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O Município, a desigualdade e o papel do governo central

3. Acerca da desigualdade territorial

3.4. O Município, a desigualdade e o papel do governo central

Nos inúmeros estudos sobre federalismo brasileiro há presente uma interpretação de que os governos subnacionais teriam grande autonomia. Esta ideia se sustenta na evidência empírica de que a parcela dos governos subnacionais na arrecadação e gasto público consolidado no Brasil é bastante elevada quando comparada a outras federações e na distribuição de responsabilidades previstas no texto constitucional.

No caso brasileiro, de maneira adicional, a extensão das competências subnacionais na execução de políticas públicas encontrou o município dotado de status de ente federado, características que são de fato peculiares ao arranjo institucional brasileiro.

É necessário inserir no debate federativo dois componentes essenciais para compreender em profundidade as características vivenciadas por nosso país: as desigualdades territoriais e as relações entre a União e os governos subnacionais. Em que pese inexistirem clivagens religiosas ou étnicas, o Brasil é historicamente dividido entre jurisdições ricas e pobres. Garantir o equilíbrio da representação das e nas jurisdições ricas e pobres foi, historicamente, um componente central do desenho das instituições políticas brasileiras.

Este desenho institucional combinou, ao longo de nossa história, momentos de maior e menor autonomia, mas sempre manteve relevante papel nas mãos do governo central. Por isso, é preciso levar em consideração que é necessário distinguir quem formula de quem executa, pois tal procedimento permite identificar que, no caso brasileiro, mesmo que os governos subnacionais tenham relevante papel no gasto público e na efetivação dos serviços públicos, as suas decisões de arrecadação tributária, alocação de gasto e de formato de execução de políticas públicas são muito afetadas pela regulação federal.

Como já destacado, uma adequada interpretação de polities em que a execução de políticas é descentralizada requer o emprego da distinção conceitual entre responsabilidade pela execução de políticas públicas (policy- making) e a autoridade para tomar decisões sobre estas mesmas políticas (policy decision-making). Isto implica evitar a inferência analítica, frequentemente empregada, de deduzir a segunda a partir de evidências empíricas sobre a primeira. Na verdade, grande parte das proposições sobre a autonomia dos governos subnacionais no Brasil é comprometida por esta indistinção conceitual (ARRETCHE, 2010, pp 596-97).

Feita esta importante ressalva é necessário anotar que no Brasil o governo central possui grande capacidade de iniciativa. As decisões de arrecadação tributária e de gasto dos governos subnacionais – tanto de estados quanto de municípios – são significativamente limitadas pela legislação nacional, e a provisão de serviços públicos e a alocação setorial do

gasto são fortemente afetadas pela legislação e supervisão federais. Ou seja, é necessário verificar que “a autonomia decisória (os entes subnacionais) não pode ser adequadamente interpretada, se ignorarmos a extensão em que a agenda dos governos subnacionais é afetada pela regulação federal” (Idem, p. 597).

Para explorar os efeitos da desigualdade territorial e das relações entre central-local, Arretche (2010) decidiu tomar como variável dependente a provisão de serviços básicos, pois considerou que esta seria uma maneira de avaliar um dos resultados esperados dos mecanismos postos em operação pelo federalismo brasileiro, posto que se as instituições federativas são relevantes para a existência das políticas públicas, certamente avaliar o impacto do modelo federativo na efetivação destas seria um bom caminho.

Para explorar estas relações a referida autora seguiu caminho semelhante ao escolhido por esta pesquisa, ou seja, considerou como unidade de análise o município. Esta escolha se ancorou no fato de que “as políticas de garantia de renda permaneceram sob responsabilidade da União (previdência, compensação ao desemprego e programas assistenciais), ao passo que as políticas de prestação de serviços passaram a ser executadas pelos governos territoriais” (idem, p. 590). No caso brasileiro, os serviços básicos de saúde, educação, infraestrutura urbana, habitação, saneamento e coleta de lixo são executados pelos governos municipais. Portanto, tomar os municípios como unidade de análise garante pela representatividade destes a possibilidade de explorar os efeitos do formato do nosso federalismo na manutenção ou diminuição das desigualdades territoriais existentes.

