• Nenhum resultado encontrado

As lideranças opinam sobre o Hip Hop

No documento Download/Open (páginas 102-107)

Capítulo III – “ALDEIA UNIDA MOSTRA A CARA” NO HIP HOP

5. Tradições e/ou tensões culturais na reserva?

5.1. As lideranças opinam sobre o Hip Hop

Se nos jovens podemos enxergar o capital pessoal, que pode passar, mas deixar herança, em outras pessoas, como caciques e professores, acumulou um capital simbólico de reconhecimento e fidelidade.

Brand (2001, p. 69) mostra que a questão do território refletiu em várias mudanças na reserva, inclusive no sistema de chefia, com a imposição da figura do capitão que inviabilizou a “religião tradicional, entendida aqui como as práticas e crenças, por intermédio das quais expressavam a sua relação com o sobrenatural”, além do que também constituíam referenciais básicos de cultura. Segundo Mota (2011, p. 255), lideranças/rezadores são hierarquias internas estabelecidas culturalmente que se diferenciam pelas qualidades entendidas como necessárias para manter a coesão do coletivo.

Na organização da reserva indígena de Dourados, no entanto, de acordo com o contato com a Funai, são consideradas várias lideranças, como religiosas, políticas ou tradicionais (cacique, capitão ou rezadores), que são figuras que parecem enfraquecidas ao notar uma mudança na estrutura política, religiosa e econômica na reserva, mas que é considerada pelo órgão tutor, em momentos de entrevistas e pesquisas, como a voz da reserva.

A presença de outras religiões, por exemplo, não extinguiram os conselhos de rezadores, as crenças divinas, embora haja a diminuição do contato, o que foi percebido durante a entrevista na fala das lideranças. No caso das lideranças, a comunidade escolhe o capitão de quatro em quatro anos.

A respeito do hip hop, no entanto, as lideranças não foram ouvidas, mas enquanto para uma parte delas teria que ser, a maior parte não toca no que seria “ferida” para duas delas. L1 não era liderança na época; L2 é preocupado quanto às questões relacionadas à reserva não passarem por eles, como quando, para ele, entra um “tipo de vida diferente” ou quando alguém, como no caso deste trabalho, vai realizar uma pesquisa. Segundo L2, tem que ter explicação:

[...] porque a cabeça do índio é assim. Ele focaliza aquilo e é aquilo. E se não tivesse uma pessoa para instruir, vamos supor assim igual o hip hop. Nós entende assim que ela veio para melhora para os jovens. Não teve essa explicação. E tem muitos jovens nossos que assistem muitos filmes. E os hip hop do filme só a violência, onde eles caminharam nesse caminho. Não teve uma explicação.

L3 é mais enfática. Diz logo que na reserva o hip hop só traz tensão social e, contrariando a fala dos jovens, diz que eles não estão mais obedecendo, seja cacique, liderança ou qualquer outra pessoa. Esse fator, junto com as drogas, para ela, é o fim.

L4, particularmente, aceita o hip hop, mas diz que a primeira coisa que o grupo deveria ter feito era ouvir as lideranças, os Nãnde Ru e Ñande Sy, e que não tem como o guarani seguir o costume dos não índios.

Um dos fatores sobre o qual ele se alicerça é a posse do território, que legitima sua presença e sua origem e coloca o “outro” na incômoda e desfavorável posição de intruso. Além disso, cada um dos caracteres de sua identidade forma um patrimônio de valor inestimável, capaz de suportar a pressão exercida pelas disparidades já citadas entre as situações políticas, econômicas e sociais. O processo histórico em que tudo isso se deu criou um ambiente de coesão grupal, em que cada elemento compõe e vê com os demais uma realidade praticamente imutável. Essa é a força de resistência que mantém a voz do índio na superfície do discurso, quebrada, eventual, porém sistematicamente pela força de penetração da voz do branco. Essa força mantém, ainda, a identidade como um todo na superfície, na exterioridade (origem genética e territorial), porque é mantida na interioridade pelos elementos básicos de sua formação: o idioma e a ideologia (LIMBERTI, 2009, p.44).

As lideranças L5 e L6 também não foram ouvidas. L5 diz que aceita e revela até que o neto gosta. Essa luta, que opõe as opiniões de jovens e lideranças, é uma luta simbólica pela conservação ou transformação do mundo social. O capital político é uma forma de capital simbólico, baseado na crença e no reconhecimento (BOURDIEU, 1989, p. 187).

