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3 O REFÚGIO: CONCEPÇÃO E HISTÓRICO

3.1 Evolução Histórica do Refúgio

Analisando a história da humanidade, encontram-se registros de pessoas e mesmo de populações inteiras que se deslocam pelo planeta. Isso se dá em função de inúmeros motivos, seja por perseguição política, racial ou étnica, pelas guerras, por questões climáticas, além de outras. Esses acontecimentos ameaçam a vida das pessoas, as quais se veem obrigadas a deixar o seu país e procurar refúgio alhures, estranhas à sua cultura, ao seu modo de vida. Partem em busca de proteção e de um recomeço de vida, a salvo dos perigos que as ameaçavam.

O ser humano também convive, desde os tempos mais remotos, com situações adversas, provocadas por desastres naturais ou pela ação destruidora do próprio homem, que lhes obrigam a buscar, em outros lugares, condições mínimas de sobrevivência.

A história da humanidade narra incontáveis acontecimentos de rejeição social e busca de abrigo. Ao se retomar a história da humanidade pode-se constatar que desde os tempos mais remotos há relatos de pessoas que estão em deslocamento, hora em busca de solos mais férteis para o plantio e a alimentação do rebanho, hora fugindo de determinados acontecimentos.

Nas primeiras narrativas de pessoas que saem de seus países em busca de proteção encontram-se relatos que estão ligados a práticas de criminosos, ou seja,

indivíduos que cometeram um crime e por isso têm de fugir para não serem mortos em seu país, uns fugiam da tirania de seus governantes, outros eram os que fugiam por conta das mudanças ambientais, falta de pastagem para o rebanho, busca por água. E assim a humanidade se movia.

Muitos eram os conflitos e lutas por conquistas de terras, por obtenção de mais poder, dominar o exército inimigo para se apoderarem de seu país, pensamentos contrários ao da igreja, essas forças diversas geravam perseguições e massacres sangrentos, obrigando os que não queriam perder sua vida, buscar asilo nas cidades vizinhas, que normalmente era inimiga da cidade de origem do asilado e, portanto, convinha para ela acolher e ter como aliado aquele indivíduo, que por vezes inclusive obtinha informações sobre a cidade de origem, e poderia ser de interesse estratégico da cidade que o acolhia, com isso ajudava o exército do inimigo a se preparar para tomar o poder.

Mas, quando Roma invade a Grécia e esta passa a ser subserviente a Roma, a partir daí o significado de asilo passa a ter um cunho religioso, e jurídico1. De acordo com a lei romana atrelada aos poderes eclesiásticos da época a concessão de asilo passa a ser dada à pessoa que não tenha cometido nenhum crime, sendo protegidas somente aquelas que sem motivo eram perseguidas, por particulares e ou pelo poder público.

Com a tomada do poder romano por Constantino, por ocasião de seu edito determinando que toda Roma professasse o catolicismo, passa a ser de incumbência da igreja a concessão do mérito de asilo, bem como prestar-lhes acolhida. Quase toda a Europa declara aniquilação aos indivíduos considerados não membros de sua sociedade, que eram os judeus, os hereges e os leprosos, essa não era uma posição do povo, mas de seus governantes, acatada por grande parte da sociedade.

O contingente de povos que diante da nova ordem social, ou melhor, desordem social passa a se deslocar entre os países que permitiam sua entrada. Entre os séculos XIII a XV presencia-se o absurdo das tiranias perpetradas pelos poderosos “donos” do mundo, a Inglaterra, a França, a Espanha e Portugal expulsam os judeus, esses buscam em outros países europeus e no norte da África

um espaço, o grande fluxo de pessoas em busca de um país para acolhê-los vai gerando outros problemas nas sociedades acolhedoras.

No final do século XVI vários pensadores começam a questionar o poderio da igreja e a buscar maior liberdade de pensamento, de prática religiosa, o direito natural caminha para um pensamento desvinculado do religioso, encontrando em Grotius2 grande jurista deste período uma força aliada para lutar pela razão como o fundamento do direito. Tendo, no século XVII marco de fundamental importância em que se instituiu o direito ao asilo, como defesa da pessoa. Sendo Grotius um dos intelectuais da época que em muito contribui para esse entendimento e assim se posiciona; “[...] as pessoas expulsas de seus lares tinham o direito de adquirir residência permanente em outro país, submetendo-se ao governo que lá detivesse a autoridade” (FISCHEL, 1996, p.14).

