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2.4 Teoria da norma jurídica

2.4.1 Evolução do pensamento científico sobre a norma jurídica

A história do pensamento científico sobre a norma jurídica tem seu início com o pensamento jusnaturalista que defendia a existência de um direito natural ou independente do poder estatal ou de sua organização. A fonte do direito poderia ser a natureza, a vontade de Deus ou a racionalidade humana.

Já em tempos mais modernos surge na França a Escola da Exegese juntamente com o Código de Napoleão (1804) dando-se início ao que denominamos positivismo jurídico. Esse positivismo surge como resposta ao pensamento abstrato do jusnaturalismo trazendo contornos mais rígidos ao direito. Segundo a Escola da Exegese o direito só poderia ter uma interpretação possível, a literal, cabendo ao intérprete tão somente esclarecê- la quando o texto fosse obscuro. Assim, o sentido do texto normativo era extraído pelo intérprete, ou seja, já estaria contido no próprio texto. Além disso, a norma jurídica aqui é tida como produto exclusivo do Poder Legislativo já que a interpretação da lei é única e cabe aos intérpretes apenas

garantir sua aplicação22.

Note-se que o pensamento da Escola da Exegese é pautada numa concepção filosófica determinista em que a realidade é percebida pelo ser humano através de seus sentidos. Na linha do raciocínio determinista, assim como um objeto físico (por exemplo, uma cadeira) é percebido da mesma forma por diversos indivíduos, a norma jurídica também guardaria essa propriedade do real. Ou seja, a norma jurídica enquanto objeto de conhecimento teria tão somente uma possibilidade de interpretação possível, aquela que fosse literalmente percebida pelo homem.

                                                                                                                         

22 “Quando começa a aparecer na literatura moderna, com o direito já sendo tratado como monopólio do Estado, o conceito de norma é entendido como o produto do processo legislative soberano, seja o sistema monárquico, constitucional ou absolute, seja o sistema republicano. O conceito de norma é

identificado com o de lei. Esse sentido está na Escola da Exegese francesa e permanence até hoje

no uso comum da língua, quando se diz que o contrato faz ‘lei’ entre as partes ou que a decisão do magistrado é ‘lei’”. (in ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito

Em solo brasileiro e também ancorado em bases deterministas se

revela o jurista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda23 que propôs que o

direito é uma realidade posta pela lei e que na medida em que uma conduta regulada por uma norma jurídica ocorresse, a incidência da norma seria automática, infalível e independente da ação humana. Ainda que diversas críticas a esse modelo tenham sido vastamente desenvolvidas deve-se lembrar que toda teoria científica deve partir de pressupostos filosóficos para se sustentar logicamente. E, partindo de premissas ligadas à metodologia cartesiana o jurista desenvolveu uma ciência do direito que explica a incidência das normas jurídicas com a mesma causalidade natural identificada nas leis naturais.

De todo modo, o radicalismo da Escola da Exegese em relação aos conceitos jurídicos ensejou o desenvolvimento de duas outras notáveis escolas que manifestaram uma oposição. Tratam-se da Escola do Direito Livre e da Escola Histórica. Na Escola do Direito Livre o direito possui uma multiplicidade de fontes e não apenas o Poder Legislativo. Propôs, à sua época, uma nova via para a metodologia jurídica com uma busca livre pela interpretação do direito. Já na Escola Histórica, representada por Friedrich

Carl von Savigny 24 , o direito surge como um produto cultural de

manifestações históricas e não ao arbítrio do legislador.

Baseadas nessas escolas surge o pensamento que refuta o pressuposto do monopólio estatal do direito. Com isso, a norma jurídica assume um novo sentido como forma universal de manifestação do direito. Consequentemente, não apenas a lei, mas os contratos, as sentenças, a jurisprudência e até mesmo os costumes são classificados como norma jurídica.

                                                                                                                         

23

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.

