limites não são ilimitados, resta saber quais seriam os limites aos limites. A resposta, em termos jurídicos, é dada por uma teoria que leva, exatamente, o nome de teoria dos limites dos limites, que se expressa pela vedação ao excesso e pela proibição da insuficiência, quer se trate de res- trição à dimensão negativa ou positiva do direito fundamental em questão, respectivamente.

De acordo com a teoria proposta por Claus-Wilhelm Canaris, no que se refere aos direitos fundamentais há uma ampla gama de conformação ao legis- lador entre o excesso e a insuficiência. Canaris enfatiza que as exigências da vedação de insuficiência não são as mesmas analisadas para a proibição do excesso, de maneira que não é admissível o mesmo tratamento, notadamente porque não se está diante da análise de uma ação específica em relação a outras possíveis, mas sim de uma omissão, total ou parcial, perante uma multiplici- dade de ações que poderiam ter sido realizadas e não foram. Portanto, em se tratando de uma ação ou de uma omissão, o ônus de fundamentação imposto ao Estado é diferente.88

No caso de uma omissão, tal qual a do Poder Executivo em regulamentar a Lei n. 10.835/2014, a teoria dos limites dos limites se expressa por meio da proibição da prestação insuficiente. Em termos gerais, dentre as condu- tas permitidas ao Estado como limite ao direito fundamental à RBC, não se encontram aquelas que impliquem em prestações insuficientes, sejam estas prestações normativas ou materiais.

Reis Novais, no mesmo sentido de Canaris,89 afirma ser frágil e inope-

rante o controle de constitucionalidade da omissão estatal a partir de um princípio constitucional de proibição do déficit obtido com a mera análise reversa dos subprincípios da proibição do excesso. Enquanto a análise da proibição do excesso em restrições da dimensão negativa do direito incide

88 CANARIS, Claus-Wilhelm, Direitos Fundamentais E Direito Privado, Coimbra: Almedina,

2016, pp. 65–68.

sobre o ato praticado, em se tratando da dimensão positiva do direito, a aná- lise de constitucionalidade da omissão do Estado deve recair sobre a norma, e não sobre o não-ato.90

Dessa forma Reis Novais propõe a subdivisão do alcance jurídico do princí- pio da proibição do déficit em dois subprincípios: o da realização do mínimo e o da razoabilidade. O primeiro estaria vinculado ao conteúdo mínimo dos direi- tos ou dos deveres estatais correlatos, enquanto o segundo estaria relacionado à identificação da não razoabilidade da situação objetiva e subjetiva à que os potenciais destinatários da conduta omitida pelo Estado estariam submetidos.91

Em outras palavras, o que separa a prestação suficiente da prestação insuficiente é o atendimento, ou não, ao conteúdo mínimo do direito e a razoabilidade.

É sob esta perspectiva que o mínimo existencial, enquanto mínimo neces- sário ao respeito da dignidade da pessoa humana, um dos princípios estrutu- rantes do Estado Democrático de Direito, é considerado um limite à omissão do Estado restritiva de direitos fundamentais.

Então, para o fim específico que este trabalho se propõe a analisar, tem-se que a dignidade da pessoa humana, protegida pelo mínimo existencial, e a cidadania são limites ao limite imposto ao fundamental à RBC, tal como estabelecido na Lei n.º 10.835/2004.

A omissão do Poder Executivo em cumprir o seu dever de prestação, em princípio normativa e posteriormente material, no que tange à regulamen- tação da Lei n.º 10.835/2004 e implantação da RBC, configura conduta inconstitucional do Estado, desde 2005 até a data de conclusão deste estudo.

Tal conduta não se trata apenas de restrição jurídica, mas violação incons- titucional ao conteúdo do direito ao RBC, ao qual faz jus todo cidadão bra- sileiro e estrangeiro residente no Brasil há pelo menos cinco anos, ao direito ao mínimo existencial e aos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, estes dois fundamentos do Estado Democrático de Direito.

90 NOVAIS, Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais,

pp. 385–388.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à RBC não se confunde com o direito ao mínimo existencial, mas é inegavelmente um de seus componentes, na medida em que configura política pública constitucional essencial.

É também importante ressaltar que a ideia do mínimo existencial não impõe uma estrutura minimalista de direitos fundamentais. Isto porque o mínimo existencial é um piso, e não um teto, a ser realizado pelo Estado.

Neste sentido, a mesma argumentação utilizada para a defesa de diversos direitos fundamentais pautada na proteção ao mínimo existencial, conside- rando inconstitucional toda conduta estatal, omissa ou comissiva, que viole os direitos componentes do núcleo da dignidade da pessoa humana, vale igual- mente para a defesa jurídica do argumento de que a não regulamentação da lei da RBC é uma omissão claramente inconstitucional.

Mesmo a omissão estatal com fundamento na chamada “reserva do possí- vel” só pode ser aceita como um argumento para limite ao direito ao RBC se tratar-se de uma escassez de recursos natural, que é aquela derivada da inexis- tência fática de recursos, e não artificial, que é aquela decorrente das escolhas alocativas de recursos feita pelos poderes políticos, nem sempre de acordo com as prioridades constitucionais. 92

Mesmo que a RBC seja direito de todos, e não apenas dos mais pobres, a exigibilidade da prestação normativa imposta pela Lei n.º 10.835/2004 ao Poder Executivo encontra guarida no mínimo existencial na medida em que a estrutura a ser implantada por ela está largamente alinhada com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Destaque-se, em tempo, a diferença entre titularidade de direito e capa- cidade postulatória, que necessariamente deve ser considerada na análise das medidas judiciais cabíveis para a superação da omissão governamental, tema este que foge ao escopo específico deste trabalho e merece detida análise em estudos posteriores.

92 Para análise específica sobre as formas de escassez, cf. AMARAL, Gustavo, Direito, escassez e

escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas,

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