Grotius também contribuiu ao distinguir os conceitos de ofensas políticas e de ofensas comuns, defendendo que o asilo deveria ser concedido, tão somente, àqueles que sofressem perseguições políticas ou religiosas e não mais a cidadãos que houvessem cometidos crimes comuns, como assassinatos e outras barbáries, como era a concessão até o momento. Historicamente, nos séculos anteriores, o asilo era concedido não só aos perseguidos políticos e religiosos, mas inclusive às pessoas que haviam cometido crimes, as quais visavam com isso escapar das sanções, em especial da pena de morte. Assim, esses criminosos buscavam abrigo em outros países a fim de escaparem das sanções a eles impostas.

No final do séc. XVII os Estados passaram a se configurar de forma mais laica e a igreja deixou de deter o domínio sobre os bens do mundo, isto é, perdeu o legado de detentora da verdade absoluta, e passa a dividir o cenário com o Estado, que entre outras responsabilidades assume a de concessão ou não do asilo.

No final do séc. XVIII, em 1793, a França proclama em sua constituição o direito de asilo ao indivíduo, tornando-se o primeiro país a registrar em sua constituição, porém, essa iniciativa não foi assumida na Europa, visto que essa concessão, direito de asilo, ficou a critério de cada Estado conforme suas conveniências. Nesse período os Estados nacionais se encontravam com certa organização interna e buscavam por sua soberania.

2 Hugo Grotius, jurista holandês considerado fundador do direito internacional, exerceu notável influência sobre o

pensamento racionalista e iluminista do século XVII. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Hugo_Gr%C3%B3cio. Acesso em: 04 dez. 2011.

É somente no século XIX que teremos no continente americano o Primeiro Congresso Sul-Americano de Direito Internacional Privado que relaciona o asilo às regras de extradição e aos delitos políticos, extremamente importantes para o período devido às lutas pela independência e consolidação da democracia que ocorriam em alguns Estados da América Latina, vários Estados impunham à força, seus sistemas ditatoriais e de perseguição aos seus oponentes. Com esse reconhecimento o indivíduo tinha como direito assegurado a possibilidade de buscar em outro país uma proteção.

Paulatinamente ao longo dos séculos surge à porta dos Estados a discussão sobre a temática dos Direitos humanos, bem como sobre os direitos internacionais. Todas as questões ligadas ao direito do indivíduo não podem mais permanecer no âmbito privado das discussões internas de cada país. A circulação dos indivíduos entre territórios, as informações sobre determinados acontecimentos em países vizinhos ao nosso, ou mesmo distante não importa, nos move a tomada de posição, por isso da necessidade em se criar leis que clarifiquem ou norteiem tais fatos.

Na área do direito conforme aponta Piovesan (2006), encontramos uma polêmica sobre o fundamento e a natureza dos direitos humanos, se os mesmos são direitos naturais e inatos, direitos positivos, direitos históricos ou, direitos que derivam de determinado sistema moral. Estando esses em constantes processos de reconstrução, seus constitutivos não estão dados, mas se fazem ao longo da historicidade humana.

Segundo Bobbio, na atualidade o maior problema dos direitos humanos “[...] não é mais o de fundamentá-lo, e sim o de protegê-lo” (BOBBIO, 1992, p.25). Nunca na era da humanidade se falou e se criou tantos direitos e transgrediu-os como na contemporaneidade. A história nos mostra os avanços e retrocessos quanto às conquistas do direito a ter direitos.

Estudiosos dos Direitos Humanos e do Direito Internacional reconhecem como o primeiro marco do surgimento dos direitos internacionais o Direito Humanitário. O Direito Humanitário e o Direito Internacional impõem a regulamentação jurídica quanto ao emprego da força sobre os mais fracos, aqueles que por circunstâncias da situação encontram-se em desvantagem, tais como: presos, feridos, doentes, mulheres, crianças e a população civil.

