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2. O Estado, o Federalismo e o Brasil

2.2. Anotações sobre o Federalismo

2.2.2. Federalismo e descentralização

Para o desenvolvimento da presente pesquisa elucidar a relação entre os conceitos de federalismo e descentralização é fundamental. Então, é necessário trazer pra discussão o conceito de não-centralização, termo cunhado por Elazar (1987) e defendido por Almeida (1995), Soares (1998) e Araújo (2005).

Para estes autores, o federalismo se caracteriza pela não-centralização, isto é, pela difusão dos poderes de governo entre muitos centros, nos quais a autoridade não resulta da delegação de um poder central, mas é conferida por sufrágio popular. O conceito de não- centralização não é o mesmo que descentralização, apesar de esta última ser usada - erroneamente - no seu lugar para descrever sistemas federais, pois descentralização implica a existência de uma autoridade central, um governo central que pode descentralizar ou recentralizar segundo seus desejos. Já em um sistema político não-centralizado, o poder é difuso

e não pode ser legitimamente centralizado ou concentrado sem romper a estrutura e o espírito da Constituição.

Para Soares (1998) os sistemas federais clássicos são não-centralizados. Todos têm um governo geral, ou nacional, que dispõe de poder em muitas áreas e para muitos propósitos, mas não um governo central que controle todas as linhas de comunicação e decisão políticas. Assim, as unidades subnacionais, sejam elas denominadas de estados, cantões ou províncias, não são criaturas do governo federal, mas, como este, derivam sua autoridade diretamente do povo. Estruturalmente, são substancialmente imunes à interferência federal. Funcionalmente, partilham muitas atividades com o governo federal, sem perder seus papéis de formulação de políticas e seus poderes decisórios.

Araújo (2005) considera que o federalismo se caracteriza pela não-centralização, pela “existência de poderes difusos em que o governo nacional disponha de poder para muitas decisões, mas que não controle todas elas, configurando um compromisso entre difusão e concentração de poder político” (ARAÚJO, 2005, p.79).

Mesmo concordando com o debate conceitual, fica latente a distância entre o ponto ótimo descrito e a situação concreta das unidades subnacionais. Ao analisar exemplos concretos é de fácil verificação que é difícil encontrar unidades “substancialmente imunes” à interferência federal. Por isso, está correta a ressalva feita por Almeida (1995) nas relações intergovernamentais existentes (e não na descrita nos modelos), a característica do ordenamento federativo, convive de forma complexa e, frequentemente, conflitante com a lógica da centralização-descentralização. Ou seja, a existência de competências comuns, típica do federalismo, convive e se choca com o princípio da definição nítida de funções entre níveis de governo, característica dos Estados unitários.

A utilização dos conceitos federalismo e descentralização como se fossem sinônimos é criticado por Blume e Voigt (2011). Estados federais e unitários tanto podem centralizar quanto descentralizar algumas atividades, entretanto, nos estados unitários a decisão de descentralizar pode ser revogada se o governo central assim o desejar, pois o poder de decisão permanece neste nível de governo.

Para estes autores o federalismo seria uma característica a nível constitucional e a descentralização descreveria uma escolha política pós-constitucional. Isto porque uma estrutura federativa não pode ser considerada uma condição necessária para políticas de descentralização. Contudo, os indicadores de descentralização são mais estáveis ao longo do tempo em governos

federativos do que nos unitários, porque as constituições possuem mais estabilidade no tempo do que as escolhas políticas, as quais dependem das preferências dos governantes.

Lijphart (1984) também contesta a possibilidade de assemelhar federalismo à descentralização, pois nada impede que países federalistas sejam altamente centralizados (Venezuela, por exemplo) e que países unitários sejam descentralizados (Dinamarca e Japão). Considera-se que na federação “não existe um centro de poder que delega, ou não, poderes, mas diferentes centros de poderes conferidos pelo povo no sufrágio universal” (CRUZ, 2011, p. 70). Reforçando os argumentos arrolados pelo autor acima, Araújo (2005) afirma que a característica principal do federalismo não é a descentralização, a qual ocorre também em estados unitários. Cita a delegação para regiões autônomas que ocorre na França, a descentralização controlada pelo poder central para os Estados Regionais Italianos e a situação das regiões autônomas na Espanha.

