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Hip Hop na reserva: mediação e resistência

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Capítulo II – CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIOLÓGICA, ANTROPOLÓGICA E

3. Hip Hop na reserva: mediação e resistência

Há um processo de hibridismo na Reserva de Dourados que conseguiu misturar o guarani e o português e envolver, em sua maioria, a população jovem. E na etnia Guarani-

Kaiowá, em que apresenta tantos conflitos, principalmente, relacionados à demarcação de terras, além dos problemas sociais, o movimento surgiu para dar voz e ao mesmo tempo encaminhar jovens à educação, por exemplo, ao invés do mundo ilícito, como o das drogas. Em 2009, a CUFA1 (Central Única das Favelas) de Mato Grosso do Sul iniciou um projeto de oficinas de Hip Hop na Reserva, e dessas atividades nasceu o Brô MC´s, o primeiro grupo que lançou um disco (CD) de rap indígena no Brasil. Esse grupo, por meio de suas rimas, retrata o que seus integrantes acreditam ser a realidade indígena do Estado e levaram seu “recado” a vários lugares do país. O projeto foi apoiado pelo programa Ponto de Cultura2 Todas as Idades, gerido pelo Instituto para o Desenvolvimento da Arte e da Cultura (IDAC) e pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Em 2013, com outro projeto, a CUFA trabalhou com o curso de Arte e Cultura envolvendo os elementos do Hip Hop, dessa vez via Projovem3.

É analisada, então, uma tensão entre global e local, no caso do hip hop com os indígenas, diante das transformações da identidade. Hall ajuda a explicar esse tipo de fenômeno. O autor (2003, p.78 e 79) acredita que a ideia de que periferias, por exemplo, no caso do hip hop nas reservas, são lugares “fechados”, é uma fantasia colonial, mantida pelo ocidente, que gosta dos “nativos, puros, exóticos e intocáveis”. Portanto, uma noção hierárquica, imposta para que fosse considerada natural, assim, podendo ser levado em consideração também com relação aos indígenas. Na Reserva, próximos à cidade, os jovens se veem “obrigados” a falar, pelo menos, duas línguas, ou seja, aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, mesmo não exercendo direitos da cidadania, aprendendo a traduzir e a negociar entre elas. Isso é uma característica da cultura híbrida. Hall (2003, p.97) conclui ainda que “a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do global nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do local”.

Essa discussão abre caminho para falarmos sobre fronteira, movimentos voluntários ou forçados, sejam eles violentos, que envolvem pessoas ou objetos, práticas ou discursos. Dependendo do posicionamento político adotado na Reserva, os indígenas são obrigados a ultrapassar essas fronteiras. Se eles querem passar por um processo, como um concurso, eles necessitam de uma identidade como os não indígenas e, portanto,

1 A CUFA – Central Única das Favelas - que apoia o grupo de rap indígena é uma organização espalhada por todo o país. O Hip Hop é a principal forma de expressão da CUFA e serve como ferramenta de integração e inclusão social.

2 Programa que promove o estímulo às iniciativas culturais da sociedade.

3 Preparar o jovem para o mercado de trabalho e para ocupações alternativas geradoras de renda. Atualmente está vigente somente a ação Juventude Cidadã.

“abririam mão” da outra identidade, a indígena. Na lembrança da colonização é que essas comunidades permaneceriam unidas e fatos novos, inseridos do global para o local, por exemplo, seriam ressignificados em termos já existentes nesses locais. De acordo com Navarro (TEM...,2011):

No início da gravação do CD os caciques passaram a criticá-los. “Diziam que esse não era o nosso futuro. Meu avô, que é cacique, veio me perguntar por que a gente gravou isso. Foi aí que eu peguei um CD e falei ‘senta aqui que eu vou mostrar pra você. Presta a atenção nas letras. O que tá falando é coisa da nossa realidade, da nossa cultura’. E depois eu mostrei para todas as lideranças da região e mostrei a música e a letra. Numa reunião onde estavam todas as lideranças eles falaram: ‘está certo é isso mesmo que acontece’”, relata Clemerson. “Os mais velhos entenderam e sabem que a gente tem que mostrar que o índio é capaz em tudo. E pode ser professor, agente de saúde, advogado ou cantor de rap. E que nosso povo não é só isso ou aquilo, a gente é o que pode fazer a diferença”, completa o irmão.

