• Nenhum resultado encontrado

2.2 INFLUXOS DA NOVA SOCIEDADE INTERNACIONAL NO ÂMBITO INTERNO

2.2.4 Novos problemas, novos caminhos

2.2.4.1 Entre o macro e o micro: uma terceira via

Todo o debate sobre as consequências humanas da globalização está enraizado em antigas bases do nacionalismo metodológico, de forma que as conclusões sobre os seus efeitos partem de falsos pressupostos, utilizando sempre a

42 No original: “Thus, the new trinity of the world-state-city currently characterizes the new dynamics in international law and in domestic legal systems. […] It is this unique intersection of ideology, political theory, and governance strategy that the current “turn to the local” in the global sphere is taking place. And the legal transformation that we are witnessing is a part of and a result of this turn, whose future lies ahead.” [Tradução livre da autora] : “. BLANK, Yishai.

The city and the world, p. 930/931. Columbia Journal of Transnational Law, Columbia, v. 44, n. 3, 2006. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1020141. Acesso em 09/03/2018.

visão calcada na democracia estatal e na soberania como principal forma de manifestação de poder.

Todavia, faz-se mister a alteração das lentes por meio das quais o problema é avaliado, levando-se em conta a existência dos novos instrumentos e das novas possiblidades oferecidas pela governança global, a qual opera por redes complexas e novas, que a ótica nacional não consegue sequer vislumbrar.

Retomando o dualismo “céticos x globalistas”, minuciosamente explorado por Held e McGrew em sua obra, tem-se que, de fato, a globalização produz – ou acentua – desigualdades entre países economicamente distintos, muitas vezes afastando – ao invés de aproximar – nações soberanas. A afirmação de que não existe um único palco de relações econômicas internacionais, em que as partes equanimemente atuem, parece estar correta; o que se rechaça é a ideia dos céticos de que, a partir dessa assertiva, a conclusão decorrente seria a de que as soberanias nacionais estariam fortalecidas e a autonomia econômica, mais acentuada.

Ao contrário, trata-se de um terreno não linear, em que a maioria das nações não está conseguindo dar conta da diversidade e da voracidade das relações econômicas existentes.

E, diferentemente do que sustentam os céticos, a paradoxal globalização não fortalece, necessariamente, a soberania; mostra, isso sim, que qualquer tentativa de impor muros e fronteiras à dinâmica econômica atual esbarrará na engrenagem incontrolável advinda do processo globalizatório na economia. Os Estados, giza-se, formalmente continuam a ser a única fonte de autoridade efetiva e legítima na gestão da economia mundial; na prática, todavia, não é mais esse papel satisfatoriamente exercido.

Portanto, nessa mesma linha de pensamento global, entende-se que, em vez de utilizar-se exclusivamente lentes macro para a análise da questão, deve-se olhar também para o micro, para o local, para a individualidade de cada cultura, cuja atuação no cenário global e díspar ainda sofre restrição em sua liberdade para autodeterminar-se e inter-relacionar-se. Se as nações, sozinhas, já são consideradas, em alguns aspectos, pouco eficientes no cenário da globalização; a tentativa de criar supernações – órgãos supranacionais –, muitas vezes, apenas dificulta ainda mais a fluidez das relações entre os atores internacionais.

Tampouco a visão maniqueísta que separa as soluções entre manter a supremacia intransponível das nações e considerar um mundo como um todo, como uma ainda utópica comunidade global, parece solucionar a questão, uma vez que deixa de levar em conta a complexidade dos acontecimentos recentes.

Uma visão intermediária parece merecer ser levada em conta: não se deve considerar como única solução possível a construção de uma comunidade global homogênea e harmoniosa, pois, embora seja um auspicioso sonho utópico, dificilmente será em breve alcançado, tendo em vista a diversidade de culturas, níveis de desenvolvimento e situações econômicas e políticas dos povos; é inócuo, também, pensar que as nações soberanas estar-se-iam fortalecendo ou que a única solução seria a relativização desse poder em prol de entidades supranacionais e regionais. Uma via alternativa interessante seria dar mais poder aos entes subnacionais, às pessoas, às organizações locais atuantes em escala global, porquanto a globalização intensificou a participação de todos, indistintamente, na esfera internacional, fazendo esmaecer limites outrora intransponíveis senão por intermédio da estrutura nacional e soberana de cada nação.

