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5. Definindo novos caminhos de financiamento da educação básica

5.1. A construção de um padrão de qualidade como referência

5.1.1. Introduzindo o debate

Para discutir a necessidade do estabelecimento de um padrão mínimo de qualidade é essencial entender que “qualidade” se constitui em uma palavra polissêmica, permitindo interpretações diferenciadas, sendo utilizada com vários significados e, por isso, aparentemente a ela são atribuídos falsos consensos.

Promovendo um resgate da trajetória recente do uso educacional do termo “qualidade”, Oliveira e Araújo (2005) afirmam que, no campo educacional, três significados distintos foram construídos e estiveram presentes nos debates em nosso país e representaram momentos históricos distintos:

a) O primeiro significado é condicionado pela oferta limitada de oportunidades de escolarização;

b) O segundo é relacionado ao fluxo escolar, ou seja, vinculado ao número de alunos que progridem ou não dentro de determinado sistema de ensino;

c) O terceiro se deu quando a ideia de qualidade passou a se vincular à aferição de desempenho mediante testes em larga escala.

Em um primeiro momento a noção de qualidade esteve associada ao fato de que a rede pública possuía uma capacidade insuficiente para garantir o acesso para todos os alunos, pois seu público-alvo estava restrito a uma minoria privilegiada. A qualidade estava, neste período histórico, diretamente associada à possibilidade ou não de ter acesso a uma vaga escolar.

Beisiegel (1964), pioneiro na análise das transformações que a escola pública sofreu em nosso país, ao analisar o crescimento das matrículas públicas no Estado de São Paulo após a Revolução de 1930, busca explicação para a expansão da rede de ginásios na reinterpretação das funções sociais da escola pelas novas camadas emergentes na moderna sociedade em

formação no Estado. São as transformações econômicas da sociedade brasileira que introduziram um novo ator social: as massas urbanas.

(...) o aumento da importância relativa das populações urbanas sobre as rurais, o aparecimento de novas profissões relacionadas à urbanização e à industrialização, o desenvolvimento das grandes burocracias públicas e privadas e a abertura de amplas perspectivas de mobilidade social vertical, possíveis pelo aumento relativo de profissões mais prestigiadas socialmente que os trabalhos manuais urbanos e agrícolas (BEISIEGEL, 1964, p. 188). Ou seja, é justamente no momento em que ocorre uma alteração da função social da escola, tornando o acesso a mesma uma demanda de novos atores urbanos, que a associação com a qualidade se torna mais forte. Além disso, esta associação se transforma em reivindicação por ampliação da rede pública, processo que será mais sentido em estados que galvanizaram de maneira mais acelerada o processo de industrialização, como São Paulo.

Neste primeiro momento há uma clara associação de qualidade com quantidade, sem preocupações específicas acerca do caráter e do formato que os governos fariam a expansão reivindicada. A política de ampliação alterou o padrão de atendimento anterior, pois se baseou na construção de prédios escolares, na compra de material escolar (com queda de qualidade dos mesmos) e na piora das condições de trabalho e de remuneração dos docentes contratados para fazer frente a esta expansão.

Considera-se também que a democratização das oportunidades de acesso, com a consequente expansão de vagas para contingentes cada vez maiores da população, provocara um rompimento com a relação de equilíbrio que havia entre qualidade e escola antes privilégio das elites.

