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O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA E A INTERCULTU RALIDADE NO SISTEMA EDUCATIVO PORTUGUÊS: ANÁ-

Pobreza e Exclusão Social

BREVE REFLEXÃO EM TORNO DE UM EXERCÍCIO MAIS PLURA LISTA DO DIREITO À EDUCAÇÃO

3. O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA E A INTERCULTU RALIDADE NO SISTEMA EDUCATIVO PORTUGUÊS: ANÁ-

LISE CRÍTICA

Apesar da previsão legislativa referida, não existe, ainda hoje, no sistema de ensino regular, uma política efetiva e estrutural de adequação das escolas à cultura e ao quotidiano dos alunos, pelo contrário, salvo algumas medidas periféricas, pontuais, e isoladas, oferece-se uma estrutura rígida e um conjunto de saberes unívocos para todos, o que não contribui para promover uma maior igualdade social e de oportunidades110. De facto, nas escolas portuguesas e na

formação dos seus professores, apesar da implementação de algumas medidas

110 Em Stephen Ronald Stoer e Luiza Cortesão, Levantando a Pedra: Da Pedagogia Inter-Mul-

ticultural Às Políticas Educativas Numa Época de Transnacionalização (Porto: Afrontamento,

1999) faz-se referência à falta adaptação dos currículos, conteúdos e estruturas da escola, apesar da massificação do ensino nos finais do séc. XX, a que acresceu a diversidade social e cultural que a escola recebeu nessa massificação.

e programas111, a educação intercultural112 e o reconhecimento da diferença

existente têm assumido um carácter disperso, pontual e, na maioria dos casos, problemático e não prospetivo, constituindo uma realidade apenas em algu- mas das (diversas) escolas com populações étnica, social e culturalmente dis- crepantes do grupo maioritário e que apresentam elevadas taxas de insucesso escolar113. De facto, no sistema educativo português “nunca existiu um currí-

culo ou uma atitude generalizada de raiz intercultural, apenas condescendên- cias pontuais e espalhadas sem visibilidade”, que não permitem “a construção da educação intercultural [, a qual só] será possível quando todas as culturas forem consideradas oficialmente escolares”114.

111 Entre os quais vide Despacho Normativo do Ministério da Educação (ME), n.º 63/91;

Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/93; Despacho n.º 170/93 do ME; Despa- cho Normativo n.º 5/2001 do ME; e, mais recentemente, o incentivo proporcionado pelo distintivo ‘Selo Escola Intercultural’ (http://www.dge.mec.pt/selo-escola-intercultural) e o Programa REEI – Rede de Escolas para a Educação Intercultural (http://www.dge.mec.pt/ rede-de-escolas-para-educacao-intercultural).

112 Entendemos ressalvar nesta nota que a Educação Intercultural não se caracteriza apenas

como um projeto educativo que pressupõe a aproximação aos seus alunos e a valorização dos elementos das diferentes culturas em presença na sala de aula e na sociedade [Jean- Pierre Liégeois; trad. Fernanda Barão e Isabel Fernandes, Minoria E Escolarização: O Rumo

Cigano. (Lisboa: Centre de Recherches Tsiganes; Secretariado Entreculturas, 2001), 251.].

Pelo contrário, caracteriza-se, para além disso, como um método pedagógico de encontro, troca e aperfeiçoamento de relações com base em diferentes culturas e saberes. Mais do que tudo, um paradigma de formação, do sistema educativo, não uma educação de minorias, mas de todos, no qual se desenvolvem capacidades de compreensão e comunicação entre culturas diferentes” [Luísa Neto, “Constituição E Educação,” Revista Da Faculdade de Di- reito Da Universidade Do Porto IV (2007): 282]. Um método em que os professores não se devem especializar nas culturas ou fechar os alunos no seu próprio mundo, mas adotar uma pedagogia de atitudes e comportamentos que combata estereótipos e formas de discrimi- nação enraizadas. Por tudo quando se disse, cf. Antonio Perotti, Apologia Do Intercultural (Lisboa: Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural – Ministério da Educação, 1997), 51–57.

113 Cf. CARDOSO, Carlos, “A Formação de Professores Para a Diversidade,” in Que Sorte,

Ciganos Na Nossa Escola! (Lisboa: Centre de recherches tsiganes – Secretariado Entrecul-

turas, 2001), 85–86.

