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2.2 INFLUXOS DA NOVA SOCIEDADE INTERNACIONAL NO ÂMBITO INTERNO

2.2.3 O surgimento dos mais novos atores globais

Foram esses recentes fenômenos de valorização cultural e de interconexão global que trouxeram a alteração dos pilares do Direito Internacional – calcados na soberania das nações – para o terreno da solidariedade. No que tange, especificamente, à personalidade jurídica internacional, Cançado Trindade (2002, p. 1102-1103) observa que a sua abrangência foi-se alterando com o tempo, remontando às ideias de “direito universal” e de “consciência da humanidade”:

Ao longo do Direito Internacional contemporâneo, a personalidade jurídica internacional deixou de ser monopólio dos Estados. Tanto estes, como as organizações internacionais, como os seres humanos individual e coletivamente, são titulares de direitos e portadores de deveres emanados diretamente do Direito Internacional. Só os arautos tardios de um positivismo jurídico degenerado não conseguem enxergar esta realidade de nossos tempos. E vou mais além: a própria humanidade, como um todo, gradualmente passa a afirmar-se também como sujeito do Direito Internacional contemporâneo, do novo jus gentium do século XXI. Embora se trata de um desenvolvimento recente, suas raízes remontam ao pensamento jurídico da segunda metade do século XX. (CANÇADO TRINDADE, 2002, P. 1102) 35

35 O autor, no capítulo “Os rumos do Direito Internacional contemporâneo: de um jus inter gentes a um novo jus gentium no século XXI [2001]”, apresenta uma análise histórica da construção das bases para o Direito Internacional, recordando do ideal da civitas máxima gentium, que trazia a ideia de unidade e universalidade do gênero humano e dos Estados como membros da sociedade universal; passando pela concepção de jus gentium de Hugo Grotius, que entendia que o Estado não seria um fim em si mesmo, mas um meio para assegurar o ordenamento social e aperfeiçoar a sociedade comum que abarca toda a humanidade; e chegando na personificação do Estado todo-poderoso, inspirada na filosofia do direito de Hegel, esta última com influência nefasta à evolução do Direito Internacional.

Com o processo de globalização mundial, o cenário internacional contemporâneo atravessou profundas transformações, passando a admitir novos atores que se articulam de maneira interdependente. Nessa senda, consoante anteriormente analisado, o conceito de Estado vem caminhando para profundas alterações no que tange ao seu protagonismo nas relações internacionais.

Com a criação da Organização das Nações Unidas, após a Segunda Guerra Mundial, os novos atores passaram a ser internacionalmente conhecidos. Inúmeras questões estimularam o surgimento desses novos atores globais: o neoliberalismo, que deu liberdade para indivíduos, empresas, regiões atuarem no mercado autorregulamentado, bem como propiciou a liberalização financeira e a abertura comercial dos países; com ele, o fato de que o desenvolvimento passou a não ser mais atribuição exclusiva do Estado, tendo este perdido a sua capacidade de controlar a atividade dos demais atores, os quais passaram a ter cada vez mais interesse na atuação internacional; a integração regional e o processo do spillover, incorporando novos atores e setores relevantes, que passam a participar da integração, tornando o processo menos dependente da vontade política da autoridade central; a globalização, que trouxe a lógica de que o Estado não pode ser visto como um ente isolado dentro do cenário global – reordenamento das relações de poder –, tendo em vista que os atores que antes valiam-se do Estado para relacionarem-se internacionalmente passaram a ter interesse na relação direta; a emergência de alguns temas, como mudanças climáticas, terrorismo, direitos humanos, AIDS e desenvolvimento sustentável, energia, migração, tráfico de drogas e epidemias. (SANTOS, C., 2010)

Mesmo o próprio processo de formação e evolução do corpo normativo no âmbito de proteção dos direitos humanos e do meio ambiente, marcado por uma nova consciência global, hoje se beneficia da contribuição de uma multiplicidade de novos atores (grupos, associações, organizações não governamentais, organizações, criadores de opinião, cientistas) em interação no nível internacional. Essa contribuição torna o processo legislativo, além de não institucionalizado em parte, mais dinâmico e complexo. O grau de participação intensificada dessa multiplicidade de novos atores em nível internacional deve marcar o estabelecimento de novos fundamentos conceituais-normativos de regimes de proteção de valores fundamentais e universais no direito internacional contemporâneo. (CANÇADO TRINDADE, 2002, p. 983)36

Assim, apenas no início do século XXI é que chegou-se ao “Novo Ius Gentium”, calcado no Direito Universal da Humanidade.