24 “A ciência legislativa é uma ciência histórica. A necessidade do próprio Estado radica em que deve existir algo entre os indivíduos que limite o domínio da arbitrariedade de uns contra os outros. O Estado faz isso por si mesmo, por ser um fenômeno entre os indivíduos, porem isso é feito diretamente pela função legislativa. O grau de limitação do indivíduo deveria ser independente da arbitrariedade do outro, e um terceiro deveria decidir até onde poderia chegar a limitação”. (in SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodologia jurídica. Trad. Hebe Marenco. Campinas: Edicamp, 2001. p.2-3).  

Entretanto, foi a partir de Hans Kelsen que a literatura acerca da norma jurídica assumiu uma distinção muito relevante para o desenvolvimento das teorias contemporâneas: a norma como produto da interpretação humana. Veja-se:

O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa25.

Além disso Kelsen identificou na norma jurídica uma ontologia diferente do ser. A norma jurídica é uma ordem para a conduta humana de modo que o termo “norma” significa que algo deve ser ou acontecer, ou melhor, que um homem deve agir de determinada forma. Ao desenvolver sua teoria e distinguir o “ser” do “dever ser” para se referir às normas jurídicas, o jurista também afirma que após inserida a norma no ordenamento jurídico ela passa a ter vida própria, ou seja, independente da vontade de quem a criou. Assim, a norma jurídica passa a ter linguagem e forma características, como proposições prescritivas que determinam como as condutas humanas devem ser.

A evolução do pensamento sobre a norma jurídica a partir de Kelsen envolveu escolas no mundo inteiro que hoje formam as teorias contemporâneas que não convém serem citadas uma a uma para o propósito desse trabalho. A teoria contemporânea que se adota como premissa nesse estudo tem suas fundações no trabalho do jurista brasileiro Lourival Vilanova,

                                                                                                                         

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posteriormente melhor desenvolvida por Paulo de Barros Carvalho envolvendo a teoria da norma em seus estudos sobre a visão semiótica do direito.

A norma jurídica enquanto elemento do direito é por si só uma categoria fundamental que deve ser propriamente investigada em conjunto com as demais teorias que investigam as demais categorias fundamentais do direito como sobre os fatos jurídicos, sobre a incidência, sobre as relações jurídicas, sobre as instituições, etc.

Ao pontuar a importância da teoria da norma na investigação científica do direito, Paulo de Barros Carvalho já descreve certas características da teoria que propõe baseando-se nos ensinamentos de Lourival Vilanova e nos estudos semióticos e comunicacionais do direito:

A teoria da norma de que falo há de cingir-se à manifestação do deôntico, em sua unidade monádica, no seu arcabouço lógico, mas também em sua projeção semântica e em sua dimensão pragmática, examinando a norma por dentro, num enfoque intranormativo, e por fora, numa tomada extranormativa, norma com norma, na sua multiplicidade finita, porém determinada.

Tenho por imprescindível a investigação estrutural das unidades do sistema, vale dizer, as normas jurídicas, nas instâncias semióticas a que já me referi26.

Cabe lembrar que, na concepção do direito como comunicação, as normas jurídicas assumem o conteúdo de mensagens e, portanto, estão diretamente interligadas no processo comunicacional do direito que envolve contexto, emissor, receptor, canal e código, conforme já mencionamos. Além disso, investigar as instâncias semióticas das normas jurídicas significa dar a elas uma dimensão sintática ou lógica, outra semântica e outra pragmática.

Para que essa teoria da norma jurídica seja apresentada, inicialmente faz-se necessário o estabelecimento de alguns conceitos que muitas vezes são designados pelo termo “norma jurídica”. A ambiguidade do termo                                                                                                                          

26 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo, Noeses, 2008. 2 ed. p. 127.

demanda definições mais precisas para que se fossa investigar a norma jurídica sanando as dúvidas semânticas que envolvem o termo.

