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VIOLÊNCIA SIMBÓLICA ATRAVÉS DA LINGUAGEM, O EXEM PLO DE UMA FICHA DE TRABALHO DADA A ALUNOS DO 8.º

Pobreza e Exclusão Social

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA ATRAVÉS DA LINGUAGEM, O EXEM PLO DE UMA FICHA DE TRABALHO DADA A ALUNOS DO 8.º

ANO DE ESCOLARIDADE DO ENSINO VOCACIONAL

Para concretizar um pouco mais como e porque é que determinadas carac- terísticas assumidas pela cultura escolar podem agudizar as desvantagens dos filhos das classes populares, analisamos, a título de exemplo, uma ficha de tra- balho proposta a uma turma do 8.º ano de escolaridade da Escola Secundária António Sérgio, na disciplina de Português do curso vocacional. Segundo as palavras da Professora da disciplina, este foi um dos exercícios que mais difi- culdades e resistências suscitou nos alunos, sendo essa uma das razões por que o seleccionamos para análise.

Como se pode constatar no enunciado da prova que anexamos, o exercício solicita aos alunos que reescrevam/recriem por palavras suas o poema lírico de Luís Vaz de Camões Amor é Fogo que Arde sem de Ver, respeitando a sua estru- tura formal. Nada mais difícil atendendo ao largo espectro de significados que o poema camoniano encerra e ao elevado grau de codificação da linguagem que os expressa. O que significa que para recriá-lo o aluno tem de ser capaz de descodificar cada uma das estrofes, atribuindo-lhes o devido sentido. Processo exigente que depende não só da posse de um conjunto de representações con- ceptuais e de um imginário acerca do tema – representações e imaginário tanto ou mais significativas e presentes quanto a experiência de vida amorosa que as podem sustentar – mas também de um conjunto de recursos linguísticos que permitam objectivá-los, tornando-os inteligíveis para o próprio e para os outros.

Tratando-se de um exercício para alunos do 8.º ano de um curso voca- cional, portanto alunos com idades entre os 13 e os 18 anos, na pior das hipóteses, podemos questionar a sua adequação em termos linguísticos e conceptuais a adolescentes que estarão ainda a estruturar e/ou a consolidar o

método lógico e abstracto de pensar, de acordo com a classificação de Piaget (1974) dos estádios de desenvolvimento cognitivo. Mas este tipo de exercícios de avaliação afigura-se ainda mais desajustado por estarmos perante alunos do ensino vocacional, uma via de ensino actulmente extinta mas cujo propósito era oferecer uma formação alternativa a jovens cujo trajecto escolar foi/é mar- cado pelo insucesso: “... jovens que apresentem pelo menos uma retenção no seu percurso escolar ou que se encontrem já identificados como estando em risco imediato de abandono escolar e que pretendam reorientar o seu percurso escolar para uma oferta formativa de carácter mais prático”121.

Efectivamente, estamos face a indivíduos que enveredaram por esta via de ensino em virtude de terem sofrido retenções várias e que, por não terem cumprido a escolaridade obrigatória e/ou por não terem ainda completado os 18 anos, idade a partir da qual podem abandonar a escola, vêem-se obrigados a nela permanecer, embora contra-vontade. Para um tal grupo de jovens, a quem a cultura escolar pouco diz e a literária ainda menos, será certamente difícil decifrar os significados contidos no soneto de Luís Vaz de Camões, de tão hermeticamente fechados que eles estão numa linguagem metafórica muito distante dos objectos, acontecimentos ou situações reais que preen- chem o seu quotidiano.

Que adolescente estará capaz de descodificar as associações que o autor faz entre amor e dor, entre amor e prisão? Que adolescente estará capaz de compreender o sentido das antíteses a que o autor recorre para explicar um conceito tão complexo e de facto tão ambivalente como o amor?

E a que necessidade de conhecimento ou de aperfeiçoamento operativo poderá responder este desafio de recriar o poema camoniano?

É certo que a Professora procurou traduzir para os alunos o sentido de cada estrofe do soneto em análise, mas não o fez a partir dos princípios da aprendi- zagem significativa (Garanderie, 1989; Morissette e Gingras, 1990; Perrenoud, 2000), de modo a desencadear neles a necessária motivação para aprenderem a reflectir sobre um tal sentimento e os estados de espírito contraditórios que ele desencadeia. Se o tivesse feito, isto é, se se tivesse preocupado em partir das expe- riências e dos saberes dos alunos sobre o tema, conduzindo-os a descobrir (cons- cencializar), por induções e deduções lógicas, o significado deste sentimento e, depois, das palavras de Camões, com certeza que não teria enfrentado tantas resistências e dificuldades na realização do exercício.

