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Equívocos sobre a imagem indígena no Brasil

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Capítulo II – CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIOLÓGICA, ANTROPOLÓGICA E

4. Equívocos sobre a imagem indígena no Brasil

Falar em Hip Hop na Reserva é um tanto quanto desnortear uma visão convencional da cultura indígena, que relaciona suas tradições com a dança, o canto, a música passadas de geração em geração. A inclusão de um movimento moderno, como o hip hop, que vem ocorrendo nas reservas de Dourados, mistura, por exemplo, o break com o guaxiré (dança típica). Nessa ordem, há uma contestação, a qual podemos chamar de nova, e as narrativas são desafiadas a todo instante, são recriadas.

Freire (2000), durante uma palestra, abordou as cinco ideias que, para ele, são equivocadas sobre os índios. Segundo o antropólogo (2000, p. 2), a produção de conhecimentos na área indígena não condiz com a importância do tema e as pesquisas são consideradas de uma “pobreza franciscana”. O resultado, segundo ele, é a deformação da imagem do índio, desde a escola, passando pela mídia e a sociedade brasileira.

O primeiro desses equívocos seria o índio genérico. Para Freire (2000, p. 4), os brasileiros acreditam que os indígenas constituem a mesma cultura, língua ou crença, e quando isso reduz as culturas diferenciadas se transforma no genérico apagando as diferenças. Para exemplificar, Freire mostra que viviam no Brasil mais de 200 etnias, com 188 línguas diferentes. É como se colocássemos os índios Guarani e Terena de Dourados em um mesmo patamar, não reconhecendo suas diferentes crenças, culturas e modo de organização social. O que pode facilitar a comunicação entre os indígenas dessa região é a fala do segundo idioma, quase obrigatório, como já dito, que é o português.

Se essas diferenças existem, como cita o estudioso, não deveríamos colocá-las em um mesmo patamar, como, por exemplo, “todos são índios”. No caso do segundo idioma, podemos notar ainda que falar o português acaba se tornando um elo de comunicação entre culturas totalmente diferentes como é a Guarani e a Terena, um exemplo de interculturalidade. As diferenças culturais, portanto, para não passar apenas o genérico, deve ser considerada, ou seja, reconhecida. Como é o caso dos etnônimos “Kaiowá” e “Guarani”, que Pimentel (2012) explica antes da introdução de sua tese:

Tem se consolidado entre órgãos governamentais o uso do termo “guarani- kaiowá”, designando o conjunto das populações de língua guarani em Mato Grosso do Sul. Geralmente, porém, os indígenas preferem utilizar, em documentos que divulgam, em trabalhos acadêmicos, ou mesmo na música pop (vide os raps do grupo Bro MC’s) a designação Kaiowá ha (e) Guarani, ou Guarani ha Kaiowá – ou seja, frisando que são dois grupos que estão juntos, são aliados políticos, [...] mas tem origens distintas.

O segundo equívoco apontado pelo antropólogo é a ideia de que as culturas indígenas são “atrasadas”, “primitivas”. Sabendo que os povos indígenas produzem saberes, arte, literatura, música, como é o caso deste estudo, para Freire (2000), as culturas indígenas não são atrasadas e isso seria um pensamento de “gente ignorante” no assunto.

As línguas indígenas, por exemplo, foram consideradas pelo colonizador, equivocadamente, como línguas “inferiores”, “pobres”, “atrasadas”. Ora, os lingüistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar qualquer idéia, pensamento, sentimento e que, portanto, não existe uma língua melhor que a outra, nem língua inferior ou mais pobre que outra. As pessoas, no entanto, confundem muitas vezes as línguas com os seus falantes. O que existe são falantes que, na estrutura social, ocupam posições privilegiadas em relação aos falantes de outras línguas, dando a falsa impressão de que suas línguas são superiores, quando do ponto de vista estritamente lingüístico, não existe língua rica e língua pobre. Os proprietários de terra falam uma língua, os sem- terra falam outra. Aí, os primeiros determinam que sua língua é superior a dos segundo, o que não se sustenta cientificamente (FREIRE, 2000, p. 6 e 7).