Após a Primeira Guerra Mundial e suas atrocidades, cria-se em 1920 a Liga das Nações, organização composta por diversos países denominados Estados-

membros, cuja finalidade era promover a cooperação e a paz. Essa organização condenava agressões externas contra a integridade territorial e defendia a independência política dos que fizessem parte desse grupo, a fim de que pudessem mais livremente tomar suas decisões. Segundo Macedo Soares (1972) a Liga em seu preâmbulo define sua função, qual seja:

Entreter a luz do dia relações internacionais fundadas na justiça e na honra; fazer reinar a justiça, asseverando-a a seus Estados-membros para que os mesmos, [...] esforcem-se por assegurar e manter condições de trabalho equitativa e humanas. (MACEDO SOARES, 1972, p. 235-256).

O fenômeno ocorrido no pós-guerra promove a criação desse grupo internacional para defender o direito dos indivíduos perseguidos. Registra-se na história que tais refugiados não o eram somente por motivos políticos, mas por diversos outros. Essa realidade, a qual se agravava rapidamente, requereu da Liga das Nações imediata solução para o crescente número de refugiados.

Em conjunto com outras organizações esses grupos criaram leis que deveriam ser cumpridas em nível internacional, estabelecendo sanções aos Estados-membros que viessem a descumprir tais acordos. A criação desses organismos foi de grande relevância à humanidade por estabelecerem e imporem condições mínimas de garantia dos direitos do indivíduo, que nem sempre eram consonantes com os interesses dos Estados. Conforme descreve Piovesan (2006),

[...] tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situa o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade Internacional. Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos. (PIOVESAN, 2006, p. 113-114).

No contexto da época essa foi uma grande conquista, na qual se passou a olhar para o indivíduo como alguém que é sujeito de Direito Internacional. Os problemas tangenciais ao direito humano não permaneceram restritos à esfera de discussão particular, em que pesava tão somente a mão do Estado sobre o indivíduo, passando a ter força ad extra Estado.

Outra corrente de teóricos histórico-jurídicos defende que a Liga das Nações nunca cumpriu com seu papel de defensora dos refugiados. Para esses teóricos, o que imperava na verdade era a soberania estatal e esta detinha todo o poder político e econômico. Segundo eles o fracasso da Liga deveu-se ao fato desta organização não ser gerada pelas potências da época. A cooperação internacional por parte dos

Estados-membros não ocorreu com cordialidade conforme acordos firmados, enfraquecendo e desacreditando a Liga das Nações quanto ao seu poder de força para punir as contravenções perpetradas pelo próprio Estado.

Para os teóricos histórico-jurídicos críticos da Liga todas as supostas conquistas obtidas desta não passaram de engodos, visto que na prática jamais se efetivaram. Segundo esses teóricos, diante dos poderosos detentores do capital e criadores das leis prevaleceu à vontade dos mesmos, apesar dessa vontade ser conflitante e diversa.

A explosão da Segunda Guerra Mundial é representativa desses interesses diversos e conflituosos dos poderosos. Mais uma vez o mundo assiste aos horrores da perversidade humana contra seu semelhante. Um grande número de pessoas é atingido e por interesses políticos e econômicos milhares de pessoas são mortas, outras perseguidas, destituídas de seus lares, de sua cidadania, impossibilitadas de encontrarem outro lar.

Essas pessoas, destituídas de seus direitos humanos, desprovidas de tudo, de raízes que lhe identifiquem, fogem de seus países de origem, abandonando no ato da fuga tudo, e em determinadas situações perdem a sua própria identidade, às vezes mudando inclusive de nome para escapar das perseguições.

Referente a essa perda de referência e identidade, de seus direitos humanos, Arendt (1989), explicita essa situação de forma bem objetiva quando diz:

[...] passam a pertencer à raça humana da mesma forma como animais pertencem a uma dada espécie de animais. O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral, sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique, e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado. (ARENDT, 1989, p. 335-336).

A autora retrata com propriedade a situação vivenciada pelas pessoas que estão nessas condições de vida. A perda de referências, de identidade, de cidadania, sob a condição de total privação, leva à pessoa destituída de tudo grande apatia, desânimo, falta de objetividade em seus empreendimentos, em assumir sua própria vida. A perversidade presente nas relações humanas é tão cruel que é capaz de tirar o âmago da vida humana, sem tirar-lhe a vida de fato. Nessas condições as

pessoas passam a viver sem possuir de fato a sua existência, “[...] são como sepulcros caiados”3, os quais se encontram completamente vazios por dentro.

