• Nenhum resultado encontrado

O Holismo e a Indeterminação do Mental

3. O Monismo Anômalo, Teses e Objeções

3.2. As Teses da Indeterminação, do Anomalismo do Mental e da Superveniência

3.2.1. O Holismo e a Indeterminação do Mental

Já aqui falámos sobre o holismo e a indeterminação no contexto da filosofia de Quine. Então, o holismo era uma exigência teórica relacionada com a simplicidade ontológica e a indeterminação era uma consequência de divergências entre a teoria, ou outra estrutura explicativa, e o fluxo da experiência. Contudo, e aparentemente, Davidson teria conseguido contornar os problemas da indeterminação de Quine fazendo uso do princípio da caridade e da interpretação radical. Neste sentido, interpretação radical opõe- se à tradução radical. O argumento do monismo anômalo suscita o retorno a esta questão, dado que assumimos, com o monismo, o compromisso da descrição e explicação da ação, da atribuição de eventos mentais e a sua relação com a racionalidade do mental. Deste modo, devemos questionar-nos. Será que Davidson contorna, de fato, os problemas associados à indeterminação do significado?

O retorno a este problema tem a ver com a própria natureza do mental. Segundo Davidson (1970b), o aparecimento de estados mentais espécime só podem explicar o comportamento no contexto de outros estados mentais, dado que dependem de uma rede complexa de interrelações. É esta interdependência “sem limite” (DAVIDSON, 1970b, p. 217) que caracteriza o holismo do mental, e a razão pela qual não pode haver uma redução (pelo nome de redução definicional) completa de estados mentais a termos behavioristas. Para Davidson, “o behaviorismo definicional dá-nos, na melhor das hipóteses, pistas sobre porque não devemos esperar conexões nomológicas entre o mental e o físico”174 (DAVIDSON, 1970b, p. 217). Contudo, ele não nos dá nenhum argumento decisivo, limitando-se, no final de contas, a assinalar a divergência entre os papes dos vocabulários mentalista e fisicalista:

Não existem leis psicofísicas estritas devido aos compromissos dispares dos es- quemas mentais e físicos. É uma característica da realidade física que a mudança física possa ser explicada por leis que a conectem com outras mudanças e condi-

173 Lembremo-nos que, segundo Davidson (1963), razões primárias são causas da ação.

174 Tradução do autor. No original, “definitional behaviorism provide at best hints of why we should not expect nomological connections between the mental and the physical”.

ções fisicamente descritas. É uma característica do mental que a atribuição dos fenômenos mentais tenha que ser responsável pelo background de razões, cren- ças, e intenções do indivíduo. Não pode haver relações estreitas entre os mundos se cada se mantém leal à respetiva fonte de evidência175 (DAVIDSON, 1970b, p. 222).

Neste sentido, Davidson aponta para uma indeterminação da tradução à la Quine (1960), segundo a qual existem duas estruturas empiricamente adequadas para a atribuição de predicados mentais e físicos à ação humana. Consequentemente, e fazendo uso da tese do holismo do mental, não haveria um mecanismo sistemático que permitisse decidir qual das estruturas é mais adequada que a outra, ou seja:

Não existiriam fatos físicos, dentro do corpo ou da cabeça de uma pessoa ou lá fora no mundo exterior, que possam decidir se as palavras daquela pessoa se re- ferem a um determinado conjunto de objetos em vez de outro conjunto, ou se um, em vez de outro, conjunto, sistematicamente interdependente, de estados mentais, com diferentes distribuições de valores de verdade, é verdade dessa pessoa176 (YALOWITZ, 2012, p. 17).

Assim, e embora coerente com a possibilidade de diferentes descrições de um evento, a tese da indeterminação permite-nos antever diferentes estruturas mentais associadas a diferentes atribuições semânticas, o que nos leva a concluir que o conheci- mento sobre todos os aspetos físicos de um evento não nos dão a saber se determinado estado mental é verdadeiro de uma determinada pessoa, ou se aquele é o significado de suas palavras.

Neste sentido, Davidson evoca Nelson Goodman para mostrar que “alguns predicados, ‘verdul’ por exemplo, não são adequados a leis (e logo, um critério de predicados adequados poderiam levar a um critério do legiforme)”177 (DAVIDSON, 1970b,

p. 218). No exemplo desenvolvido no Apendix: Emeroses by Other Names (DAVIDSON, 1966), Davidson desenvolve o problema recorrendo a uma generalização do tipo ‘Todas as esmeraldas são verdes’ é legiforme, dado que todas as instâncias a confirmam, mas outra

175 Tradução do autor. No original, “There are no strict psychophysical laws because of the disparate commitments of the mental and physical schemes. It is a feature of physical reality that physical change can be explained by laws that connect it with other changes and conditions physically described. It is a feature of the mental that the attribution of mental phenomena must be responsible to the background of reasons, beliefs, and intentions of the individual. There cannot be tight connections between the realms if each is to retain allegiance to its proper source of evidence”.

176 Tradução do autor. No original, “there are no physical facts, inside a person's body or head or outside in the external world, that could settle whether a person's words refer to some determinate range of objects rather than some other range, or whether one rather than another systematically interdependent set of mental states, with distinct distributions of truth values, is true of that person”.

177 Tradução do autor. No original, “some predicates, ‘grue’ for example, are unsuited to laws (and thus a criterion of suitable predicates could lead to a criterion of the lawlike)”.

generalização ‘Todas as esmeraldas são verdul’ não é legiforme. A sutileza do argumento está em que ‘verdul’ (verde + azul) significa ‘observado antes do tempo e verde, caso contrário azul’, e deste modo, o predicado não seria adequado a esmeraldas mas a ‘esmefiras’ (esmeraldas + safiras). Assim, ‘Todas as esmefiras são verdul’ seria legiforme.

Este exemplo traz desenvolvimentos importantes ao argumento do MA, como por exemplo embasar a discussão de como seriam generalizações psicofísicas legiformes, contudo, mas por ora, bastar-nos-á enfatizar os aspetos mais relevantes relacionados com o problema da indeterminação: termos e predicados não podem ser separados da estrutura semântica à qual estão vinculados e que alguns predicados não foram feitos para se relacionar fora da sua estrutura. Portanto, e com respeito ao mental, a indeterminação parece manter-se. Contudo, e paradoxalmente, parece que deixa de ser possível a existência de leis psicofísicas, dado que não poderíamos prever ou explicar a transição entre essas estruturas semânticas.

Uma outra consequência do exemplo apresentado acima, é que passamos a não poder concentrar o papel ontológico em predicados, ou propriedades, já que estas dependem da estrutura usada na explicação ou descrição.