Quando os jesuítas passaram a evangelizar os indígenas, na época da colonização, a língua falada pelos indígenas assim como a fé nos xamãs eram consideradas demoníacas e atrasadas. Caso os indígenas fossem convertidos ao cristianismo poderiam ser considerados homens “humanizados e civilizados”, mas, caso resistissem a fé cristã, seriam julgados politicamente ou militarmente. Esse fato é contraditório, sabendo que, para o Guarani, por exemplo, a religião é manifestada a todo momento, como no caso de ouvirem os rezadores em suas decisões até os dias atuais e, mesmo na questão econômica, as rezas e danças fazem parte do cotidiano na reserva. Freire (2000, p. 7) afirma que “eles rezam mais do que todos os bispos reunidos numa assembleia geral da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil”.

Um exemplo de como a religião é ainda presente na reserva é o fato de podermos encontrar a maior construção da Reserva Guarani, chamada de Opy (Casa de Reza). “Não possui janelas, apenas duas portas, uma voltada para oeste, de frente para o pátio central e a outra para leste, na direção do mar. O chão é de terra batida e o teto de folha de pindó4. O mobiliário é constituído por alguns bancos, uma rede e uma fogueira” (Freire, 2000, p. 7).

O terceiro equívoco, citado por Freire, “é o congelamento das culturas indígenas”. Quem é o índio na visão do brasileiro? Aquele que usa tanga e arco e flecha na floresta?

Para o autor, essa imagem foi congelada e qualquer mudança nesse estereótipo causa estranhamento. Um exemplo disso ocorreu ao final da apresentação do grupo Brô MC’s, na inauguração da Vila Olímpica Indígena, em Dourados. Na ocasião, o então governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, não aplaudiu. “Não gostei, porque isto é música estrangeira. E eu sou nacionalista” (MCs..., 2011). Outro caso acontece quando são apresentados os desdobramentos deste trabalho em congresso, pois muitos são os questionamentos e “olhares tortos”: como assim, hip hop na Reserva? Então, esses jovens não seriam mais indígenas? Freire aponta um exemplo da época ocorrido no governo do Amazonas, não muito diferente do que acontece hoje:

O governador Gilberto Mestrinho, por exemplo, para impedir a demarcação das terras indígenas, veio com esse papo mole, que reforça preconceitos. Ele disse: “esses aí não são mais índios, já estão de calça e camisa, já estão usando óculos e relógios, já estão falando português, não são mais índios”. Ele criou uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: os ex-índios. Aí, se essa lógica funciona, eu fico me perguntando se o Mestrinho não é, então, um ex- brasileiro, porque o cotidiano dele está marcado por elementos tomados emprestados de outras culturas. Aliás, isto acontece com todos nós. Você, por exemplo, está vestido com jeans, aliás muita gente aqui está com um tipo de roupa que não foi inventada por nenhum brasileiro. Estes móveis aqui também não são objetos “autênticos” da nossa cultura. A mesa e a cadeira têm uma história que vem lá da Mesopotâmia, onde foram projetadas no século VII a.C., passaram pelo Mediterrâneo sofrendo várias modificações antes de chegarem a Portugal e depois ao Brasil. A forma de construir em concreto também não é técnica brasileira. O computador não é brasileiro, o telefone não é brasileiro, enfim toda essa parafernália que a gente usa – os milhares de itens culturais presentes no nosso cotidiano - não tem suas raízes em solo brasileiro (FREIRE, 2000, p. 12).

Por que o caso narrado se parece com a situação atual passados mais de 10 anos depois? Existe uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC/215) que submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a demarcação de terras indígenas. Nela, os indígenas passam de “sujeito de direito” a “objetos subjulgados”. De autoria de um deputado de Roraima, onde existe conflito indígena, a PEC está sendo alvo de protesto por indígenas em todo país. Isso porque transfere da União a competência de julgar a demarcação de terras, até mesmo a revisão das já demarcadas, para o Congresso Nacional. Além disso, os critérios passariam a ser regulamentados por decreto e não por lei como é atualmente.

Para o setor do agronegócio, “nada mais justo a participação do Congresso

Nacional na apreciação de atos do poder Executivo como se dá em qualquer projeto de lei encaminhado ao Legislativo” (A VERDADE..., 2013), já, para os ambientalistas e defensores indígenas, os “Deputados que irão analisar PEC 215 são financiados por

empresas do agronegócio e mineração” (DEPUTADOS..., 2015), por isso considerada uma mudança normal pelo setor. Para os indígenas, foi passada uma ideia, diante dessa PEC, de que eles deveriam se manter puros, caso contrário perderiam terras. Bhabha (2001) nota a identidade numa perspectiva moderna, mas não como seres únicos e, sim, fragmentados.

