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Indeterminação do Significado e Inescrutabilidade da Referência

1. Eventos Físicos e Eventos Mentais

1.2. Significado, Referência e Descrições Definidas

1.2.3. Indeterminação do Significado e Inescrutabilidade da Referência

O impacto de Dois Dogmas do Empirismo (QUINE, 1953) foi estrondoso. As críticas feriram as próprias ambições do positivismo lógico em livrar a filosofia e a ciência da mitologia, quando Quine (1953) afirmava que as escolhas ontológicas eram artigos de fé (QUINE, 1953, p. 59). Contudo, a importância de Quine no contexto do pragmatismo não ficou por aqui. Existe um programa de abordagem aos problemas do significado e da referência.

Em Palavra e Objeto (QUINE, 1960) Quine lança novos argumentos que acabam por defender as teses da indeterminação do significado e da inescrutabilidade da referência. Contudo, o projeto de Quine neste livro não se esgota nestas duas teses. O pragmatismo prometido no Dois Dogmas do Empirismo (QUINE, 1953) arredou uma postura sobre a génese dos comportamentos linguísticos e aquisição da linguagem baseados na experiência. Esta posição está presente na primeira frase do prefácio “a linguagem é uma arte social. Ao adquiri-la, nós dependemos inteiramente das indicações disponíveis intersubjetivamente do que dizer e quando” (QUINE, 1960, prefácio), ou mais explicitamente no corpo do texto: “qualquer teoria realista da evidência tem de ser inseparável da psicologia de estímulo e resposta, aplicada a frases” (QUINE, 1960, p. 40).

Deste modo, não é estranho que Quine tenha aderido a uma explicação behaviorista do comportamento verbal. O que contrasta claramente com o tipo de explicação mentalista tradicional, que afirma que significados existem como predeterminações na mente. Esta orientação contra o vocabulário mentalista já estava latente na abordagem aos dois dogmas, ou em Sobre o Que Há (QUINE, 1948) (na verdade, em um pouco por toda a sua obra até então) e tinha sido aprofundada em On Mental Entities (QUINE, 1952), onde Quine fornece argumentos para o abandono da explicação psicológica em termos de sensações. Contudo, esta genética dos termos psicológicos (mentalistas) sustentada na visão pragmatista de Quine serve um objetivo mais largo, a uma naturalização da linguagem e eliminação de termos intensionais.

Quine (1960) começa por defender um tipo de indeterminação associado à correspondência entre teorias. “O método científico é o caminho para a verdade, porém ele não proporciona, mesmo em princípio, nenhuma definição única de verdade. Qualquer assim chamada definição pragmática de verdade está condenada também a falhar” (QUINE, 1960, p. 48). Sendo que esta falha na correspondência está associada aos desideratos das próprias teorias, o que conduziu a escolhas ontológicas simplificativas de familiaridade dos princípios, e epistemológicas (quanto ao processo de evidência) específicas, resultando

num vocabulário específico, que é usado com objetivos específicos no processo de explicação. Esta especificidade pode ser encontrada em qualquer ramo da ciência, quer falemos das ciências humanas, quer falemos das ciências ditas exatas27, mesmo que os pressupostos básicos das teorias não sejam diretamente conflitantes. O caso da teoria da relatividade e da mecânica quântica é um mau exemplo de não conflito, já que o princípio da incerteza de Heisenberg28 determina os limites teóricos da relatividade. Contudo, podemos encontrar nas realidades consideradas pelas teorias de ciências particulares, casos que se adaptam melhor a um tipo de fenômeno ao invés de outro29.

Na linguagem ordinária acontece um fenômeno muito próximo da indeterminação na teoria, que é a indeterminação do significado. Como vimos com a abordagem aos dois dogmas, Quine problematizou a analiticidade de termos intensionais através da noção de sinonímia. Assim, ele lança a hipótese da tradução radical: “manuais para traduzir uma língua em outra podem ser estabelecidos de maneiras divergentes, todas compatíveis com a totalidade das disposições verbais, porém incompatíveis entre si” (QUINE, 1960, p. 51). Quine testa esta hipótese evocando uma situação em que o linguista se propõe a acompanhar um nativo para um trabalho de campo, e quando observam ambos um coelho, o nativo emite a palavra “gavagai”. Ora estão os dois perante o mesmo estímulo, que é um coelho, logo, e em princípio, gavagai seria coelho na língua do nativo. Contudo, o problema não é tão simples, pois há vários candidatos para o significado de “gavagai”. O estímulo coelho, contém outros elementos de estimulação como partes de coelho (como cabeça de coelho, perna de coelho, orelhas de coelho), ou o estado do coelho (como correndo, ou parado), ou o uso que terá o coelho uma vez caçado. Num contexto aparentemente referencial, escapa-nos a tradução exata de “gavagai”, e portanto o seu significado e referência. Como se pode determinar de forma exata e objetiva o significado, ou a referência?

Para Quine, o trabalho do linguista não fica por aí, existem formas para contornar a situação. O uso da palavra “gavagai“ seguida da aprovação ou reprovação da palavra em

27 Por exemplo, entre a teoria da relatividade, que se baseia numa abordagem determinista da física e a mecânica quântica, cuja abordagem é probabilística. Esta é uma diferença básica entre as duas, que não as invalida, mas que nos obriga a perceber onde começa o campo de aplicação de uma e começa o da outra. 28 O princípio da incerteza de Heisenberg determina a impossibilidade de conhecer simultaneamente a velocidade e a posição de uma partícula (eléctron). A consequência disso é que passamos a depender de métodos probabilísticos com base em modelos estocásticos para perceber os fenômenos subatômicos. A este nível a mecânica quântica revela-se mais apropriada.

29 Metaforicamente falando, seria contraproducente contar carneiros recorrendo a partir do conjunto de todos os números fracionários.

determinados contextos30 ajuda à determinação, assim como a repetição de sentenças nas quais entra a palavra “gavagai”. Contudo, com isto, vemos que o significado parece depender de uma rede complexa de experiências associadas a hábitos e outras construções sociais, que são aquelas a partir das quais se institui intersubjetivamente a linguagem. Embora o contexto referencial, e também o conjunto dos estímulos, seja idêntico para o nativo e para o linguista, o modo que se atribui o significado a palavras e sentenças não é o mesmo, pois depende do uso associado a um tipo de estimulação.

Dada a indeterminação do significado e inescrutabilidade da referência, podemos entender melhor o problema da linguagem mentalista (unicórnios, sensações) (QUINE, 1952): não se pode assumir significados como entidades, pois não sabemos a que estímulos em particular nos referimos no uso desses elementos linguísticos. O significado depende de uma rede inferencial complexa, de diferentes estímulos, em diversos contextos, em diferentes períodos da vida.

Apesar das teses de Quine e da ligação de Davidson ao programa quineano, o projeto do pragmatismo deve explicar a linguagem mentalista e portanto, Davidson empreendeu uma busca com resultados teóricos importantes nesse sentido. A abordagem de Davidson aos problemas do significado e da referência, intimamente ligados ao problema da noção de verdade, é diferente da de Quine. Deveremos explorar essa abordagem.