Porém, a expansão escolar ocorrida na década de 1940 trouxe para a escola parcelas da população que antes não tinham acesso à educação e cujas experiências culturais eram distintas das compartilhadas pelo grupo de usuários da escola. Assim, a expansão incorporou as tensões, as contradições e as diferenças presentes na sociedade. E mais:

(...) a ampliação das oportunidades de escolarização da população gerou obstáculos relativos ao prosseguimento dos estudos desses novos usuários da escola pública, visto que não tinham as mesmas experiências culturais dos grupos que tinham acesso à escola anteriormente, e esta não se reestruturou para receber essa nova população (OLIVEIRA e ARAUJO, 2005, pp. 9-10). Foi no final da década de 1970 e nos anos de 1980 que a segunda forma de enxergar a qualidade se tornou presente. A expansão escolar havia incorporado de forma mais massiva a população urbana e ainda lentamente a rural, mas esta incorporação foi feita de forma precária

em termos de padrão do atendimento e os índices de reprovação eram muito altos. Passou-se a utilizar como medida de “qualidade” do sistema de ensino a comparação entre a entrada e a saída de alunos: se a saída se mostrasse muito pequena em relação à entrada, a escola ou o sistema como um todo teria baixa qualidade.

A pressão social ocorria no sentido de regularizar o fluxo, garantindo, com isso, que as crianças que ingressavam na primeira série conseguissem completar em maior número a oitava série do ensino fundamental obrigatório. Ou seja, o debate de qualidade educacional estava restrito à melhoria do fluxo escolar. É neste cenário que foram desenvolvidos vários programas de regularização do fluxo no ensino fundamental, por meio da adoção de ciclos de escolarização, da promoção continuada e de programas de aceleração da aprendizagem.

Não se pode atribuir as melhorias de fluxo da década seguinte exclusivamente a estes programas de correção de fluxo, mas os indicadores de reprovação e evasão melhoraram. Além dos programas citados, a queda de matrículas nas séries iniciais e a expansão da rede nas séries finais também contribuíram com esta melhoria.

É justamente a superação, mesmo que parcial, do indicador que estava mensurando a qualidade do ensino que trará para o debate o terceiro sentido de “qualidade”. Incorporando experiências amplamente testadas nos EUA, o Brasil começará a medir a “qualidade” de um sistema de ensino ou escola por intermédio da capacidade cognitiva dos estudantes, aferida mediante testes padronizados em larga escala.

Aqui se identifica uma contradição importante. No final da década de 1980 o Brasil aprovou uma nova Carta Magna e o seu texto propugnava que a educação alcançasse um padrão mínimo de qualidade, além, é claro, da declaração de que a educação era um direito de todos e dever do Estado. Porém, a década seguinte foi marcada pela hegemonia das ideias de Estado Mínimo e, consequentemente, de redução dos investimentos públicos nas políticas sociais. Neste contexto a ideia empresarial de qualidade associada à produtividade, o que coadunava com a implementação de testes de larga escala para mensurar o aprendizado e associar aos seus resultados um conceito de qualidade, se firmaram no nosso país.

Para Oliveira e Araujo (2005), este cenário favoreceu uma perspectiva de qualidade cuja lógica tinha por base as ideias de eficiência e produtividade, com uma clara matriz empresarial, em contraposição à ideia de democratização da educação e do conhecimento como estratégia de construção e consolidação de uma esfera pública democrática. Ou seja, se:

(...) até a década de 1980 era possível perceber certa identidade entre a ideia de qualidade e a ampliação das oportunidades de acesso aos serviços educacionais, a partir do princípio de justiça redistributiva dos bens sociais e econômicos, na década seguinte, esses princípios serão preteridos por aqueles ligados a uma lógica eminentemente empresarial, que enfatizam as ideias de maior produtividade, com menor custo e controle do produto (Idem, pp. 6-7). Para melhor compreender estas contradições é necessário resgatar a forma como a legislação brasileira trata do tema padrão mínimo de qualidade, especialmente após a promulgação da Constituição de 1988 e como essa demanda se materializou no conceito de Custo aluno-qualidade (CAQ). Este foi elaborado, defendido e difundido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação26, presente tanto nas deliberações da I Conferência Nacional de Educação (2010) quanto no Parecer CNE/CEB nº 08/2010, que estabelece normas para aplicação do inciso IX do Artigo 4º da Lei nº 9.394/96 (LDB), que trata dos padrões mínimos de qualidade de ensino para a Educação Básica pública.