A autora trabalhou para identificar os efeitos das relações central-local sobre a desigualdade na oferta de serviços municipais. Considerando que os municípios são desiguais, seria possível avaliar o papel redistributivo dos níveis superiores de governo antes e depois do efeito produzido pela regulação federal5 das receitas subnacionais.

A sua pesquisa chegou às seguintes conclusões:

5 Para Arretche (2010) regulação federal é o conjunto da legislação federal sobre as políticas das unidades

constituintes, a autoridade para supervisionar suas políticas, bem como a função de redistribuição de receitas entre jurisdições.

1. Há evidências de que estados federativos que concentram autoridade regulatória na União criam mecanismos institucionais que operam na direção da redução das desigualdades;

2. Admitindo a possibilidade de divergência dos governos locais com as orientações do governo central, a autora afirma que estados federativos que combinam regulação centralizada e autonomia política dos governos locais tendem a restringir os patamares da desigualdade territorial;

3. Ttal resultado seria explicado por duas tendências apenas aparentemente contraditórias pois, de um lado, o papel regulatório do governo central opera no sentido da uniformidade, e do outro, a autonomia dos governos locais opera no sentido da divergência de políticas. Porém, a autora conclui que esta “interação implica desigualdade entre as jurisdições, mas esta tende a variar no interior de certos intervalos” (ibidem, p. 591).

A autora busca no contexto histórico brasileiro os elementos comprobatórios destas três afirmações. Para ela, as políticas públicas atuais (pós-constituição de 1988) são produto de uma combinação entre a herança dos traços bismarckianos das políticas sociais da era Vargas e do regime militar com a implementação de políticas desmercadorizantes6, como no caso da universalização da saúde e da educação.

No mesmo caminho, Arretche admite que “a regulamentação e supervisão federais sobre as políticas dos governos subnacionais foi expandida a partir dos anos 1990, comprometendo estes últimos a dar prioridade aos gastos com educação e saúde, bem como com a disciplina fiscal, entre outras medidas” (ARRETCHE, 2010, p. 596). Porém, é ausente de sua análise o peso que o quesito “disciplina fiscal” teve na expansão desta supervisão federal, pois esta era a principal preocupação em tempos de primazia dos pressupostos de redução do tamanho do Estado no mundo inteiro (e no Brasil).7

6 Para uma definição do conceito de desmercadorização ver ESPING-ANDERSEN (1991).

7 Exemplo disso foi a edição da Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000, que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Por esta norma o governo federal aumentou de forma surpreendente a sua capacidade de monitorar os gastos dos governos subnacionais e induzir a transferência de parte do fundo público para o pagamento dos serviços da dívida pública. Então, mesmo que outras medidas tenham sido tomadas para induzir a focalização dos gastos públicos dos governos subnacionais em educação e saúde, esta não foi a tônica das medidas adotadas.

Os primeiros testes realizados por Arretche foram sobre a participação percentual de cada um dos componentes das receitas municipais e a relação dessas fontes com as desigualdades. Utilizando dados do Banco de Informações Municipais do Centro de Estudos da Metrópole, as finanças municipais foram desagregadas em cinco grupos para comparação: 1. Arrecadação Própria (AR); 2. Arrecadação Própria + Transferências Constitucionais (TC); 3. Arrecadação Própria + Transferências Constitucionais + Transferências Condicionadas Universais; 4. Arrecadação Própria + Todas as Transferências; e 5. Receita Total. O período analisado foi de 1996 a 2006.

Convertendo os dados em valores per capita, a autora identificou que se dependessem apenas da arrecadação própria a receita média teria girado em torno de R$ 100,00 per capita. As transferências constitucionais são significativas, elevando esta receita para R$ 800,00 per capita. As transferências condicionadas universais acrescem R$ 200,00 per capita. As demais transferências, dentre as quais estão incluídas as negociadas e emendas parlamentares, acrescentam outros R$ 200,00 per capita.