A relação do sujeito formado pelo núcleo interior e exterior, entre o mundo pessoal e o mundo público (HALL, 2003 p. 11), faz com que seja considerado um sujeito pós- moderno, fragmentado, composto por “várias identidades”. O autor (2003, p. 77) considera ainda que há uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da alteridade:

[...] Há, juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de nichos de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre o “global” e o “local”. Este local não deve, naturalmente, ser confundido com velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas. Em vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização. Entretanto, parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações “globais” e novas identificações “locais” (HALL, 2003, p. 77 e 78).

O Hip Hop é inserido na Reserva e pode ajudar na continuação da tradição, condicionante o uso de instrumentos indígenas e a própria língua guarani misturada ao português, ou seja, o gênero foi ressignificado dentro de uma opção a dar voz ao movimento, mas com termos e objetos já existentes (locais) sendo usados.

A oralidade é uma forma importante de construção de conhecimento na cultura popular brasileira e também nas culturas indígenas e africanas. Ao recusar o uso da escrita como padrão preferencial para a partilha de conhecimento, há um posicionamento político do hip hop contra os modos hegemônicos de produção de conhecimento, que tendencialmente ignoram a “existência de outras explicações, não científicas da realidade” (MOASSAB, 2011, p. 62).

Ao mesmo tempo em que o hip hop pode ser visto como um movimento de resgate/fixação da identificação e cultura indígena, por meio da oralidade também significa uma nova forma de expressão, que poderia levar ao rompimento de tradições. Por outro lado, quando propõe mudança social pode encontrar dificuldades de aceitação. No Brasil, pelo desconhecimento ou até mesmo desprezo por essa cultura, ganha espaço mensagens negativas a respeito desses povos. Grande parte das pessoas ainda acredita nos sujeitos “imutáveis” que, segundo o antropólogo Arruda (2001, p. 43), “estariam destinados a perder sua cultura própria assimilando-se a onda civilizatória ocidental por meio do processo de aculturação”. Ele aponta que, nessa perspectiva, é importante refletir sobre a reordenação dos indígenas, levando em consideração o simbólico-ideológico, já que:

Mas, na verdade, as sociedades tradicionais também comportam desigualdades, hierarquias, tensões, seja nas relações entre os sexos, seja em termos de classes de idades, de hierarquização de grupos de parentescos etc. E, como todas as outras sociedades, são todo tempo atingidas por acontecimentos nos planos do seu ambiente natural, das relações com outras sociedades, das contradições resultantes das relações entre seus membros, da deteorização de seus órgãos sociais, e das configurações latentes que procuram realizar-se. No espaço sociocultural ampliado constituído pela situação de contato, essas sociedades reconstroem sua auto-imagem como sujeitos coletivos definidos por suas tradições, que, entretanto, se reinterpretam no campo sociopolítico da formação da identidade étnica, acompanhando e orientando os processos de reordenação social ali desencadeados (ARRUDA, 2001, p. 44).

Essa reflexão pode ser encontrada na situação em que vivem indígenas de Dourados que têm contato frequente com os não-indígenas devido à proximidade da reserva com o município, enfrentando pressões sociais e culturais como vistas anteriormente no texto, principalmente, quanto a imagem, a de um indivíduo “atrasado” ao tempo da sociedade nacional. Mesmo enfrentando processos de colonização, como a de Dourados, em que foram reinstalados em uma reserva, os indígenas continuam nesses espaços tentando manter suas tradições, recriando alguns laços, mas como perdem a autonomia política e econômica, por serem de responsabilidade da União, são forçados a se reinventarem, passando por processos contraditórios e ambíguos, como a utilização de duas línguas, o guarani e o português. Sobre essas situações, Arruda (2001, p. 51) entende que:

De um lado estabelecem laços permanentes de articulação e dependência com o mercado, de outro, tornam-se dependentes tanto na proteção do Estado (demarcação e garantia de territórios, atendimento a saúde, projetos de desenvolvimento econômico etc.) quanto de entidades indigenistas civis e

agências de outra ordem, com as quais podem conjunturalmente estabelecer alianças.

Esse novo espaço, marcado por contradições, também há um lugar para compatibilizar as relações entre a sociedade nacional e indígena, o que Arruda (2001, p. 51) chama de campo de intermediação, que “torna-se impossível distinguir sociologicamente as dinâmicas internas à vida tribal das externas”. As distinções se mantêm no campo da história cultural e da política de resistência. Conceitos essenciais a serem entendidos, nesse contexto, podem ser encontrados nas teorias de Pierre Bourdieu (1989) quando trata de questões como espaço social, campo, entre outros assuntos.