36 No original: “Even the process itself of formation and evolution of the normative corpus of the domains of protection of human rights and the environment, marked by a new global awareness, benefits today

Inicialmente, as Organizações Internacionais Governamentais surgiram como agrupamentos políticos fundados pelos Estados, nascidas para representarem os interesses conjuntos destes atores. Posteriormente, surgiram as Forças Transnacionais, que englobam atores internacionais não-estatais, ou seja, entes formados por elementos de natureza privada, ligados à sociedade civil organizada, tais como as Organizações Não-Governamentais (ONGs), as Empresas Multinacionais ou Transnacionais; a Sociedade Civil; e a Opinião Pública Internacional.

As fronteiras dos Estados deixaram de barrar ou filtrar influências políticas, culturais, econômicas e sociais advindas de qualquer outro canto do Planeta. Todas as localidades passaram a ficar exposta a qualquer evento ocorrido a milhas de distância, em qualquer Continente, estimulando uma erosão nas barreiras geográficas às atividades socioeconômicas. As consequências de um acontecimento local podem atingir outro Estado soberano, bem como as de um acontecimento promovido por este podem atingir qualquer ser humano ou comunidade do Globo Terrestre. Todas as pessoas, independentemente de suas localidades, passaram a ligar-se umas às outras, fazendo surgir relações sociais em escala mundial. Com isso, surge também a necessidade de reconhecer tais relações internacionais e, de certa forma, regulá- las.

Podem ser considerados sujeitos não-formais do Direito Internacional aqueles que, apesar de situarem-se à margem do Direito Internacional formal, participam de modo não regulamentado da cena internacional, exercendo certa influência, positiva ou negativa, nas decisões da sociedade internacional relativamente à ação e à tomada de posição em assuntos de interesse global. Segundo Mazzuoli (2011, p. 426), “o certo é que nada se falou sobre esse tema até o momento, não obstante ser relativamente fácil perceber quão grande é a influência exercida por algumas entidades de expressão mundial nos caminhos a serem trilhados pelo direito das gentes atualmente”. E conclui:

from the contribution of a multiplicity of new actors (groups, associations, non-governmental organizations, opinion-makers, scientists), in interaction at the international level. That contribution renders the law-making process, besides in part non-institutionalized, at a time more dynamic and complex. The degree of intensified participation of that multiplicity of new actors at international level is bound to mark the establishment of new conceptual-normative foundations of regimes of protection of fundamental and universal values in contemporary international law.” [Tradução livre da autora]

De qualquer forma, a conclusão que se chega é que o Direito Internacional contemporâneo deve estar aberto a esses novos fenômenos que, pouco a pouco, vêm aparecendo na arena internacional, capazes de influenciar (não- formalmente) na condução dos negócios exteriores dos Estados e na construção futura do novo Direito Internacional. (MAZZUOLI, 2001, p. 428)

A importância dos atores não-estatais cresce a cada dia, tanto do ponto de vista fático quando do teórico. Movimentos sociais, empresas multinacionais, grupos terroristas, partidos políticos, ONGs, regimes internacionais, organismos multilaterais, blocos econômicos regionais, redes de advocacy, governos locais e indivíduos são agentes fundamentais na nova lógica da governança global. (SIQUEIRA, 2012)

Nesse sentido, diversas entidades têm atuado internacionalmente com diferentes propósitos, e a tendência da teoria jurídica internacional, ao que Shaw chamou de sofisticação da doutrina positivista, combinada com as novas ideias do sistema internacional, é romper com a ênfase exclusiva na atuação do Estado e reconhecer a participação efetiva desses novos atores no direito internacional público. McMillan enfatiza que os governos nacionais vem sendo, já há bastante tempo, a principal unidade de análise para pesquisa em política externa, ignorando o fato de que outros atores implementam muitas decisões de política externa e inúmeras conexões globais importantes:

Este artigo enfatiza como várias áreas teóricas - IR, IPE e literatura de análise de políticas estrangeiras em particular - devem ampliar seu escopo de análise para repensar as concepções sobre o poder e as capacidades dos funcionários subnacionais. A teoria do IR deve considerar os atores subnacionais como atores transgêneros e a análise da política externa deve considerar as dimensões verticais da implementação da política externa. Os estudiosos do federalismo devem continuar seu interesse neste tópico e, talvez, as abordagens institucionais permitam o estudo sistemático. Os governos nacionais têm sido, durante muito tempo, a principal unidade de análise para pesquisa em política externa, ignorando o fato de que os Estados Unidos implementam muitas decisões de política externa e inúmeras conexões globais de governadores. Esperemos que este estudo estimule o governo escolar sobre a participação dos governadores na política externa dos EUA, um tema com muitas possibilidades de pesquisa. (MCMILLAN, 2010)37

37 No original: “This paper emphasizes how several theoretical areas—IR, IPE, and foreign policy analysis literature particularly—should broaden their scope of analysis to reassess conceptions of the power and capabilities of subnational officials. IR theory must consider subnational actors as transgovernmental actors and foreign policy analysis should look at the vertical dimensions of foreign policy implementation. Federalism scholars should continue their interest in this topic and perhaps institutional approaches allow for systematic study. National governments have, for too long, been the primary unit of analysis for research on foreign policy, ignoring the fact that U.S. states implement many foreign policy decisions and the numerous global connections of governors. Hopefully this study

Percebe-se, hoje, que, muitas vezes, há um maior campo de interesse para realização de relações entre um ente da federação e um ente de outra federação, ou mesmo entre este e uma nação, do que entre os entes que compõem o mesmo Estado Federal, ou entre os Estados, no que diz respeito aos seus assuntos nacionais: “Estamos vivendo na era da cidade mundial ou global, onde, como os sociólogos, os economistas e os planejadores urbanos nos lembram, Nova York compartilha mais com Londres e Rio de Janeiro do que com Buffalo e Cleveland”38. (RODRIGUEZ; SHOKED, 2016, p. 129)

Ou seja, a diversidade existente dentro do território de uma nação, somada à facilidade com que as relações internacionais têm acontecido, em decorrência do processo globalizatório e de aproximação de espaços e flexibilização de barreiras geográficas, faz com que, naturalmente, regiões afins e que possuem interesses convergentes aproximem-se e estabeleçam acordos e parcerias transfronteiriças.

Entre a concepção tradicional de que os entes subnacionais são componentes indistinguíveis de seus países, sem status jurídico independente, e a concepção de que são eles sujeitos de direito internacional, em face da inevitável atuação que vem ocorrendo no cenário internacional contemporâneo, há uma terceira corrente que entende ser a relação jurídica doméstica entre os Estados e os seus entes federados uma matéria de regulamentação jurídica internacional. Essa relação recebeu o nome de “international local government law”39 pelos seus defensores e sustenta que o “Direito Local Internacional é estimulado pela percepção de que as cidades se tornaram atores internacionais significativos”. Portanto, “embora tecnicamente as cidades nunca tenham sido sujeitos de direito internacional, a lei local está agora interligada com o direito internacional.”40 (RODRIGUEZ; SHOKED, 2016, p. 134)

Assim, as cidades, os estados-membros e as regiões que compõem uma nação tornaram-se, por si sós, hoje, tema de interesse para os principais atores

stimulates scholarship about governors’ participation in U.S. foreign policy, a topic with many research possibilities.” [Tradução livre da autora]

38 No original: “We are living in the era of the global or world city, where, as sociologists, economists, and urban planners remind us, New York shares more with London and Rio de Janeiro than it does with Buffalo and Cleveland.” [Tradução livre da autora]