Os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas "orgânicas" - enquanto base do comparativismo cultural-, estão em profundo processo de redefinição. O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria ideia de uma identidade nacional pura, "etnicamente purificada", s6 pode ser atingida por meio da morte, literal e figurativa, etas complexos entrelaçamentos cia história e prol meio das fronteiras culturalmente contingentes da nacionalidade [nationhood] moderna. Gosto de pensar que, do lado de cá da psicose do fervor patriótico, há uma evidencia esmagadora de uma noção mais transnacional e translacional do hibridismo das comunidades imaginadas (BHABHA, 2001, p. 24).

Para Freire (2000, p. 13), nem os índios, nem ninguém, vive absolutamente, isolado e o conceito que permite entender é justamente o de “interculturalidade”. Para ele, essa condição é justamente “o resultado da relação entre culturas, da troca que se dá entre elas”. Tudo aquilo que o homem produz em qualquer cultura.

[...] Os índios, aliás, estão abertos para esse diálogo. O problema é que historicamente eles não escolheram o que queriam tomar emprestado, isto lhes foi imposto a ferro e fogo. Então, historicamente essa relação não tem sido simétrica, não tem tido mão dupla, tanto na Amazônia, como no resto do Brasil e da América. Ou seja, os índios não puderam ter liberdade de escolha, de olhar o leque de opções e dizer: “nós queremos isso, nós queremos trocar aquilo”. As relações foram assimétricas em termos de poder. Não houve diálogo. Houve imposição do colonizador. Aquilo pelo qual nós brigamos hoje é por uma interculturalidade, entendida como um diálogo respeitoso entre culturas, de tal forma que cada uma delas tenha a liberdade de dizer: “Olha! Isso nós queremos, isso nós não queremos”, ou então, “nós não queremos nada disso”. É essa liberdade de transitar em outras culturas que não concedemos aos índios, quando congelamos suas culturas (Freire, 2000, p. 13).

O antropólogo deixa claro, no entanto, que a interculturalidade é uma construção de novos significados, uma ressignificação, na qual é construído o novo sem abandonar as próprias tradições. Todas as culturas passam por mudanças, portanto, a cultura indígena mudar não significa algo ruim desde que a mudança não seja imposta, como foi o caso da colonização, mas sim que possibilite ao sujeito uma margem de escolha, como sujeito de direito.

O quarto equívoco seria a ideia de que “os índios pertencem ao passado”, considerando a cultura indígenas como “obstáculo à modernidade e ao progresso”. Esse equívoco é respondido pelo afirmação Os índios representam passado e futuro, de forma

que a relação entre o Estado brasileiro, identidade nacional, não anularia a pátria que seria “pequena” (pelo menos em termos numéricos), mas não seria menor em qualidade. Os indígenas também “representam a riqueza da diversidade cultural de nosso país” (FREIRE, 2000, p. 19).

Para Bhabha (2001, p. 27), o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo, como um ato insurgente de tradução cultural, portanto, não considera o passado apenas como causa social ou estética, mas também como o "entre-lugar" contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O autor leva em consideração ainda o “estranho” quando há um momento de estranhamento inerente a diversas situações, como a extraterritorial e intercultural. Isso ocorre, por exemplo, quando um espaço doméstico sofre invasões da história ou quando o privado e o público tornam-se parte um do outro, fazendo a visão dividida ou desnorteada. Esses entre-lugares podem ser criados, por exemplo, por processos de hibridação que garantiriam a sobrevivência cultural de indígenas, no entanto:

Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a “diferença do outro” revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e significação. (BHABHA, 1997 apud Hall, 2003, p. 75).

Por fim, o quinto equívoco refere-se ao fato de o brasileiro não considerar a existência do índio na formação de sua identidade. “Como os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro, hoje, é se identificar apenas com o vencedor – a matriz européia – ignorando as culturas africanas e indígenas”, diz Freire (2000, p. 20). Ao mostrar um exemplo de um livro do Centenário que apresenta os indígenas como parte não integrante da nossa nacionalidade, e também propõe que o Brasil poderia eliminá-los, Freire (2000, p. 21) questiona: “Quando fala uma variedade regional do português, de onde veio essa forma de falar? É aí que afloram as heranças culturais, as marcas indígenas e negras, ao lado das européias”. Prova disso, o que poucas pessoas sabem, é o que ocorre em Mato Grosso do Sul com a presença do sotaque que destaca o “R”, chamado de caipira, como na pronúncia de “porta, porteira, portão”, ter aportes indígenas.

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