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6. CRIMINAL COMPLIANCE: ACERCA DOS FUNDAMENTOS

6.4 Finalidade

Como leciona Sousa Mendes (2015a), na linha de anterior consideração formulada, no mesmo sentido, por Nieto Martín (2013a: 27), o compliance deve ter por finalidade evitar a prática de infrações, e não visar obter isenções de responsabilidade (colectiva ou individual), nem atenuação de sanções. Caso contrário, prossegue Sousa Mendes, “os programas de compliance tornar-se-iam facilmente num mecanismo fraudulento de blindagem contra os riscos jurídicos da responsabilidade”.

Com efeito, é fora de dúvida que os benefícios decorrentes da atenuação de sanções e da evitação de processos judiciais economicamente prejudiciais à empresa formam peso relevante na decisão corporativa de implementar um programa de cumprimento normativo, como, aliás, o presente texto evidencia em variadas passagens, quando há, evidentemente, espaço de liberdade empresarial para essa decisão.

Todavia, a decisão empresarial pela implementação de um programa de cumprimento normativo fundada apenas na finalidade econômica tem pelo menos

duas graves falhas que impactam a efetividade desse compliance, e, consequentemente, o valor que se lhe há de ser conferido pelos aplicadores da lei.

Tal visão, primeiro, deturpa ou minimiza a relevância de um dos principais fatores dissuasórios no âmbito da criminalidade empresarial, a saber, a capacidade que a fixação de diretrizes éticas e normativas, no interior das empresas, e o consequente e efetivo engajamento diretivo pelo seu cumprimento, têm para contrarrestar as técnicas de neutralização adotadas por infratores340 . O viés

exclusivamente econômico esgarça a percepção acerca da mandatoriedade de tais normas e controles internos; e põe a perder, ou simplemente não permite adquirir, no ambiente corporativo, o sentido da “cultura de cumprimento”341.

Em segundo plano, a diretriz puramente elisiva da responsabilidade gera o grave risco de produzirem-se programas de compliance para fins meramente cosméticos, razão do receio de tribunais em valorar tais medidas, precisamente porque passam a idéia de serem apenas uma “ferramenta nas mãos de administradores”, tendente a “auxiliar a empresa a evitar responsabilidades”342.

Assim vistas as coisas, a implementação, pelas empresas, de programas de compliance, deve ocorrer de preferência antes de qualquer fato delitivo, no intuito maior da prevenção, como adverte Cruz Santos (2016a), precisamente porque a ênfase há-de estar centrada na cultura do cumprimento das leis, e não na evitação do castigo, uma perspectiva que adquire ainda mais força se se levar em conta a atuação global de empresas multinacionais, submetidas aos mais diversos sistemas jurídicos, impossibilitadas que estão, por essa razão, de implementarem programas de assessoramento com o fim de “estabelecer normativas internas que lhe permitam mover-se no fio da navalha”, entre a necessidade de evitar-se um e outro comportamento criminoso. “O cumprimento normativo deve começar muito antes do tipo penal”, completa Nieto Martín (2013a: 28).

Esta consideração deve levar em conta, todavia, que as legislações analisadas abrem igualmente espaço para a imposição de programas de cumprimento normativo ex post facto, via acordos com órgãos de acusação,

340 Cf. SIEBER (2013: 84-85).

341 A significar, essa “cultura de cumprimento”, conforme lição de COCA VILA (2013: 56), “(…)

a interiorização por parte de todos os membros da empresa da necessidade de atuar sempre conforme o Direito, assim como da utilização constante e sem reparos dos meios de assessoria, informação e denúncia intraempresariais”.

342 Cf. NIETO MARTÍN (2012: 125). Relembre-se igualmente a observação de ROTSCH (2013:

4-6), acerca do risco de percepção do compliance como instrumento direcionado a exonerar os dirigentes das empresas de suas responsabilidades.

quando não chegaram a ser implementados previamente, ou o foram de forma deficiente, enquanto condição para a obtenção de certos favores penais.