Vale dizer, “em vez de colocar o problema em termos de uma rígida escolha binária entre regulação jurídica nacional ou global, ou entre o direito estatal e o direito da comunidade”, mais verossímil seria tratar a questão como sendo “uma emergente e nova paisagem de pluralismo jurídico, um mosaico de regulação supranacional, legislação nacional, tratados e políticas populares alternativos” (RANDERIA, 2003, p. 507), aos quais se acrescenta a diplomacia e a política subnacionais.

A sociedade civil e os novos atores globais têm ocupado parte do espaço público abandonado pelos Estados soberanos, mediante associações que reivindicam os legítimos interesses de cada grupo, mas que precisam de mediação para qualquer ação política, porquanto apenas o Estado soberano teria legitimação democrática para representá-los internacionalmente. Esbarra-se, sempre, na questão da soberania rígida e inflexível, embora se sustente a sua quebra para unir-se a outras soberanias, por meio de órgãos supranacionais. A visão é sempre macro, embora com a justificativa de defender e promover os interesses micro.

Alguns pontos centrais dessas transformações globais são sintetizados por Laredo (2001, p. 109):

1) A pós-industrialização, devido ao desenvolvimento de tecnologias que reduzam as distâncias globais e promovam a rápida movimentação de pessoas, bens, capital e idéias a nível internacional;

2) O surgimento de problemas planetários, que não são resolvidos a nível dos Estados;

3) A aparição de novos atores;

4) O declínio das possibilidades dos Estados nacionais para resolver os múltiplos déficits que atualmente os afligem;

5) A proliferação de regionalismos e a constituição de blocos econômicos.43

A autora destaca que de todas essas mudanças decorrem forças centrípetas e forças centrífugas, que atuam de forma concomitante no Sistema Internacional atual, influenciando e catalisando, respectivamente, o desenvolvimento da globalização e da fragmentação ou regionalização do mundo, em um processo aparentemente contraditório. (LAREDO, 2001, p. 109-110)

Compreender a nova sociedade global exige a análise de todos os pontos colocados acima, bem como a consciência de que outras expressivas alterações estão por vir, haja vista que o cenário que está sendo montado é deveras diferente daquele que está sendo substituído, havendo clara mudança de paradigma e, com ele, a necessidade de diálogo transnacional e interpessoal para a busca de soluções flexíveis face às dinâmicas e fugazes relações transfronteiriças.

Há, como já apontado no início deste trabalho, duas – ou mais – faces da globalização, do que decorrem, como todo processo extremamente complexo e mutável, inúmeras consequências favoráveis e desfavoráveis, de forma que é importante conhecê-las todas para definir os instrumentos necessários para estabelecer-se um caminho profícuo à humanidade.

Parece claro que situar o Estado-nação e a comunidade política territorial como referências fixas para a elaboração de concepções e para a busca de resposta aos problemas atuais não mais encontra respaldo na realidade global. As soluções não parecem estar dentro das barreiras físicas das fronteiras políticas, tampouco na análise ampla e generalizada da situação, abstraindo-se das raízes culturais, políticas e institucionais das nações.

43 No original: “1) La postindustrialización, debido al desarrollo de tecnologias que reducen las distancias globales y promueven un rápido movimiento de personas, de bienes, de capitales y de ideas a nivel internacional; 2) El surgimiento de problemas planetarios, que no se resuelven a nivel de los Estados; 3) La aparición de nuevos actores; 4) La declinación de las posibilidades de los Estados nacionales para dar solución a los múltiples déficits que hoy los aquejan; 5) La proliferación de regionalismos y la constitución de bloques económicos.” [Tradução livre da autora]

A conclusão que Guevara e Dib alcançaram após grande debate em torno da mudança da sociedade do conhecimento para uma sociedade da consciência é que:

No futuro, as mudanças políticas, econômicas, tecnológicas, culturais, ambientais etc. agirão em velocidades cada vez maiores, solicitando constantes ajustes e novos posicionamentos das pessoas e organizações. Os participantes das organizações cada vez mais sentirão a necessidade de exercerem o papel de líder transformador de si próprio e de outros para a manutenção da harmonia, da sinergia organizacional e da paz, participando cada vez mais conscientemente na co-criação de um mundo melhor, mais justo, mais fraterno e mais solidário. (DIB; GUEVARA, 2007, p. 260)

A esperança de um mundo melhor passa, necessariamente, pela reconstrução das bases sobre as quais se edificaram o Estado moderno e a democracia social, a fim de construir caminhos novos e desafiantes para os novos e desafiadores problemas trazidos pela globalização social, política, econômica e cultural:

O que se requer é uma nova ética global, que reconheça “o dever de cuidar” além das fronteiras, bem como dentro delas, e uma nova negociação global entre nações ricas e pobres. Isso implica repensar a democracia social como um projeto puramente nacional, reconhecendo que, para continuar eficaz num mundo que se globaliza, ela tem que estar inserida num sistema reformulado e muito mais forte de gestão global, que procure combinar a segurança humana com a eficiência econômica (Held, 1995; Giddens, 1999; UNDP, 1999). A reconstrução de um projeto social democrático exige a busca coordenada de programas nacionais, regionais e globais que regulem as forças da globalização econômica – as garantias, em outras palavras, de que os mercados globais comecem a servir às populações do mundo, e não o inverso. Entender a democracia social para além das fronteiras também depende de fortalecer os laços de solidariedade entre as forças sociais, nas diferentes regiões do mundo, que procuram contestar ou resistir aos termos da globalização econômica contemporânea. Assim como o sistema de Bretton Woods criou uma ordem econômica conducente à busca da democracia social nacional, faz-se necessário um novo pacto (social democrático) global, afirmam muitos globalistas, para domar as forças da globalização econômica e criar uma ordem mundial mais justa e mais humana. (HELD; MCGREW, 2001, p. 73-74)

Certo é que os Estados nacionais são veículos necessários para assegurar-se a justiça social, promovendo a regulação pública e a liberdade igualitária. Todavia, eles não mais possuem, em face dos novos acontecimentos e transformações, condições para atuar como atores privilegiados na análise dos problemas globais, fazendo-se mister um engajamento cosmopolita, entendido como “o casamento institucional entre o Estado e a sociedade civil”, e constituindo-se em uma ampla fonte de novas legitimações. (DUPAS, 2005, p. 231-233)

A legitimação do poder, hoje, está calcada na moral, e não mais na força, ou seja, quanto maior a facilidade com que aqueles que tomam as decisões conseguirem “colocar-se no lugar do outro”, maior o engajamento global e a legitimidade para lidar com as questões transnacionais. (DUPAS, 2005, p. 231-233)

Nesse cenário, Gilberto Dupas (2005, p. 238) pergunta-se se seria possível viabilizar uma autotransformação cosmopolita da política e do Estado, passando este a dar conta de modo global-local dos problemas mundiais, visto que, no jogo global, o capital acaba por ganhar, enquanto o Estado perde sempre. Com isso, analisando as propostas do cosmopolitismo, defende que o jogo estaria aberto, ou seja, a globalização obriga a que se adote uma nova etapa de democratização da política mundial. Entende que a governança global tem sido erroneamente utilizada como uma espécie de instrumento de controle, sem qualquer legitimidade democrática: “propõe- se uma falsa alternativa: ou se defende o Estado nacional ou se constrói uma governança sem governo”.

Eis a solução apontada pelo autor:

Enquanto o capital tenta se fundir com o direito para se apropriar de novos recursos de autolegitimação, o Estado deveria se fundir com a sociedade civil global para ganhar uma capacidade de ação transnacional e novos recursos de legitimidade global e de poder. Uma redefinição cosmopolita de Estado e uma repolitização da política: é preciso que as novas estratégias do Estado fujam da falsa alternativa que impõe escolher entre a neoliberalização e o neonacionalismo estatal. (DUPAS, 2005, p. 231-233)

Em face dessas questões, ressurge o debate em torno do Cosmopolitismo. Trata-se de tema surgido há muito tempo na tentativa de solucionar demandas que já não poderiam ser resolvidas, isoladamente, pelos direitos nacional e internacional.