A autora considera o efeito destas últimas “marginal, muito pouco expressivo quando comparado ao das demais modalidades de transferência” (ARRETCHE, 2010, p. 599). Tal afirmação deve ser relativizada. Os dados apontam para a pouca relevância dos recursos arrecadados pelos municípios, o que os tornaria dependentes das transferências da União e dos Estados. Além disso, mostram o forte peso de transferências constitucionais e condicionadas, as quais não são repassadas obedecendo a uma lógica de barganha. Porém, uma transferência negociada que represente 16,6% do total dos recursos disponíveis não pode ser simplesmente considerada “marginal”, principalmente pelo fato de que parte significativa dos recursos é de livre utilização, não possuindo as amarras institucionais das transferências condicionadas universais.

O segundo teste foi acerca dos efeitos na desigualdade utilizando o Coeficiente de Gini8. Suas conclusões principais foram as seguintes:

1. Se os municípios brasileiros contassem apenas com os recursos de sua arrecadação própria, sua capacidade de gasto seria altamente desigual, a julgar pelo Coeficiente de Gini deste indicador (próximo a 0,550 em 2006, embora declinante ao longo da série);

8 É uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini em 1912. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm).

2. Se os municípios brasileiros contassem apenas com as transferências constitucionais estaduais, além de sua arrecadação própria, seriam menos desiguais, pois a entrada desta fonte de receita nos cofres municipais reduz o Coeficiente de Gini para um patamar em torno de 0,450 (embora este fosse de 0,500 no início da série). Este patamar pode ser encarado como o mais próximo da desigualdade efetiva da riqueza gerada nos municípios, pois as transferências estaduais são devolução tributária. “Em outras palavras, a arrecadação tributária própria, somada às transferências estaduais, reflete, em grande medida, a desigualdade de atividade econômica entre os municípios brasileiros” (Idem, p. 601);

3. As receitas do FPM têm significativo efeito de redução das desigualdades de receita. Sua entrada nos cofres municipais reduz o Coeficiente de Gini para cerca de 0,300, excluídas todas as demais fontes de transferência. Isto é, se os municípios brasileiros contassem apenas com sua arrecadação própria e com as receitas do FPM, sua desigualdade de receita cairia pela metade;

4. Se a única fonte de receita fosse os recursos oriundos do SUS e do FUNDEF, as mesmas teriam um impacto redistributivo significativo. Além de sua arrecadação própria, seu efeito na redução das desigualdades de receita seria semelhante ao do FPM. Em 2006 as transferências do SUS e do FUNDEF reduziam o Coeficiente de Gini para 0,220, mas não podemos esquecer que o impacto global nas finanças municipais é pequeno; 5. Combinadas todas as fontes, a desigualdade de receita entre os municípios brasileiros

gira em torno de um Coeficiente de Gini de 0,280, índice muito inferior a modelo em que a União não tivesse nenhum papel de coordenação sobre as receitas.

A principal conclusão da autora está relacionada ao papel positivo exercido pela União na diminuição das desigualdades territoriais. Tanto faz que o parâmetro sejam as transferências federais (FPM, SUS e Fundef), ou seja, as transferências negociadas, os dados coletados não confirmam a proposição de que as jurisdições mais ricas são aquelas que mais se beneficiam do papel redistributivo da União.

Ainda no mesmo estudo, a autora analisa os efeitos da regulação federal nas políticas públicas, classificando as referidas políticas como reguladas e não reguladas. As primeiras são aquelas nas quais a legislação e supervisão federais limitam a autonomia decisória dos governos subnacionais, estabelecendo patamares de gasto e modalidades de execução das políticas. Exemplo deste tipo de política é que pelo menos 40% das receitas municipais devem ser alocadas nas áreas de saúde e educação, respectivamente, 25% para educação e 15% para

saúde. As não reguladas são aquelas nas quais a execução das políticas está associada à autonomia do ente subnacional para tomar decisões e a regulação federal é bastante limitada, sendo bons exemplos as políticas públicas de infraestrutura urbana, habitação, transporte público e coleta do lixo.

Apesar desta classificação e dos exemplos citados, dadas as características do federalismo brasileiro, a possibilidade de ocorrer forte regulação federal existe potencialmente para qualquer área de política pública.