Também para este caso, valem as observações atinentes à preponderância da finalidade preventiva sobre a intenção de livrar-se de responsabilidades, visto que direcionado, tal programa, à minimização e evitação de futuras infrações, objetivo dissuasório dificultado, vale reiterar, se não se adquire a cultura da legalidade intramuros343.

6.5 Origem e desenvolvimento

Os programas de compliance ganharam corpo nos Estados Unidos da América, em resposta às graves crises econômicas verificadas na última década do século passado, funcionalizados que foram344, para a prevenção e detecção de fatos

delitivos, com o nítido objetivo de “impedir a criminalidade proveniente das empresas e dirigida a elas”345.

Os vetustos acordos de redução de pena mediante colaboração corporativa, que estiveram na base das investigações da SEC346 a propósito do escândalo

Watergate, deram início à rigorosa tendência de enforcement do direito penal corporativo nos EUA, incluso e maiormente do FCPA347 - 348 . Tal atividade

persecutória foi incrementada de modo significativo com a promulgação das OSG, que fundamentaram a posterior sistematização e consolidação dos Memorandos do DOJ349.

As OSG, pelo pioneirismo na previsão de diretrizes de redução da responsabilidade corporativa a partir de créditos decorrentes da estruturação de mecanismos internos de prevenção e detecção de delitos, podem ser apontadas

343 Cf. pesquisa revelada em SIEBER (2013: 84-85).

344 Em paralelo com outros mecanismos de controle da criminalidade econômico-financeira e

organizada, de intervenção na economia, enfim, consoante, p.ex., a ampliação de medidas protetivas e de incentivos, incluso financeiro, a informantes internos das empresas (whistleblowers), a previsão de limites remuneratórios a dirigentes de corporações, sob risco de imputação por administração desleal (cf. LUZÓN PEÑA, 2014: 27 e ss.), e o incremento do combate ao lucro ilícito derivado daquela atividade criminosa (cf. SILVA DIAS, 2011: 23 e ss.).

345 Cf. SIEBER (2013: 68).

346 Cf. ESTRADA I CUADRAS & LLOBET ANGLI (2013: 198); GIUDICE (2011); e MATHEWS

(1984).

347 Cf. GRUNER (2007: 279-280); ORLAND (2006: 45); e GÓMEZ MARTÍN (2013: 127). 348 O FCPA desempenhou papel tão relevante no desenvolvimento dos programas de

compliance que, para alguns (SOUZA, 2015; NIETO MARTÍN, 2003), a política regulatória ali instaurada pode ser identificada como a origem de tais exigências de integridade.

como a fonte moderna dos programas de compliance350 , fenômeno atualmente

espraiado por diversos continentes, com desenvolvimento nas áreas públicas e privada, e implicações trasversais em variados domínios científicos, em especial no segmento jurídico-penal351-352-353.

Tal política regulatória encontra fundamento na convergência de entendimento no sentido de que “a intervenção preponderante das corporações em diversos setores sociais essenciais as converteu no principal foco de criação de riscos”354, riscos igualmente decorrentes e favorecidos pela configuração de uma

sociedade altamente industrializada e tecnologicamente avançada355 , de factível

presença em diversos setores socialmente relevantes, como o meio ambiente, o mercado consumidor, a saúde pública, etc356.

350 No mesmo sentido, cf. ENGELHART (2014a: 716) e ENGELHART (2014b: 61); GARCÍA

CAVERO (2014: 18-19); ZYSMAN QUIRÓS (2013: 168); e ORTIZ DE URBINA GIMENO (2014: 54). Como advertiu CIGÜELA SOLA (2015: 341), “en los análisis de la responsabilidad coletiva, hasta hace poco más de una década no aparecía, ni siquiera de pasada, la palabra «compliance»”. NIETO MARTÍN (2003: 6-7) dá ênfase, nesse quesito, à política de autorregulação regulada iniciada a partir do FCPA.