Mesmo assim, considerando o grau de dificuldade do exercício proposto, podemos admitir, com alguma ironia, que a Professora em causa elaborou o teste cogitando que a resolvê-lo estariam réplicas suas. Se o que esteve na origem de tão exigente exercício não foi a sua dificuldade de se distanciar de um saber e também de uma experiência de vida que possivelmente são os que a caracterizam a si e aos seus pares, então teremos de admitir, com maior radi- calismo, que a razão para tal feito foi mesmo o seu total descrédito acerca das capacidades de aprendizagem dos jovens que frequentam as suas aulas.

As ferramentas intelectuais são um recurso fundamental para a vida, pois facultam-nos a possibilidade de entender, antecipar, avaliar e enfrentar a rea- lidade. Todavia, para que não surjam como uma espécie de pastilha amarga que se tem inexplicavelmente de degustar, de que jamais lembraremos o sabor, é necessário que elas sejam dotadas de sentido, e isto só acontece quando se estabelecem pontes significantes entre os quadros conceptuais já apropriados e os novos que a escola propõe. Ora, uma dessas pontes é precisamente a lin- guagem que tem a propriedade de objectivar nos conceitos em que se traduz os significados e a intencionalidade subjectiva dos sujeitos (Berger e Luckmann, 1994). Portanto, para que seja inteligível, a linguagem tem de ter significado subjectivo para todos os estudantes. O que não acontece, de facto, com a lin- guagem sublime mas difícil usada por Camões no seu soneto. Para o grupo de alunos de que falamos não é porque não dominam o pensamento formal que as dificuldades de descodificação surgem. É antes porque esse pensamento estará muito provavelmente organizado e treinado para estabelecer relações, definir probabilidades, construir hipóteses a partir e em função de realidades concretas e de situações práticas que não as abordadas no poema de Luís Vaz de Camões.

Mas, o conteúdo da ficha de trabalho em análise é ainda elucidativo das dificuldades que esta Professora de Português revela em compreender as res- trições culturais que caracterizam os universos de existência dos alunos desta turma, jovens oriundos das fracções mais desmunidas das classes populares. Se para todos nós é muito pouco verosímil falarmos do que não (re)conhecemos, para jovens com esta origem, que praticamente nunca saíram do bairro onde vivem, que convivem com outros culturalmente tão ou mais empobrecidos e que preenchem o seu quotidiano a ouvir e a reproduzir escárnio e mal-dizer sobre pessoas próximas e concretas, sê-lo-á muito menos. Conjecturar explica- ções que fujam das vicissitudes que a vida contém pressupõe, igualmente, que haja uma interioridade, um imaginário desenvolvido na base de representações que se comunicam e que se aprendem comunicando através da linguagem. Ora,

a questão central é que para este tipo de jovens são muito escassas e restritas as experiências que possam alimentar essas representações acerca da realidade, quer sejam retiradas da leitura, do ouvir e contar histórias ou da possibilidade de as invocar na base dos lugares e das pessoas com que interagem.

O trabalho de Basil Bernstein (1975), no sentido de demonstrar quanto o desenvolvimento da linguagem depende do sistema de relações sociais que os indivíduos experimentam, fornece um bom suporte analítico para que possa- mos compreender porque é que para os jovens que pertencem às classes popu- lares a linguagem não é um instrumento de comunicação valorizado e depu- rado como o é para os grupos sociais que se posicionam nos pontos médios e de topo da hierarquia social.

Tendo por base estudos empíricos com crianças das fracções das classes médias e trabalhadoras, este autor pôs em evidência a relação existente entre origem social e características do contexto de socialização e aprendizagem de um determinado tipo de código linguístico. Definiu, então, dois tipos de códigos sócio-linguísticos, «código elaborado» e «código restrito», e demonstrou como a tendência para as crianças da classe média dominarem ambos os códigos, bem como as situações diferenciadas da sua utilização, contradizia a inclinação das dos meios populares para adquirirem unicamente o código restrito.