Somente no século XX, após a Segunda Guerra Mundial e todo o extermínio por ela provocado, que poderia ter sido evitado caso os organismos internacionais tivessem força frente aos Estados para fazerem valer as leis por eles erigidas, que a situação dos refugiados passa a ser vista com mais atenção por parte dos Estados. Esse fato foi ocasionado em função do aumento expressivo de pessoas em trânsito pelo planeta, a buscar alhures condições para reconstruir suas vidas.

A Liga das Nações, portanto, constituiu-se como a precursora na defesa dos direitos internacionais dos refugiados, minimizando os sofrimentos dos mesmos, ao mesmo tempo em que subsidiou os anos vindouros quanto à discussão e implementação de leis que salvaguardassem os direitos humanos internacionais.

Diante de outras situações de crises, a partir dos conflitos frequentes no mundo, outras leis que amparam os direitos humanos internacionais surgiram, contudo não há eficácia de fato nas mesmas, haja vista os constantes e crescentes desrespeitos ao direito da pessoa. Urge às nações fazerem valer as leis existentes a fim de cessarem esses crescentes desrespeitos à pessoa.

Arendt (1989) afirma em seu livro “Origens do Totalitarismo” que a crise do Estado-Nação é a maior responsável pelo aumento de refugiados e apátridas, conforme assinala a seguir:

A verdadeira dificuldade, quando se trata de refugiados e apátridas, reside no fato de que a situação é insolúvel no interior da velha organização estatal dos povos. Os apátridas colocam a nu, muito claramente, a crise do Estado- Nação. E não se enfrenta essa crise pelo acumulo de injustiças, ou se contentando com a restauração de uma ordem que não corresponde mais nem à consciência jurídica moderna nem às condições atuais de coexistência dos povos (ARENDT, 1989, p. 310).

É preciso, portanto, que os povos, independentemente da vontade de seus chefes de Estado, façam-se valer como nação de direitos, as quais, intituladas de democráticas, possam dispor de suas vidas, de seus direitos emanados por diversos estatutos legais, impondo-os e requerendo que sejam cumpridos seus direitos. Ao

3 Frase bíblica proferida por Jesus que diante dos escribas; homens que se dedicavam a interpretar e a escrever

as leis (“dadas por Deus”), mas que em seu interior (coração) estavam vazios, não tinham amor, não tinham vida. Aqui utilizamos esse termo para identificar a problemática desse grupo, que vai além da questão financeira, passa pela trama emocional desestruturando esses indivíduos em sua mais íntima morada. Causando assim uma desestrutura generalizada, uma vez que o eixo humano foi danificado. Portanto, acolher essas pessoas é disponibilizar às mesmas outras acolhidas, que vai além da acolhida física, acolhida esta que a atual humanidade carece aprender a praticá-la, resgatar a sua sensibilidade e retomar às relações mais humanizadas e humanizadoras.

indivíduo refugiado resta buscar outro lugar onde possa ser reconhecido como pertencente a esse povo, ainda que geograficamente tenha nascido em distinto território.

Urge se pensar e construir outro mundo. Um mundo sem fronteiras, sem apartamentos, em que as fronteiras não estejam abertas apenas para o livre comércio, para os interesses capitalistas, para a globalização neoliberal, mas que se abra para aquele que é seu maior patrimônio, sua maior riqueza, o ser humano.

As atuais estruturas humanitárias requerem um ser humano “cidadão do mundo”4, um mundo sem barreiras para que todos possam viver livres. As redes tecidas pela economia transitam na velocidade da luz, pois assim é o interesse do capital. Em contrapartida, diversas vidas humanas (refugiados) são trancafiadas em campos, zonas e em porões até que as autoridades decidam se elas podem ou não adentrar ao país para ter uma vida digna. Este ser estranho, este “alienígena”5, na verdade, representa uma ameaça às nações diante da nova crise do capital, ameaça à sua economia e as organização estatais, daí ser indesejado, ainda que o Estado o receba.