351 SIEBER (2013: 67) refere quadro comparativo entre Alemanha e EUA, apurado em pesquisa

conduzida pela PricewaterhouseCoopers (PwC), publicada em 2007, na qual se informa “(…) uma crescente implementação de programas contra a criminalidade econômica. Para este estudo foram entrevistadas 1.166 empresas alemãs. Até 87% das empresas indicaram (segundo o tipo de medida) haver adotado previsões contra a criminalidade econômica. Para isto as empresas confiavam sobretudo em medidas de controle através de revisões internas ou externas, enquanto que as medidas preventivas haviam sido desenvolvidas por muito menos empresas. Em empresas com uma elevada atividade controladora, 62% das firmas havia implementado um programa de ‘compliance’, e 76% diretrizes éticas. Em troca, do total de empresas entrevistadas, 61% possuía diretrizes éticas, mas somente 37% tinha programas de ‘compliance’ com standards de conduta controlados. Nos Estados Unidos, ao contrário, 94% das empresas possuíam diretrizes éticas, as quais foram reforçadas em 73% dos casos mediante programas de ‘compliance’.” Em complemento, até mesmo para melhor compreensão dos resultados dessa pesquisa, cite-se a advertência de ENGELHART (2014a: 716), de que na Alemanha a discussão sobre o tema está apenas no início, e que os programas de conformidade, naquele país, constituem ainda essencialmente matéria de soft law, de comprometimento voluntário das empresas, a despeito de previsões no âmbito contraordenacional.

352 Um panorama da influência exercida pelas OSG na Europa pode ser conferido em ZYSMAN

QUIRÓS (2013: 170 e ss.).

353 O presente trabalho está limitado à análise das implicações processuais penais decorrentes

da realização, pelas empresas, de interrogatórios de empregados suspeitos, no âmbito dos programas de compliance, excluídos, assim, outros problemas de ordem penal e procesual penal emergentes do fenómeno, que podem ser observados, de modo não taxativo, para o setor privado, em KUHLEN, PABLO MONTIEL & ORTIZ DE URBINA GIMENO (2013) e SILVA SÁNCHEZ & MONTANER FERNÁNDEZ (2013); e, para o setor público, em NIETO MARTÍN & MAROTO CALATAYUD (2014).

354 Cf. GARCÍA CAVERO (2014: 14) e GONZÁLEZ DE LEÓN BERINI (2013: 77-78). 355 Cf. AIRES DE SOUSA (2014: 51).

356 Cf. AIRES DE SOUSA (2014: 51), que acrescenta: “a idéia de que a industrialização ou o

avanço do conhecimento comporta riscos não é uma idéia nova, encontrando-se documentada pela história. De fato, a aceitação do desafio interposto pelo risco constituiu desde sempre uma condição necessária ao progresso da humanidade. Como forma de garantir a sobrevivência da vida humana, o Homem tem procurado modos de lidar com o risco, agora, por via do recurso (circular) à técnica e à ciência”.

Segundo Sieber (2013: 63),

‘Os programas de ‘compliance’, assim como novos controles dirigidos a prevenir a criminalidade, constituem uma reação aos espetaculares escândalos no campo da criminalidade econômica que ocorreram há pouco tempo nos EUA, como também em Europa: os desastres empresariais, p.ex., de World-Com, Enron, Parmalate Flowtex têm corroborado, no últimos anos, o diagnóstico pioneiramente feito por Tiedemann, no sentido de que a criminalidade econômica também pode levar à ruína de grandes empresas e causar graves prejuízos para toda a sociedade357.’

O exponencial crescimento do compliance deriva significativamente, numa perspectiva mais ampla, abrangente do mais alargado conceito de governo das sociedades358 –, da compreensão, infelizmente pós-crise, da fragilidade do sistema

econômico-financeiro internacional, agravada pela desregulação do mercado financeiro global e absoluta predominância do lucro como valor359.

6.6 Aspectos criminológicos e político-criminais360