Ao falar de espaço social, Bourdieu (1989, p. 133) explica que podemos representar o mundo social em forma de um espaços, constituídos na base da diferenciação e distribuição de propriedades, ao dar a força e o poder ao outro. Os agentes e os grupos de agentes são definidos por suas “posições relativas neste espaço” (p. 134), portanto, luta de forças, relativas, que podem sugerir possíveis mudanças. Quando pensamos em sociedade indígena, a quem a sociedade brasileira não atribui mudanças, Bourdieu (2002, p. 83) ainda institui o conceito de “habitus”, que, segundo ele, é um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado a experiências novas e permanentemente afetado por elas. “Ele é durável, mas não imutável”. É um conhecimento adquirido, um haver, um capital. Podemos compreender, então, que um habitus indígena vem mudando desde o processo de colonização de Dourados e da criação da Reserva, logo com a introdução da língua portuguesa, dos usos e costumes implantados ao que antes consideram os índios naturais, em liberdade, como roupas onde antes não era necessário, além da dependência a alguns órgãos como a Funai (Fundação Nacional do Índio).

Cancilini acredita na produção de bens simbólicos, como no caso do grafite, considerado pelo autor como “lugares de interseção entre o visual e o literário, o culto e o popular” (CANCLINI 2006, p.336) e na expansão de gêneros impuros, como a mudança no uso de roupas, tendo como responsáveis os processos de descolecionamento e desterritorialização na América Latina. Nesse contexto, o multiculturalismo encontra o espaço de diálogo entre as culturas, bem como a tolerância às diferenças, sabendo que “certas tendências globalizadoras da economia reforçam algumas fronteiras ou levam a inventar outras novas” (CANCLINI, 2006, p.34).

Ao que se entende, o poder, portanto, não funciona somente do não-índio sobre o índio, ou da mídia aos receptores. Há um entrelaçar de ideias, negociações, que não

dariam certo com apenas um lado, ainda mais com os novos aportes tecnológicos da contemporaneidade e seus intercâmbios cotidianos. Quando um grupo indígena, por exemplo, canta um rap levando sua realidade, seu dia a dia, sua cultura tradicional, por um lado, perde a relação exclusiva de seu território, mas, por outro lado, ganha espaço, seja na comunicação ou conhecimento, transpondo as fronteiras territoriais. Uma das hipóteses de Canclini é quanto à incerteza, quanto ao sentido e ao valor da modernidade deriva também de cruzamentos socioculturais na mistura do tradicional e do moderno:

Como entender o encontro do artesanato indígena com catálogos de arte de vanguarda sobre a mesa da televisão? O que buscam os pintores quando citam no mesmo quadro imagens pré-colombianas, coloniais e da indústria cultural; quando as reelaboram usando computadores e laser? Os meios de comunicação eletrônica, que pareciam destinados a substituir a arte culta e o folclore, agora os difundem maciçamente. O rock e a música “erudita” se renovam, mesmo nas metrópoles, com melodias populares asiáticas e afro- americanas (CANCLINI, 2006, p. 18)

Nessa reorganização, a relação do sujeito formado pelo núcleo interior e exterior, entre o mundo pessoal e o mundo público (HALL, 2003 p. 11), faz com que seja considerado um sujeito pós-moderno, fragmentado, composto por “várias identidades”. Pode ser considerado, seguindo as ideias de Hall (2003 p. 89), como produto das novas diásporas, em que “devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas línguas, traduzir e negociar entre elas”. Um exemplo é o caso dos indígenas ao usarem dois idiomas, o português e o guarani.

[...] Há, juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de nichos de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre o “global” e o “local”. Este local não deve, naturalmente, ser confundido com velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas. Em vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização. Entretanto, parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações “globais” e novas identificações “locais” (HALL, 2003, p. 77 e 78).

Podemos dizer, então, que os indígenas necessitam negociar espaços e redefinir padrões de relacionamentos o tempo todo, sendo o centro da crise o questionamento sobre o ser guarani, querendo ou não, mesmo que no inconsciente, fazendo parte de uma comunidade que tem uma nova configuração cultural, até mesmo com visões cosmopolitas.

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