Os testes realizados por Arretche demonstram a existência de um claro padrão nos gastos municipais.

As políticas reguladas têm alta prioridade na alocação do gasto municipal, ao passo que as políticas não reguladas não têm prioridade de gasto. Este comportamento não é resultado de um padrão aleatório; antes, é explicado pelas relações central-local, isto é, pelo efeito de convergência produzido pela legislação e supervisão federais (ARRETCHE, 2010, p. 607).

Por fim, verificando o comportamento do coeficiente de Gini em cada uma das políticas públicas selecionadas e analisadas, a autora verificou que a desigualdade horizontal de gasto nas políticas reguladas é bem menor do que nas políticas não reguladas.

1. As despesas em educação e cultura apresentavam o menor Coeficiente de Gini já em 1996 (0,304). A introdução do Fundef reduziu ainda mais os índices de desigualdade no gasto: de 0,266 em 1998 para 0,232 em 2006;

2. Na função saúde e saneamento, a implementação da NOB 96/989 implicou redução da desigualdade deste gasto para 0,345 em 1998. Além disto, a introdução da Emenda Constitucional 29/2000 implicou nova queda, passando para 0,293 em 2001 e mantendo tendência decrescente até o último ano da série do seu estudo (2006), quando alcança 0,259.

Há uma questão ainda a se destacar. De um lado há a centralização da autoridade (via regulação das políticas públicas), que opera no sentido de produzir resultados centrípetos. De outro lado, a autonomia dos governos locais, que opera no sentido de produzir desigualdades. Pelos resultados da pesquisa aqui esmiuçada, na presença dos dois fatores descritos acima, “a desigualdade territorial está constrangida no interior de intervalos. Na

9 A NOB/SUS 96 - publicada no DOU de 6/11/96, por meio da portaria n.º 2.203 e alterada pela portaria 1882 de 18/12/97- foi resultado de amplo e participativo processo de discussão. O foco central da NOB é a redefinição do modelo de gestão, o que representa um importante marco no processo de consolidação do SUS. Foram definidos claramente os papéis dos entes federados na prestação dos serviços e no financiamento do sistema. E, por conseguinte, houve um crescimento das atribuições municipais e o correspondente aporte de recursos.

ausência desta regulação, as chances de que uma política venha a ter prioridade são menores, bem como a desigualdade de gasto é maior” (Ibidem, p. 610).

Com isso, a conclusão da autora que mais se relaciona ao esforço desenvolvido por essa pesquisa é que afirma existir um trade-off entre a redução das desigualdades territoriais e a plena autonomia dos governos locais. Tal afirmação pode ser sistematizada da seguinte forma: 1. O papel redistributivo do governo federal parece ser uma condição para reduzir desigualdades interjurisdicionais de receita e, por consequência, passa a ser uma condição para a diminuição da desigualdade de acesso dos cidadãos a serviços públicos; 2. Sem a existência deste papel redistributivo a capacidade dos municípios brasileiros para

prover serviços públicos seria altamente desigual;

3. A possibilidade de exercício da discordância por parte das unidades subnacionais é constrangida pela regulação federal. Enquanto a Regulação Federal opera no sentido da uniformidade, a autonomia local opera no sentido da variação. Quando combinadas, a desigualdade entre jurisdições tende a ser delimitada e a variar no interior de certos intervalos, sendo, portanto, limitada.

A descrição detalhada deste estudo é necessária porque o objeto de estudo é justamente a busca por identificar as possibilidades (e os possíveis limites) de uma política de redução das desigualdades territoriais na área educacional. A política realmente existente, pelo menos a que foi aplicada nos últimos dezesseis anos, foi uma política pública profundamente regulada pelo governo central, sendo suas regras definidas no texto constitucional e em legislação federal.

Ao mesmo tempo em que a política de fundos possui este perfil, o seu escopo não atinge a totalidade dos recursos disponíveis pelos entes subnacionais, mantendo uma margem de discordância e autonomia e, portanto, de desigualdade na oferta dos serviços educacionais.