39 Expressão preconizada por Gerald Frug e David Barron.

40 “International local government law is stirred by the insight that cities have grown into meaningful international actors. While technically cities have never been a subject of international law, local government law is now intertwined with international law.” [Tradução livre da autora]

internacionais. A Organização das Nações Unidas, por exemplo, gera normas que afetam indiretamente os governos locais, em suas leis e em suas políticas públicas, da mesma forma que tais entes interferem nas relações mundiais, por meio das relações que estabelecem diretamente com outros atores. Há, pois, uma influência explícita e cada vez maior dos atributos globais no governo local e dos atributos locais nas relações globais. E, com toda essa interação gerada pela globalização, é fato que há convergência de diferentes sistemas jurídicos, que influenciam e atingem os regimes de direito local, transformando-o em um “direito local internacional”. (RODRIGUEZ; SHOKED, 2016, p. 134)

Ao que parece, a era da invisibilidade das cidades e das regiões no âmbito internacional está chegando ao fim, porquanto o direito internacional tem penetrado no interior do Estado para regular, diretamente, as ações dos governos subnacionais, o que acaba por afetar a situação fática e jurídica de tais entes em face dos demais atores internacionais. (SANTOS, C., 2010, p. 74)

Blank aponta três maneiras de operação dos entes locais no cenário global como agentes normativos reguladores: (i) são meios pelos quais ideias mundiais alcançam indivíduos e comunidades; (ii) são instrumentos de organização democrática através dos quais comunidades ganham voz e podem atuar no cenário mundial; (iii) são estruturas políticas e materiais para planejar o espaço e configurar o relacionamento entre o local e o global. Assim, para além de servirem como mediadores entre os indivíduos e a esfera nacional do Estado, cada vez mais estão mediando demandas no plano internacional. (BLANK, 2006b, p. 930)

Entretanto, pondera o autor que a soberania ainda desempenha um importante papel, não só no direito internacional, como também na regulação das atividades locais, não sendo, de forma alguma, apenas uma “entidade fantasmagórica, substituída pelo mundo, por um lado, e pelos governos locais, por outro lado, mas sim uma das três partes que passaram a estar interconectadas e a ser igualmente importantes” (BLANK, 2006b, p. 930).41 O intenso processo de globalização que vem ocorrendo reflete uma nova estratégia de governança, que enxerga as localidades como veículos de disseminação global de ideias contemporâneas e teorias políticas.

41 No original: “ghostly entity, replaced by the world on one hand and by local governments on the other hand, but one in which all three parties are becoming entangled and equally important.

Assim, a nova trindade ‘mundo-cidade-estado’ atual caracteriza a nova dinâmica no direito internacional e nos sistemas jurídicos domésticos. [...] É essa interseção única de ideologia, teoria política e estratégia de governança que está ocorrendo a atual "virada para o local" na esfera global. E a transformação legal que estamos testemunhando é uma parte e um resultado desse turno, cujo futuro está por vir. (BLANK, 2006b, p. 930- 931)42

Com essa “virada para o local” na esfera global apontada por Blank, estão os entes subnacionais exsurgindo nas relações internacionais como peças importantes para o seu bom funcionamento e para que os interesses de todos os indivíduos do Planeta estejam efetivamente presentes no seu palco de convívio e negociações.

Como bem previu há algum tempo Cançado Trindade (2003, p. 10), a “tendência do direito internacional, assim como das relações internacionais, é reconhecer a legitimidade de novos atores e regular suas atividades no cenário internacional. Foi o que ocorreu com os indivíduos e com as organizações internacionais”.

O direito internacional deve acompanhar o surgimento de novos atores nas relações internacionais e evoluir para regular suas ações no plano internacional. Isto porque, explica Shaw, o direito internacional, assim como o interno, é reflexo dos valores sociais, econômicos e políticos da sociedade que os aplica. Dessa forma, o seu desenvolvimento anda em conjunto com as práticas prevalecentes nas relações internacionais, pois a sua sobrevivência depende da sua harmonização com a realidade de seu tempo. (SHAW, 2008, p. 43)