O hip hop, segundo L1, ajuda na manutenção da tradição indígena, porque cantam o próprio idioma. Isso ajudaria na melhor compreensão até dos mais velhos. Diferente de L2, que acredita que o hip hop seja uma tensão, pois o indígena que entra no movimento tem outra visão, outro estilo de vida ou outros caminhos que fogem da cultura, da tradição e do costume indígena: “ele já não quer mais ser o que ele é”. Ele diz que não há opções para resgatar a tradição:

O governo nosso se esqueceu dos índios nessa parte. Além do social, que é o esporte, lazer, não tem como, vou ali e vou brincar uma bola, jogar um baralho ou dominó. O jovem hoje fica parado e o hormônio trabalha com tanta força que tem que achar uma alternativa. Onde o sistema imprime o indígena. Imprime e espreme. Não tem como sair. E onde eles acham alternativa? Vou repetir de novo: beber, drogar e dançar e se prostituir.

Para L3, também é uma nova tensão social. Ela fala que existe um projeto de danças culturais para as crianças indígenas com a finalidade de fortalecimento para não

terem “doenças mentais”. No pedido feito ao governo, retratado por ela como o “lá de Brasília”, eles pedem uma casa de reza e material de artesanato para a reserva: “um projeto que a gente vem pedindo de tanto susto que levamos na aldeia”.

L4 fica no meio termo. Um pouco ajuda e no outro não segue a cultura guarani- kaiowá: “esse hip hop é muito diferente. Esse daí é o karay re co que está usando. Karay re co é o costume dos brancos”. Para explicar, ela mesma utiliza o Guarani, traduzido por uma testemunha/intérprete, que acompanhou o trabalho. Na opinião como Guarani Kaiowá, para quem é tradicional, dentro da tradição religiosa, o hip hop não é tão bom. E explica que à noite na reserva podem acontecer vários fatores negativos que não estão ligados ao ser guarani:

E inclui agora já a questão do sistema, do modo de ser do índio. Então até mesmo eles foram ensinados na escola. Eles vão ali, vão pintar, vão desenhar e vão se sentir bem porque faz parte da realidade ali da vida deles, do modo de ser tradicional, enquanto que no hip hop não. No hip hop ele é, foi trazido de lá, de fora para dentro, e é diferente e pode através dele acontecer coisas não boas na sociedade indígena. E que já o tradicional não. Traz ensinamento, traz as coisas boas, e ai a pessoa se distancia das coisas que não é tão boa. Tipo os vícios do cigarro.

Quando a entrevistadora faz uma pergunta em português, a liderança pede para a testemunha/intérprete perguntar em Guarani e dá orientações a um jovem para buscar um CD de um grupo de músicas/danças tradicionais, além de já ligar o som para que pudesse ser ouvido enquanto respondia. É um grupo chamado de “Ñemongó’y”. Ela diz: “vocês escutou esse daí... esse daí é nosso. Daqui. Ñande Ru ensinou desde pequeno para ser”. L5 também fala em Guarani. Mesmo assim, diz que o hip hop é importante, porque não é só de Dourados que fala, cantam em outras reservas sobre a realidade deles. Pedir para falar na língua tradicional se explica, segundo Limberti (2009, p. 26), porque:

É por meio dela que mantêm sua unidade e, por que não dizer, sua identidade. Entre si, comunicam-se apenas em seu próprio idioma, independentemente do lugar em que estejam e da presença do branco. Essa atitude representa uma deliberada ostentação de poder, pois a ambientação lingüística delimita o campo de atuação de seus falantes, fazendo deles um grupo fechado e impenetrável. Além de neutralizar a atuação do grupo circundante de idioma diverso, fragiliza-o em sua presença, quer pelo isolamento em que o coloca, quer pela incontestável invulnerabilidade que sua atitude representa. Aprendem a língua portuguesa apenas quando vão à escola e só fazem uso dela para se comunicar com brancos. A imposição de uma segunda língua sobre a língua materna extrapola o âmbito léxicogramatical e atinge o âmbito ideológico, posto que, enquanto outro código de significação, ela consiste em outro sistema de representação.

Quando há uma mistura, de acordo com L6, é preciso se preparar, ter apoio, principalmente quando usam o guarani e o português. Para ele, tem que entender a raiz, caso contrário corre-se o risco de deixar as coisas boas para trás e que “pode aprender se tiver cultura indígena” e “não “imitar”: “porque uma pessoa imitando outro, se perde, pelo caminho mesmo”. Como liderança, ele cobra o poder público e afirma:

Ele não pode pegar o índio e ensinar pela metade. Tem que pegar e ensinar para ele sair lá do outro lado. Lá ele ia entender. Mas se pegar e ensinar índio e deixar no meio do caminho o resto ele não vai entender. Ai ele se perde tudo. Igual como gente, esse pessoal do canavial ai. Alguns estão fazendo faculdade, estudou primeira parte, primeiro grau, inteirou primeiro grau e acabou, saiu e foi para a cana. E lá na cana ele começou a bagunçar. Essas coisas que não pode. Se ele tiver aprendendo, ensinando, vai continuando, ele poderia sair do outro lado.

