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7 A PESQUISA

7.2 Interpretação dos discursos dos docentes entrevistados da amostra

7.2.2 Entrevista B

A professora B (transcrição da entrevista no apêndice 1B) trabalha exclusivamente numa escola particular, com nove anos de experiência e cerca de trinta anos de idade. O seu trabalho se resume nas 3a. e 4a. séries do Ensino Fundamental, e sua formação como professora deu-se em cursos de Magistério e Pedagogia.

Assim como nas demais entrevistas, nesta também se segue a sugestão dos autores citados no início deste capítulo de iniciar a entrevista com uma conversa introdutória informal, a fim de verificar se a entrevistada toca espontaneamente no assunto de interesse. Isso se dá a partir da linha 34, quando enunciando sua resposta à pergunta sobre os conteúdos de Ciências com os quais trabalha, inclui tópicos de Astronomia. Portanto, o surgimento do ensino da Astronomia não foi induzido neste caso, mas espontâneo:

34 B: [..] Então, a terceira série, nós começamos com os planetas, o Sistema Solar. E logo após o Sistema

Solar, os movimentos da Terra.

Quando expõe a sua metodologia de trabalho, B descreve o que entende por ‘concreto’, trazendo à tona interdiscursos sobre atividades manuais e experimentos:

24 B: Olha, eu procuro trabalhar de maneira bem concreta com as crianças: [...] abrir um coração de

boi [...], abrir um rim [...], o olho [...] Então eu acho que as crianças têm um pouco mais de interesse quando elas trabalham dessa maneira. E na parte de terceira série, tem bastante

experiência [...] Quanto mais experiência... o próprio material já traz, eu acho que chama mais a atenção das crianças.

O termo ‘concreto’ – talvez retomado de um discurso Piagentiano (PIAGET, 1975) – parece continuar sendo amplamente utilizado por docentes, que o associa intimamente com experimentos (‘experiências’, conforme citado por B) e muito provavelmente ao construtivismo (GROSSI, 1995).

Abordando ainda os materiais que se utiliza para o ensino ‘concreto’, B cita apenas dois exemplos quanto aos tópicos de Astronomia: bola de isopor e spring light (44 a 47). O fato de não citar demais exemplos pode denotar: ou o tipo de esquecimento discursivo que não a permite buscar nas lembranças, ou que ela realmente não os utilize. Porém, entre os recursos que são usados por B, é mencionado também um vídeo didático sobre Astronomia, especificamente ‘Sistema Solar’; contudo, não recordando o nome do filme (77), pode-se indicar as mesmas conclusões da razão de seu esquecimento, conforme mencionado acima.

Ainda no recorte acima, acerca do interesse dos alunos, nota-se que B – pelo uso do moderador ‘acho’ – possui a impressão de que ela própria é a fonte desse dizer enquanto ocupa seu lugar imaginário na instituição. Para B, o interesse dos alunos pelas aulas é incrementado ao se utilizar atividades práticas, principalmente as sugeridas pelo material didático da escola particular onde atua.

Para temas astronômicos, as crianças parecem apresentar inúmeras curiosidades, das quais B salienta de momento apenas duas: o maior planeta do Sistema Solar e vida extraterrestre. Posteriormente, B mostra que o planeta Júpiter (121) e a Lua (113) também foram de interesse específico da parte dos alunos, alguns até mesmo atingindo a terceira série com o conhecimento dos nomes dos planetas (46).

105 B: [...] o maior planeta do Sistema; [...] se a Terra é o único planeta que tem vida; [...] Sempre

surge uma curiosidade das crianças [...] que a gente acaba discutindo em sala de aula, mas não dá seqüência.

Ao final deste recorte, encontra-se um interdiscurso recorrido por muitos docentes, e que pode ser interpretado na expressão “não dá seqüência”: a falta de tempo dos professores, embora a idéia fique completamente explícita quando ocorre o dizer: “a gente não tem tempo de ficar pesquisando só sobre Astronomia” (154). As conseqüências desta atitude podem se tornar uma resistência ao progresso e desenvolvimento tanto para docentes como para alunos. Porém, o tempo reduzido atribuído para preparação de aulas não deve ser desconsiderado, ainda que este também seja relativo e dependente do esforço do professor. Por exemplo, quando questionada qual a freqüência com que buscava informações sobre Astronomia, B esclarece em seu enunciado apenas um período reduzido em relação ao ano inteiro, uma vez que o assunto é tratado apenas no início do ano:

85 B: [...] muitas vezes o próprio livro traz pesquisas para os alunos [...] Agora, eu ficar buscando só

Astronomia? Não vou falar, porque eu vou estar mentindo.