114 CASA-NOVA, Maria José, “(I) Migrantes, Diversidades E Desigualdades No Sistema

Educativo Português: Balanço E Perspectivas,” Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas Em

No fundo, a adaptação escolar à cultura dos alunos e ao seu quotidiano é uma realidade bem mais significativa em modalidades fora do ensino regular, como na preparação de planos curriculares alternativos, criados ao abrigo do Despacho normativo n.º 1/2006 do Ministério da Educação. No âmbito des- tes Percursos, assim como noutros programas similares115, reconhece-se que

a escola é “um espaço plural, do ponto de vista social e cultural, em que as motivações, os interesses e as capacidades de aprendizagem dos alunos são muito diferenciados”. Por conseguinte, entende-se que há uma necessidade de responder ao insucesso escolar e aos problemas de integração na comunidade educativa através da flexibilização de dispositivos de organização e gestão do currículo e pelo inter-relacionamento entre “o saber e o saber fazer, a teoria e a prática, a cultura escolar e a cultura do quotidiano”, tal como se prevê na Lei de Bases do Sistema Educativo.

Porém, apesar dos propósitos enunciados, tal como refere Casa-Nova116,

os percursos alternativos ao sistema regular caracterizam-se pela “reduzida exigência académica face ao currículo-padrão”, constituindo-se como “ofer- tas educativas de segunda oportunidade”117, que respondem ao falhanço do

aluno, e não do sistema, face ao currículo-padrão. Constituem-se também como “oportunidades de segunda”, na medida em que, por comparação com o currículo-padrão, apresentam conteúdos e métodos de avaliação menos exi- gentes e socialmente hierarquizantes. Um currículo que não garante “o acesso dos alunos ao saber bem remunerado, ao conhecimento que proporciona pres- tígio e poder na sociedade”118.

115 Constituídos ao abrigo de diferentes normativos, o Programa Integrado de Educação e For-

mação (regulado pelo Despacho conjunto 948/2003) e o Programa dos Territórios Educati- vos de Intervenção Prioritária (regulado pelo Despacho Normativo n.º 20/2012) pressupõe objetivos semelhantes ao modelo dos PCA, ainda que a finalidade e realidade subjacente a estes seja distinta.

116 CASA-NOVA, Maria José, “Educação Para O Quê?... A Integração Escolar de Crianças

Ciganas,” Público, October 5, 2014, https://www.publico.pt/sociedade/noticia/educacao- para-o-que-a-integracao-escolar-de-criancas-ciganas-1671847 [consultado a 20-11-2017].

117 CASA-NOVA, Maria José, “Tempos E Lugares Dos Ciganos Na Educação Escolar Públi-

ca,” in Minorias, ed. Maria José Casa-Nova e Paula Palmeira (Lisboa: Ministério do Trab- alho e da Solidariedade Social; Programa para Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PETI), 2008), 48.

Como tal, o reconhecimento da necessidade de adaptação, diferenciação e inter-relacionamento de saberes e culturas não poderá, de modo algum, tradu- zir-se apenas (ou essencialmente) na criação de turmas com currículos alterna- tivos e de exigência mais reduzida. Neste sentido, não deverá ser previsto ape- nas como forma de resolução de problemas de insucesso escolar, dificuldades de integração, risco de marginalização, exclusão social ou abandono escolar, os quais são também, entre múltiplos fatores, resultado da falta de adaptação escolar de forma estrutural e no ensino regular.

Pelo contrário, a resposta à diversidade de origens, interesses e capacidades dos alunos deverá ser geral e global, mais efetiva no ensino regular e terá de deixar de ser essencialmente remediativa – pois muitas vezes não remedeia –, para assumir um caráter de prevenção e de prospeção, a fim de garantir uma efetiva igualdade social.

No sentido destes propósitos e procurando, de algum modo, quebrar com alguns contornos do sistema vigente, entendemos destacar o recentemente aprovado Despacho n.º 5908/2017, de 5 de julho, diploma que autoriza, em regime de experiência pedagógica, a implementação do projeto de autonomia e flexibilidade curricular dos ensinos básico e secundário para o ano escolar de 2017-2018.