Em contraposição à cosmologia Guarani, o hip hop, quando constitui um grupo identitário com base na localidade (reserva), na classe (pobres) e na etnia (indígenas), na potencialização do diferente, a resistência opera com mais força de ação. Nesse caso, baseado em conceitos de Moassab (2011, p. 110), ao afirmar que não há intenção de parecer ou imitar o outro (do centro, ricos ou brancos), mas de criar seus próprios valores a partir de dentro. Objeto de tensão quando nas palavras de Santos (2006, p.113 apud Moassab 2011, p. 111), “temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.

Um senhor indígena ouve a conversa e interfere a entrevista dizendo à liderança que a igreja derrubou um pouco a cultura indígena e com o hip hop foi ainda mais. Então, ele continua revelando um conflito dentro da reserva, na “imitação”, parece uma condição de impotência na identificação do outro e na falta de ensinamento.

Tem meio uma briga, né. O evangélico entra aqui falando de Cristo. E dentro de nossa cultura é Ñandejara. Ai esse Ñandejara não é Cristo. Esse Cristo não é Ñandejara. É a mesma, então tem que ser por isso que os evangélicos que não é nosso, não usam nossa língua também, vem trazendo, aplica dentro da aldeia de qualquer jeito. Hoje tem muito. Hoje pessoa vai atrás do barulho só. Talvez dentro da igreja tem violão, tem guitarra, tem som, tem microfone, tem tudo isso. Ele vê aquilo lá e eu vou lá. Eu também vou. E vamos embora. Agora, principalmente o nosso Deus que cuida de nós, para nós viver e para nós comer e beber para nós ficar tranquilo.

Para o esse senhor, os jovens não procuram mais as casas de reza por medo ou vergonha e alerta para a tradição que seu bisavô passava: “olha, que Ñandejara quando está com gente. Quando Ñandejara largar você para lá, você já trupica, você já encontra cobra, você já encontra outras coisas, coisa ruim. Quando Ñandejara está com você, você

não encontra nada”. L6 afirma que, por isso, preocupa-se quando vê algo de mal e a situação dos jovens é a mais delicada.

O “medo cósmico”, para Bauman (2005, p. 78), é também o horror do desconhecido, da incerteza e ainda há um terror mais fundo, o do desamparo: “o sagrado é o que transcende nossos poderes de compreensão, comunicação e ação”. Na questão relacionada à entrada de outras religiões na reserva, podemos dizer, baseados em Bauman (2005, p. 92), que as três grandes religiões – cristianismo, islamismo e judaísmo – têm os seus fundamentalismos também, sendo efeito de um lado da “erosão”, do rígido cânone da fé, que é reafirmado diariamente, além dos “selecionadores involuntários compulsivos” que se tornaram os indivíduos em um ambiente social fragmentado e incontrolável. A vida, sendo ela insegura, o valor que se percebe ausente é o da fé, da confiança, da autoafirmação e nesse fundamentalismo são oferecidos esses valores. Transmite-se, então, uma sensação de segurança, da Terra Sem Males dos Guarani, “dentro dos muros altos e impenetráveis que isolam o caos reinante lá fora” (2005, p. 93).

Essas igrejas tornam-se atraentes para os pobres, privados de dignidade e por vezes humilhados, justamente porque, para essas pessoas, o local torna-se um abrigo, assumindo obrigações e deveres do Estado. Também oferecem, segundo o autor, o que a sociedade recusaria, ou seja, um propósito de vida (ou morte) significativa, além de defender sua fé contra as identidades vigentes, estereotipantes ou estigmatizantes. Até mesmo podem voltar as acusações contra os acusadores, dizendo que, no caso aqui estudado, “o índio é lindo” e, assim, transformando-os de passivos a ativos.

A identidade seguiria como caminho de emancipação, mas também de opressão. Bauman (2005, p. 94) acredita que o problema é como domar e controlar os processos da globalização, transformando-os de ameaça em oportunidade. O autor acredita que a ideia de pensar globalmente e agir localmente para solucionar problemas gerados globalmente está equivocada. “Qualquer um que defenda identidades locais como um antídoto contra os malefícios dos globalizadores está jogando o jogo deles – e está nas mãos deles” (BAUMAN, 2005, p. 95). O autor lembra-se das palavras de Hall e alerta para que se evite, ao máximo, esse problema:

Já que a diversidade cultural é, cada vez mais, o destino do mundo moderno, e o absolutismo étnico, uma característica regressiva da modernidade tardia, o maior perigo agora se origina das formas de identidade nacional e cultural – novas e antigas- que tentam assegurar a sua identidade adotando versões fechadas de sua cultura e da comunidade e recusando o engajamento...nos

difíceis problemas que surgem quando se tenta viver com a diferença (HALL

apud BAUMAN, 2005, p. 105)

No documento Download/Open (páginas 102-107)