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2. Metafísica de Eventos

2.2. Eventos e Outras Categorias Ontológicas

2.2.1. Eventos e Objetos

Atualmente olhamos para as coisas que subsistem no fluxo como objetos enquanto que consideramos o próprio fluxo da experiência como algo que se estende no espaço- tempo. Poderíamos, de acordo com Whitehead (1919) supor que o fluxo da experiência seria adequadamente caracterizado recorrendo a entidades como eventos.

Para assinalar a distinção entre eventos e objetos, podemos recorrer a Davidson na sua resposta a Quine, que os distingue segundo os seus modos de existência: “pelo que eventos e objetos possam estar relacionados a localizações no espaço-tempo de modos diferentes; pode ser, por exemplo, que eventos ocorrem no tempo em um lugar, enquanto objetos ocupam espaços em tempos”60 (DAVIDSON, 1985, p. 310). É o modo como estas

duas entidades se relaciona com o espaço-tempo que parece distingui-los: “objetos ordinários tem fronteiras espaciais relativamente claras e fronteiras temporais não claras; eventos têm fronteiras físicas não claras, mas fronteiras temporais claras” (CASATI & VARZI, 2010, p. 2). Isto significa que objetos diferentes não podem ocupar a mesma posição do espaço ao mesmo tempo, mas podem mover-se ao longo do tempo. Eventos não se podem mover no tempo, mas estendem-se ao longo do espaço, podendo sobrepor-se com outros eventos. Por subsistirem no tempo, parece que podemos conceber objetos como parte do espaço, contudo, eles são “firmes e internamente coerentes” (QUINE, 1970). O mesmo não se pode dizer de eventos que, por sua vez, passam por várias mudanças ou etapas.

Conforme já vimos, eventos, também chamados de acontecimentos, são “coisas que acontecem”, ou que se sucedem “em determinada região do espaço ao longo de determinado período de tempo” (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 14). Em eventos aos quais nos referimos, como “A queda do império romano do ocidente”, “A batalha de Aljubarrota”, “A primeira eleição de Lula para presidente”, “O queijo comido no café da manhã”, figuram indivíduos que podem ser considerados como objetos, “o queijo”, “Lula“, “império romano do ocidente“, ou “Aljubarrota“. Poderíamos ser levados à conclusão de que objetos participam em eventos. Independentemente de qual deve ser tomado entidade prioritária, ou se devem ambos figurar como entidades numa ontologia, parecem ambos serem entidades espaciotemporais. Contudo, objetos particulares também podem ser considerados eventos, no seguinte sentido: “a vida de Justiniano”, “o queijo desde o seu fabrico à sua decomposição”, e assim, objetos passam a ter fronteiras temporais mais claras. Caso demos de caras com o queijo depois da decomposição, dificilmente o reconheceremos como queijo. Porque tendemos então em distinguir estas duas categorias?

Analisemos os seguintes exemplos, de modo a tentar dissipar algumas dúvidas.

60 Tradução do autor. No original, “For events and objects may be related to locations in space-time in different ways; it may be, for example, that events occur at a time in a place while objects occupy places at times”.

O tiro que matou o Arquiduque da Áustria (5)

A bala que matou o Arquiduque da Áustria (6)

Como podemos constatar (5) e (6) são sentenças praticamente idênticas, contudo, a primeira refere-se a um evento, que é um tiro, e a segunda a um objeto, que é uma bala. Contudo, eles são mais do que tipos de objetos e de eventos, são espécies61 relacionadas com um evento maior que é “a morte do Arquiduque da Áustria”. Em quê um tiro é diferente de uma bala?

Para o tiro, é necessário que o atirador coloque a bala na câmara (no tempo ), desloque a patilha de segurança, faça pontaria ao alvo, e pressione o gatilho. O evento termina com a bala acertando no Arquiduque da Áustria (no tempo , que é posterior a ). Aqui a bala é um ator no evento do tiro, mas se a bala, como objeto que é, não tivesse conservado as condições mínimas para o tiro, a arma poderia ter encravado, e assim, o estado de conservação da bala foi importante para o evento: pelo menos no intervalo de a , na história da bala, esta deve ter mantido as condições para sua utilização. Balas são normalmente concebidas para esse efeito, as suas propriedades permanecem idênticas durante um certo período de tempo, depois do qual se deterioram, ou mudam. Parece que é o modo como percepcionamos e entendemos as condições de uma certa gama de eventos persistem ou mudam, que nos permite distinguir eventos de objetos. Talvez seja neste sentido que Quine desconsidera existirem diferenças metafísicas essenciais entre objetos e eventos (QUINE, 1960).

Contudo, se assinalarmos as diferenças entre eventos e objetos, assim como eventos participam em outros eventos, objetos também participam em eventos. Não é comum encontrar-se sentenças sobre eventos que não fazem referência a elementos persistentes, como objetos (ou pessoas, como por exemplo “Brutus chorou a morte de César”). E assim, como a própria linguagem natural assinala, uma ontologia que confiasse apenas em eventos seria difícil de ser erigida.

61 A palavra evento, ou “acontecimento é, tal como a palavra “palavra” ambígua entre uma interpretação em que é tomada no sentido daquilo a que é usual chamar “acontecimento-tipo”, e uma interpretação em que é tomado no sentido do que é usual chamar “acontecimento-espécie”. Acontecimentos-tipo são entidades universais, no sentido de repetíveis ou exemplificáveis, e abstratas, no sentido de não localizáveis no espaço- tempo. (...) Acontecimentos espécime são por sua vez entidades particulares, no sentido de irrepetíveis ou não exemplificáveis, e concretas, no sentido de datáveis e situáveis no espaço.” (BRANQUINHO, MUCHO & GOMES, 2006, p. 14-15). Acontecimento-tipo e acontecimento-espécime, também podem ser chamados de evento-tipo ou de evento-espécie.

Apesar da grande abrangência que permite uma ontologia de eventos, existem outros tipos de entidades com naturezas diferentes e que permitem estabelecer vários tipos de relações com o mundo. Para já consideraremos a assimetria entre eventos e objetos (associada à percepção) que lhes permite serem indivíduos, como sugere a linguagem ordinária.