Com relação ao tempo dedicado à pesquisa da Astronomia para suas aulas, B demonstra o típico esquecimento número dois que, conforme já explicado, faz-se uso da retórica, quando o falante retoma o seu discurso com a finalidade de explicitar o que pensa, com a ilusão de que o seu discurso esteja refletindo o conhecimento que possui da realidade, imaginando que sua ação adotada com respeito ao tempo destinado à pesquisa adicional sobre Astronomia já é adequado. Essa atitude de B pode ser explicada por uma interpretação de sua enunciação inicial neste trecho de seu discurso, pois já que “o próprio livro traz”, por que B deveria ficar “buscando só Astronomia?”.

Quando questionado sobre a fonte dos conteúdos que trabalha com os alunos, o sujeito B esclarece que o material apostilado da escola onde atua projeta uma liderança na posição da hierarquia de grau de importância (51 a 58), como fica evidente também na espontaneidade encontrada nos recortes: “vem do próprio livro” (53), “próprio livro traz” (36), “próprio livro traz pesquisas” (85), “próprio livro sugeriu” (112), “no livro trazia” (121), havendo comparativamente poucos momentos em que se dirigiu para outras fontes, a não ser quando induzida para tal.

Como apoiado pelo levantamento bibliográfico dos capítulos anteriores, o interdiscurso da supremacia do livro didático parece permear o discurso dos professores de Ciências, notadamente os de escolas particulares, em que se encontram condicionados a se prenderem em suas apostilas adotadas, apoiadas por um discurso reforçador e ideológico das instituições particulares de ensino, onde as suas concorrências expõem abertamente a ideologia da busca pelo destaque intelectual no meio educacional, incluindo o objetivo primário da conquista de um crescente número de alunos-clientes.

No entanto, esta aparente superioridade da parte dos materiais didáticos preparados pelas instituições particulares, não está livre de ser questionada devido à presença de erros conceituais, assim como muitos livros didáticos utilizados pela rede pública de ensino.

Ciente de uma das falhas conceituais do material didático em uso, por conta de uma palestra que houve poucas semanas antes, B mostra a questão envolvida sobre os movimentos da Terra, bem como outros conteúdos de Astronomia, com os quais trabalha; mas deixa transparecer que basicamente seja apenas conteúdos sobre características dos planetas do Sistema Solar, não mencionando fases da Lua, estações do ano, ou demais temas fundamentais e contextualizantes.

34 B: [...] a terceira série: nós começamos com os planetas, o Sistema Solar. E logo após o Sistema

Solar, os movimentos da Terra. Depois eu fiquei sabendo que ele faz um só movimento, e o resto são complementos. Mas o próprio livro traz os dois tipos de movimentos: rotação e translação.

Conforme B, os conteúdos de Astronomia contemplam o ensino de Ciências principalmente na terceira série, enquanto na quarta “não vê nada” (181), o que sugere um descomprometimento de sua relação com o assunto nessa série subseqüente, ou um acompanhamento tão restritivo ao livro didático, que suprimiria o ensino de tópicos astronômicos, mesmo quando colocados em sala de aula por parte dos alunos.

Ao atingirem a terceira série, as crianças já vêm parcialmente preparadas e repletas de dúvidas e curiosidades, muitas das quais B confessa ter dificuldades em responder, como mostra os seguintes fragmentos: “muitas vezes, sim” (154), “se eu tivesse um pouco mais de conhecimento” (157), “eu senti dificuldade” (163), “algumas coisas eu consigo lembrar” (63), “se eu tivesse falando sobre o assunto, era mais fácil falar pra você!” (178), “ficou difícil” (159), “fica complicado” (142), e “eu acho” (39), sendo este último termo (“acho”) utilizado por diversas vezes em seu discurso, o que implica numa interpretação de que o sujeito imagina estar produzindo o seu próprio discurso, ‘achando’ que ele mesmo é a fonte deste dizer.

O moderador condicional “se”, usado por B, indica que na ilusão de sua posição, o conhecimento que possui da realidade é incontestável e que fatores externos deveriam ser alterados no intuito de ampliar o grau de qualidade de seu trabalho, não declarando que o próprio sujeito talvez necessitasse de mudanças; ou se assim B sugeriu, ainda não tomou atitude para isso, como mostra a retomada que faz de seu discurso, o que, conforme Orlandi (2002), é típico de um esquecimento número dois:

154 B: [...] é como eu te falei: a gente não tem tempo de ficar pesquisando só sobre Astronomia [...]

se eu tivesse um pouco mais de conhecimento, daria pra ser trabalhado de maneira [...], não digo rápida, mas daria pra ter sido comentado mais sobre Júpiter. Mas ficou difícil, porque como a gente estuda mais o planeta Terra, a gente acaba se aprofundando no planeta Terra, e os outros ficam pra trás.