Paulo de Barros Carvalho utiliza a distinção entre “sentido amplo” e “sentido estrito” para definir o termo e fazer uso próprio no desenvolver de sua teoria. Distinção essa que se adota nesse trabalho juntamente com a teoria da norma jurídica apresentada pelo autor:

(...) interessa manter o secular modo de distinguir, empregando “normas jurídicas em sentido amplo” para aludir aos conteúdos significativos das frases do direito posto, vale dizer, aos enunciados prescritivos, não enquanto manifestações empíricas do ordenamento, mas como significações que seriam construídas pelo intérprete. Ao mesmo tempo, a composição articulada dessas significações, de tal sorte que produza mensagens com sentido deôntico- jurídico completo, receberia o nome de “normas jurídicas em sentido estrito.27

A síntese da distinção merece uma explicação pormenorizada. Usualmente o termo “norma jurídica” é empregado em referência a: (i) aos textos ou enunciados prescritivos que nada mas são do que o suporte físico que dá origem à norma jurídica. Entende-se que esses textos não podem receber a denominação de “norma jurídica” sob pena de se desvirtuar as premissas filosóficas sobre o papel da linguagem, do intérprete e da comunicação no conceito da unidade que compõe o sistema normativo. Utiliza-se o termo “enunciados prescritivos” apenas para fazer referência aos textos enquanto suporte físico do processo interpretativo até a norma jurídica.

Na esteira do pensamento kelseniano28, a norma jurídica decorre de uma

operação mental. Então, somente a partir dela é que se deve utilizar o termo cientificamente. (ii) Designa também as significações obtidas dos enunciados prescritivos, isoladamente consideradas, que são as “proposições jurídicas”. Essas proposições jurídicas são operações mentais interpretativas que já podem ser concebidas como normas jurídicas em sentido amplo, já que essas significações isoladas ainda não foram estruturadas na forma sintática

                                                                                                                         

27

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 128.

28

homogênea própria das normas jurídicas em sentido estrito. (iii) O termo “norma jurídica” refere-se também às significações deonticamente estruturadas, isto é, as significações obtidas isoladamente a partir dos enunciados prescritivos são agora organizadas no pensamento de modo a alcançar a forma lógica própria das normas jurídicas (homogeneidade sintática das normas jurídicas). Essa forma lógica é a forma hipotética- condicional que liga uma hipótese a uma consequência. A estrutura lógica inerente às normas jurídicas será melhor apresentada nesse trabalho nos itens subsequentes, de modo que só interessa nesse momento entender que a partir desse pensamento estruturado tem-se a “norma jurídica em sentido estrito”. (iv) Por fim, tem-se por “norma jurídica” também aquela que decorre de um conjunto de outras, ou seja, a norma jurídica contextualizada dentro do ordenamento jurídico enquanto sistema. A norma jurídica aqui depende não apenas da identificação de uma estrutura hipotética-fundamental mas de várias, que agem em coordenação e subordinação com o sistema do direito positivo.

As situações em que o termo é utilizado demonstra claramente quais são os planos de manifestação do direito positivo denominados por Paulo de

Barros Carvalho de “subsistemas pelos quais se locomovem

obrigatoriamente todos aqueles que se dispõem a conhecer o sistema jurídico”29: (S1) o subsistema de enunciados prescritivos, no plano dos textos físicos, (S2) o subsistema de conteúdos de significação desses suportes físicos, (S3) o subsistema do domínio articulado de significações na estrutura hipotética-condicional, e (S4) o subsistema dos vínculos de coordenação e subordinação existente entre as normas jurídicas pertencentes ao sistema.

Assim, a teoria da norma jurídica que se adota nesse trabalho leva em conta que o direito é composto desses subsistemas e que somente se pode falar em norma jurídica (em sentido amplo) enquanto houver operação mental em relação aos enunciados prescritivos e que a norma jurídica em sentido

                                                                                                                         

29 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo, Noeses, 2008. p. 183.

estrito é aquela dotada de homogeneidade sintática, organizada na forma hipotética-condicional.