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6. CRIMINAL COMPLIANCE: ACERCA DOS FUNDAMENTOS

6.6 Aspectos criminológicos e político-criminais

6.6.2 A Política Criminal

6.6.2.1 Os riscos da criminalidade econômica

Argumenta-se, para além, que a opção legislativa por conferir estímulos sancionatórios ao compliance empresarial traduz intervenção político-criminal

374 Um sistema de imputação da responsabilidade penal da empresa por fato próprio, baseado

na “culpabilidad por defecto de organización”, precisamente pela falta de implementação de um efetivo programa de compliance, porém dogmaticamente compreendido a partir das categorias do Direito penal internacional (offenses e defenses), afastando a discussão sobre se o compliance seria elemento do injusto ou da culpabilidade, é proposto, reitere-se, por NIETO MARTÍN (2013a: 31 e ss.), justificando o modelo exatamente por força da internacionalidade do fenômeno.

baseada no risco375- 376, tema este onipresente no atual discurso jurídico-penal.

A política criminal relacionada aos programas de compliance está de fato conectada a este contexto do discurso do risco, conceito exposto em Silva Sánchez (2011: 11 e ss.), especialmente pelo alerta em relação ao perfil de sociedade que converte o tema segurança em pretensão social à qual o Estado e o Direito Penal, em particular, devem resposta. A aptidão dos programas de compliance para a prevenção e repressão de delitos econômicos é hoje enaltecida porque, antes, viu- se nele considerável potencialpara o controle dos manifestos riscos provocados pela criminalidade corporativa377.

Aires de Sousa (2014: 52), salienta que o risco constitui atualmente, não apenas no plano sociológico, mas também jurídico, característica fundamental e decisiva da sociedade atual, cujos novos contornos podem ameaçar a qualidade de vida e subsistência do próprio ser humano. Referida autora expõe as três categorias de riscos socialmente relevantes de Christoph Lau, aqui muito resumidamente: (a) os riscos tradicionais, em regra voluntariamente assumidos e limitados no tempo, com referência pessoal e por isso passíveis de imputação individual; (b) os riscos do desenvolvimento industrial, como os anteriores, referíveis indivualmente ou a um grupo de pessoas identificáveis, porém de custos já socializados e juridificados, em certa medida calculáveis e controláveis, e, por tais razões, suscetíveis de

375 Cf. SIEBER (2013: 63); GARCÍA CAVERO (2014: 14); e KUHLEN (2013: 64-65), este último

num sentido bifurcado: seja pelo encaixe daquela política no “Direito penal do risco”, de que se fala no texto, seja pela percepção empresarial de crescimento dos riscos jurídico-penais decorrentes da tendência criminalizante.

376 Segundo SILVA DIAS (2008: 228), “duas idéias-chave marcam este conceito – de risco –

que traduz e sintetiza o espírito empreendedor dos modernos: incerteza e insegurança. Com efeito, o risco exprime conceptualmente um estádio intermédio entre a segurança e a destruição: começa quando há percepção da ameaça e a segurança cessa, e acaba quando o evento danoso efectivamente ocorre. O risco é, destarte, uma realidade virtual ou uma virtualidade real (…)”.

377 Cf. SIEBER & ENGELHART (2014: 205). A propósito da legitimidade de um tal controle,

vale lembrar a advertência de FIGUEIREDO DIAS (2001: 160), tomada de empréstimo a Stratenwerth: se se quiser manter os princípios político-criminais clássicos do direito penal, como a função exclusivamente protectora de bens jurídicos, a intervenção mínima e a ultima ratio, tal significará a confissão resignada de que ao direito penal não pertence nenhum papel na protecção das gerações futuras. Conforme deixa bem evidente FIGUEIREDO DIAS neste mesmo estudo (2001: 171 e ss.), incluso advertindo uma convergência com SILVA DIAS, a tutela dos novos ou grandes riscos dessa “sociedade do risco” deve continuar a fazer-se pelo direito penal, sem a necessidade de “uma mudança radical no paradigma penal, com uma nova política criminal e uma nova dogmática jurídico-penal”, e deve ocorrer pelo caminho de uma via intermédia entre os extremos da pura negação – como a que restringe a função penal à tutela de direitos fundamentais –, e da extrema funcionalização desse Direito, a abarcar, nesse meio termo, a responsabilidade penal dos entes colectivos. Por fim, já em crítica à defesa de que tais riscos dever-se-iam regular por meios gerais de política social, e não pelo direito penal, aduz FIGUEIREDO DIAS que seria como formular-se o “apelo patético (e com sabor de pesada ironia, a de pedir o remédio ao causador da doença!)” de esperar uma protecção eficaz das “forças auto-reguladoras do mercado” (2001: 165- 166).

assecuração pelo próprio Estado ou por empresas; (c) e, por fim, os designados “novos riscos”, caracterizados pela autonomia das suas consequências, indetermináveis, transgeracionais, de grandes dimensões relativamente a qualquer ato humano voluntário (2014: 53-54)378-379.

Em boa medida, as crises econômicas antes relacionadas, que estão na raiz das exigências por regras de governança corporativa, compliance incluso, confirmam esse padrão de “novo risco”, pela despersonalização e distanciação das causas relativamente às drásticas e incontroláveis consequências delas advindas380.

Como bem referiu Silva Dias (2008: 222), as transformações sociais provocadas pelo avanço da sociedade pós-industrial e dos processos de globalização havidos neste último quartel de século provocaram naturalmente reflexos numa redefinição do papel do Estado e numa recomposição da matéria jurídica em geral e jurídico-penal em particular, proporcionando a transição do modelo de Direito penal diretamente intervencionista, conforme a matriz econômica Keynesiana – de impulso juridificador da atividade econômica –, para um modelo de “Estado-regulador” vocacionado, dentre outras tarefas, à função preventivo-policial de supervisão e de inspeção, um “Estado-prevenção”, enfim.

Nesse contexto, a funcionalização legislativa dos programas de compliance empresarial via estímulos e desestímulos sancionatórios refletem, pode-se intuir, uma regular performance jurídico-penal desse modelo estatal, querendo significar, esta consideração, que a imposição ou estímulo estatal à implementação de sistemas de cumprimento normativo pelas corporações não destoa ou atrita finalisticamente, antes se encaixa, com esse perfil de “Estado-prevenção”381.

378 Cf., também detalhadamente, SILVA DIAS (2008: 227 e ss.).

379 SILVA DIAS (2008: 227) manifesta igualmente preferência por essa classificação tripartida

na análise histórica do conceito de risco, pela sua maior proximidade com as fases de evolução econômica das sociedades modernas, correspondência esta menos exata na divisão de BECK (2016), na qual os riscos tradicionais e aqueles da sociedade industrial conformam as sociedades de primeira modernidade, enquanto os novos riscos, todavia cumulativos com aqueles, manifestam-se na designada segunda modernidade, ou modernidade reflexiva, a ter início a partir da segunda metade do século XX.

380 Segundo FEIJOO SÁNCHEZ (2015: 200), “a autorregulação – em referência à corregulação

estatal e privada – tem se convertido numa dinâmica característica do que se vem denominando ‘sociedade do risco’”.

381 Para KUHLEN (2013: 65 e ss.), a ênfase na explicação do fenômeno do compliance a partir

do “direito penal do risco”, decorrente da percepção do aumento dos riscos jurídico-penais pelas empresas, minimizáveis via esforços de integridade normativa, embora produza interrogações interessantes, não logra enquadrar de modo satisfatório a questão das investigações internas, que afetam sobretudo o indivíduo, praticamente esquecido no discurso do compliance, cujo foco está centrado nas empresas.