As condições sociais e os padrões que estruturam as relações familiares, expressos, entre outros, no tipo de comunicação utilizado no seio da família, na assunção dos papéis familiares e no tipo de autoridade, foram sublinha- dos por Bernstein para explicar como se processa a apropriação de ambos os códigos. Assim, enquanto que nas famílias das classes médias a verbaliza- ção dos comportamentos, dos desejos/aspirações e dos sentimentos é ampla- mente estimulada, as ordens e as regras tendem a ser discutidas, negociadas e adaptadas à pessoa (filhos), nas famílias das classes populares o «aparelho de conversa»122 que funda todo o processo de socialização tende a ser bas-

tante mais restrito e menos importante na definição dos papéis sociais, das regras e do controlo social. Digamos que há menos conversa e mais acção.

122 Peter Berger e Thomas Luckmann (1994) utilizam esta designação para mostrar a impor-

tância da conversação para a criança em processo de socialização, ou seja, em processo de apreensão do mundo: «Pode-se considerar a vida quotidiana do indivíduo em termos de fun- cionamento de um aparelho de conversa que continuamente mantém, modifica e reconstrói a sua realidade subjectiva». É através da conversa que os «outros significativos» lhe apresentam o seu mundo e o conservam, isto é, lhe apresentam um mundo dotado dos sentidos inerente à posição social que os pais, ou os seus substitutos, ocupam na hierarquia social.

O sistema de comunicação tende pois a ser mais restrito e fechado, mais determinado pelo estatuto dos elementos que constituem a família e, por- tanto, menos orientado para a pessoa. São os controlos imperativos, ineren- tes ao papel desempenhado pelas entidades parentais, que justificam a necessi- dade de cumprir as regras e não os argumentos dados no sentido de apelar ao seu cumprimento, na base do seu valor moral para os indivíduos ou para o colectivo. Traduzindo a posição da família na divisão do trabalho, o seu sistema de valores e os seus recursos culturais, estas diferenças estruturais nos modelos de socialização configuram, também, diferenças substantivas nos recursos linguísticos.

Assim, enquanto que a linguagem é desde cedo perspectivada pelas crian- ças das classes médias como o modo privilegiado da actividade perceptiva, na relação com os outros e com o mundo na sua generalidade, para as crianças das classes populares a expressão linguística é mais uma extensão, e não a tra- dução por excelência da sua relação e acção sobre o mundo. O código restrito de que se apropriam, muito mais circunstanciado em função das situações concretas vivenciadas e partilhadas, está, por isso, estreitamente correlacio- nado e dependente do real. É mais pobre em vocabulário e na estruturação sintáctica e menos capaz de ser extrapolado para traduzir situações possíveis, independentes do contexto, do que o código elaborado que é a herança cultu- ral mais distintiva das classes médias e altas.

Como podem jovens com um código linguístico marcado por uma cons- trução frásica limitada, quando não inexistente, escassamente restrita à descri- ção da realidade do aqui e agora, lançar-se na descodificação de uma lingua- gem metafórica que apela ao domínio polissémico, não já de palavras mas de estrofes e do soneto na sua globalidade?

Se os educadores compreendessem que o modo como falam e como escre- vem os seus alunos não é independente de um conjunto objectivo de condi- ções sociais, estariam com certeza em melhores condições para perceber, em primeiro lugar, que o facto de nem todos se expressarem da mesma maneira não resulta de nenhuma marca pessoal indelével, mas sim de um sistema de oportunidades culturalmente induzida. Em segundo, estariam também em melhores condições para assumir a sua quota-parte de responsabilidade na superação das barreiras de significação que se podem opor à comunicação, em virtude da existência de «falas» diferentes.

BIBLIOGRAFIA

BERGER, P., LUCKMANN, T., A construção social da realidade, Petrópolis, Vozes, 1994.

BERNSTEIN, B., Langage et classes sociales, Paris, Minuit, 1975.

BOURDIEU, P., PASSERON, J. C., La reproduction, Paris, Minuit, 1970. BOURDIEU, P., La distinction. Critique sociale du jugement, Paris, Minuit, 1979. DURKHEIM, E. Sociologia, educação e moral, Porto, Rés-Editora, 1984.

GARANDERIE, Antoine, Pedagogia dos processos de aprendizagem, Lisboa, Ed. Asa, 1989.

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PIAGET, J., Le jugement moral chez l’enfant, Paris, PUF, 1932. PIAGET, J., Réussir et comprendre, Paris, PUF, 1974.

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