Um dos autores a discutir no campo teórico a relação entre federalismo e descentralização é Théret (1998). Para ele:

(...) a descentralização no federalismo implica descentralização qualificada, aquela que ocorre do governo federal para as unidades nas matérias que lhes são de competência própria, ou mesmo que estejam no campo das prerrogativas comuns, sendo assegurado ao governo federal sua coordenação. Aqui se descentraliza o que já havia sido centralizado pela própria legislação, acordado no pacto fundante, ou seja, na Constituição Federal (THÉRET, 1998, p. 70).

A definição de Théret (1998) é útil para interpretar a situação vivenciada pelo Brasil, já que nosso federalismo pode ser utilizado como exemplo comprobatório de que a descentralização da execução de políticas é compatível com a centralização da autoridade, mesmo em estados federativos. A questão de “quem deve fazer o quê” se superpõe à questão de “o quê deve ser feito”. Por isso, não é suficiente apenas a análise dos gastos, sem que seja considerada a estrutura regulatória das finanças subnacionais. É possível ocorrer uma descentralização fiscal, como a estabelecida na Constituição de 1988, e isso ser compatível com um governo central, mantendo o poder de decisão sobre as bases tributárias e sobre o perfil das políticas que serão implementadas.

Este desenho de descentralização de políticas combinado com manutenção e/ou acirramento de centralização de autoridade regulatória e normativa na esfera central do Estado Nacional reforça as dificuldades conceituais encontradas pela literatura especializada para trabalhar o termo descentralização.

Para Soares (1998) teríamos três usos explicativos do conceito. O primeiro seria o deslocamento da capacidade de decidir e implementar políticas para instâncias subnacionais, explicação mais corrente do fenômeno. O segundo uso seria o da transferência para outras esferas de governo da implementação e administração de políticas definidas no plano federal. E, por fim, um terceiro uso seria a passagem de atribuições da área governamental para o setor privado.

Já para Almeida (2005), esta imprecisão conceitual que cerca a discussão sobre centralização-descentralização deve ser discutida levando em consideração o fato de que o crescimento do governo ocorrida no último século não foi em parte alguma um processo de soma-zero.

Ao contrário, centralização e descentralização têm sido fenômenos antes concomitantes do que mutuamente excludentes. Assim, não há razão para pensar que a descentralização implica inexoravelmente a redução da importância da instância nacional. Ela pode resultar seja na criação de novos âmbitos de ação, seja na definição de novos papéis normativos, reguladores e redistributivos que convivam com a expansão das responsabilidades de estados e municípios (ALMEIDA, 2005, p. 4).

Certamente pode-se afirmar que tais usos aparecem de forma combinada e não excludente em cada realidade concreta, sendo mais frequente em nosso país o segundo e terceiro usos, ou seja, a transferência para instâncias subnacionais a atribuição de implementação e administração de políticas, mas que suas regras foram definidas no âmbito nacional. A política de fundos, seja no período do Fundef, seja agora com a vigência do Fundeb são exemplos lapidares deste processo. Por isso, é forçoso afirmar que centralização e descentralização têm sido fenômenos antes concomitantes do que mutuamente excludentes e de que não há elementos que permitam concluir que todo processo de descentralização implica inexoravelmente em redução da importância da instância nacional.

A experiência da implementação da política de fundos (melhor desenvolvida mais adiante neste texto) reforça o fato de que a forma das relações intergovernamentais entre as unidades subnacionais e o governo central num regime federativo é o “que vai tipificar a atuação do Estado Nacional quanto à definição de políticas públicas, segundo um perfil centralizar, não-centralizador ou descentralizador” (ARAUJO, 2005, p. 80), confirmando o quão problemática é a associação direta entre federalismo e descentralização como historicamente vêm sendo construídas as discussões e as representações sobre o tema, especialmente nos países latino-americanos.

Em resumo, usando a visão de linha contínua (Stepan, 1999), o nosso federalismo estaria mais próximo de um modelo “hold together”, pois mesmo não tendo clivagens religiosas ou étnicas, a necessidade de contornar profundas desigualdades entre as unidades subnacionais esteve sempre presente nos desenhos institucionais. Também não estaríamos perto do modelo dual, pois nossa Carta Magna não reproduz uma situação de rigidez na distribuição de responsabilidades entre os entes federados. Porém, o “cooperativismo” do nosso federalismo é bastante mitigado pelo peso da regulação federal.

Para compreendermos melhor em que contexto histórico este debate sobre sistema federal e medidas descentralizadoras acontece no Brasil é necessário revisitar o debate sobre o próprio caráter de nosso federalismo.