No texto do referido Despacho, a educação é entendida como um meio privilegiado de promoção da justiça social e da igualdade de oportunidades. Nesse sentido, sublinha-se que “a diferenciação pedagógica é um dos principais instrumentos para garantir melhores aprendizagens”, devendo ser garantidas às escolas as condições que lhes permitam promover melhores aprendizagens em contextos específicos e perante as necessidades de diferentes alunos. Tam- bém por essa razão, prevê-se que a conceção, operacionalização e avaliação das aprendizagens curriculares deva orientar-se, entre outros princípios, pela “garantia de uma escola inclusiva, cuja diversidade, flexibilidade, inovação e personalização respondem à heterogeneidade dos alunos, eliminando obstácu- los de acesso ao currículo e às aprendizagens, e adequando estas ao perfil dos alunos” [art.º 3 c)]. Para que tal se realize, e pressupondo a maximização do sucesso escolar e da igualdade de oportunidades, reconhece-se ainda a neces- sidade de promover “práticas que permitam antecipar e prevenir o insucesso e o abandono escolar, através de uma aposta na diferenciação pedagógica e na intervenção precoce, em detrimento de um enfoque em estratégias remediati- vas” [art.º 19 n.º 1 a)].

No entanto, apesar de todos estes reconhecimentos, não existe uma única referência explícita, em todo o diploma, sobre a pluralidade cultural existente nas escolas portuguesas, nem sobre a necessidade de reconhecer o seu direito à diferença. Desse modo, não é claro, neste Despacho, se a flexibilização cur- ricular proposta terá em conta as diferenças culturais ou apenas aspetos mais técnico-formativos. Da mesma forma, pela leitura e análise do Despacho e dos meios nele previstos não se pode depreender que efetivamente se assegure o direito à diferença, considere e valorize os diferentes saberes e culturas [art.º 3.º d)] ou equilibradamente se inter-relacione “o saber e o saber fazer, a teoria e a prática, a cultura escolar e a cultura do quotidiano” [art.º 7 d)]. Como tal, a apreciação deste novo diploma deverá ser feita com as devidas reservas, não sendo certo que através deste, ou das medidas e possibilidades previstas, se venha a verificar um maior reconhecimento da diferença cultural no sentido da flexibilização e adaptação escolares.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto ideia-chave desta nossa breve reflexão, entendemos que é fun- damental, para que a escola seja um espaço efetivo de promoção da igualdade de oportunidades, que esta se assuma como pluralista, inclusiva e adaptável, revelando-se capaz de se relacionar com a diferença e eliminar as formas de desfasamento que existam com o quotidiano dos alunos. Deste modo, será verdadeiramente universal e não apenas numa dimensão formal(ista). No fundo, uma escola mais “libertadora” e não “reprodutora” de desigualdades sociais, porque mais pluralista e diversificada no seu conjunto119. Uma escola

mais inclusiva para todos e que, para poder diferenciar, não precisa de excluir do sistema regular e trabalhar conteúdos menos exigentes. Assim, será mais capaz de transformar a sociedade, promovendo a efetiva igualdade de oportu- nidades e, por decorrência, consagrando possibilidades de integração, emanci- pação e “empoderamento” mais sustentadas.

Em suma, entendemos que o recurso a práticas educativas de reconheci- mento da diferença, aproximação e interculturalidade deve acentuar-se, pro- curando-se uma atenção que previna o (eventual) insucesso escolar e que seja uma realidade quando ainda não se tenha de recorrer a formas de ensino alter- nativo. Porque se reconhece o elevado grau de heterogeneidade sociocultural

presente nas escolas e na própria sociedade, esta deveria ser a perspetiva global, não dependente de elevado insucesso ou risco de abandono escolar. Uma ação assente na vontade de promover o sucesso escolar através do inter-relaciona- mento entre a cultura escolar e a cultura do quotidiano e pelo reconhecimento do direito à diferença.

Por último, e sublinhando o entendimento de que esta abordagem é neces- sária para reforçar o sucesso escolar e a igualdade real na sociedade, temos por certo que não depende apenas da Escola e dos professores a promoção de um maior interesse e sucesso escolar, exigindo-se, em todo o caso, um esforço igual e o cumprimento dos deveres respetivos às crianças e jovens e suas famílias.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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———. “Educação Para O Quê?... A Integração Escolar de Crianças Ciga- nas.” Público, October 5, 2014. https://www.publico.pt/sociedade/noticia/educa- cao-para-o-que-a-integracao-escolar-de-criancas-ciganas-1671847. [consultado a 20/11/2017].

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