Segundo o trecho acima, de acordo com a enunciação discursiva de B, o próprio livro didático que anteriormente foi dignificado, agora se torna o responsável por atribuir o excesso de um determinado conteúdo de forma a se aprofundar nele em detrimento de outros, ao que B indica ser uma de suas dificuldades.

Outra dificuldade que se pode interpretar do discurso de B é o fato de que os cursos para professores que a Secretaria de Educação oferece estão vedados, sendo praticamente impossível a entrada de docentes do ensino particular, como mostra B: “pro professor do ensino particular, é um pouco mais complicado a participação de cursos (...) não sobrou vagas pra você poder participar (...) ou você não pode, porque você dá aula no ensino particular” (198).

Alguns possíveis motivos para suas dificuldades, encontram-se nos seguintes recortes do discurso de B, relacionados com a sua formação:

59 P: [...] durante a sua formação, lá no curso de Pedagogia, [...], no Magistério, você teve alguma

coisa do ensino de Astronomia?

61 B: Bem superficial.

170 B: [...] foi um assunto que eu vi assim de primeira mão, quando eu comecei a trabalhar com

Ciências, entendeu? Então eu nunca tive assim um estudo mais aprofundado. [...] Mas foi muito pouco trabalhado quando eu fiz a minha faculdade e o magistério; então a minha dificuldade é mais por isso, tá?

Considerando a sua formação de B como professora com conteúdos restritos em Astronomia, os poucos que foram trabalhados receberam um tratamento de memorização, como a frase para decorar os nomes dos nove planetas do Sistema Solar em ordem de distância do Sol: “pra que a gente possa lembrar dos planetas na ordem correta, tem uma frase que eu me lembro” (63). Exceto no curso de Magistério do Ensino Médio, durante a formação em Pedagogia, B declara que não foram trabalhados conteúdos de Astronomia (69, 136 e 151). O resultado é que tal assunto só passou a ser visto por B em “primeira mão” só em seu local de trabalho, sem qualquer preparação antecipada.

Isto exemplifica o que talvez ocorre com grande parte dos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, que não receberam durante sua formação o mínimo de considerações sobre temas em Astronomia fundamental, o que implicará num aprendizado quase que simultâneo com seus próprios alunos, gerando uma ação pedagógica praticamente dependente do livro didático, muitos dos quais também apresentam falhas. Talvez isso explique os dados obtidos em inúmeras pesquisas sobre concepções espontâneas sobre fenômenos astronômicos em alunos e professores, pois o produto da situação assim apresentada termina por um ensino de Ciências repleto de concepções alternativas em Astronomia.

Uma crítica válida que pode contribuir com a formação de professores para os anos iniciais do Ensino Fundamental está implícita no discurso de B, onde os professores de graduação ‘jogam’ (138) a matéria, talvez se referindo ao tradicional sistema de ensino em que o docente de cursos de formação de professores fornece um tratamento de ‘transmissão’ de conteúdos, sem considerar outros métodos de ensino de Ciências (CACHAPUZ et al, 2000).

Uma vez que B apresentou discursivamente suas dificuldades no ensino e problemas com sua formação em tópicos de Astronomia, a reação para busca de uma solução

é se utilizar outras fontes que contenham o ensino desse tema, conforme alistado por B: filmes, livros paradidáticos, internet, eventuais palestras (72 a 74 e 112) e colegas de trabalho (81, 193). Nota-se que em nenhum momento, B faz alusão aos PCN, o que se pode interpretar uma série de implicações, desde o seu desconhecimento a seu respeito até uma discordância a ponto de não utilizá-lo.

Com toda essa problemática assim apresentada, torna-se o momento de apresentar as sugestões consideradas por B em busca da melhoria da qualidade do ensino da Astronomia: aumentar os conteúdos deste tema no Ensino Fundamental (94), atividades práticas utilizando os próprios alunos como representações de corpos celestes (129), construção de maquetes (131), palestras geradoras de curiosidades e interesses (171, 197 e 204), existência de cursos (197 e 203), e sites especializados na internet contendo “as dificuldades que a criança têm e como pode ser trabalhado na sala de aula” (205).